Rui Cardoso Martins

Amor de cães

Ilustração: João Vasco Correia

– Esta situação com a senhora dona Carla Maria… nós tivemos três períodos de relação durante a vida. Quando ela tinha 14 anos… e tinha eu 25, quando ela tinha 25 anos e eu já tinha 37, e agora quando ela tinha 37 e eu…

É 58 anos a idade de Gil – como se costuma dizer, o tempo não passa só para mim -, com recorrência na mesma mulher.

– Engraçado, prosseguiu Gil, que das outras vezes não aconteceu nada. Só desta vez em que emprestei dinheiro é que aparece esta acusação de violência doméstica…

Gil queria transferir para as dívidas de Carla o verdadeiro motivo da queixa. Os cães eram assunto ao lado.

– Quando veio embora, levou os cães consigo?

– Eu sempre tive os cães comigo, sotôra, no meu atelier de Torres Vedras. Ela, na altura, não tinha forma de subsistência para alimentar os cães.

O julgamento será como um passeio no campo, farejando pistas em lameiros e buracos de lógica. O homem diz que foi ele quem acabou com o namoro, e que só pediu de volta o dinheiro que emprestara para Carla montar um cabeleireiro. Ela recusara pagar, por supostamente preferir gastá-lo em festas, e Gil ficara a tratar dos cães. Depois, continua Gil, os cães morreram, como atestam as certidões de falecimento passadas por um veterinário. E que no dia em que, segundo a acusação, Gil deu uma enorme chapada em Carla, fazendo-a cair no chão, isso não era possível porque nessa tarde teve uma avaria no carro. Gil admite os insultos no Facebook, alguns palavrões e palavras de cobrança monetário-sentimental: “Deves-me muito. És falsa. Daí eu nunca ter confiado inteiramente em ti. Hoje começa o teu tormento. Começo hoje a tratar da minha mudança”. A mensagem incluía uma foto de três labradores jovens fixando a câmara, com aqueles olhos de berlinde e, através dela, a pobre Carla que recebera a mensagem em casa: “Esta é a última imagem que vais ter dos cães. A próxima vez será na box de embarque”.

– Infelizmente, escrevi estas mensagens, sotôra. Comecei a ver no Facebook dela e era só festas, festas, festas, e não me pagava o que devia!…

Noutra mensagem: “És uma vadia e mais não digo”. Com os olhos meio fechados, a juíza fez a síntese que a todos ia na cabeça:

– Isto é mais ou menos como as crianças, com o devido respeito.

Isto é, relações que acabam mal, injectadas de ódio, e são as criaturas pequenas que ficam entaladas e se fazem moeda de troca. Já existem advogados só para tratar da partilha de cães, gatos e periquitos. Mas vamos mais longe, aos detalhes arrepiantes.

– Só depois que vi os cães a regurgitar é que me apercebi que algumas coisas se estavam a passar… A Lady e o Spock. Os dois estão mortos, sotôra…

A juíza não deixará que o tema reapareça. Não eram cães vivos ou cães mortos o motivo do julgamento, mas a violência contra Carla. Ao entrar, Carla disse que Gil lhe chamara prostituta, que ela “cuspia no prato dos outros”. Que na chapada à traição (viera pelas costas quando telefonava), ameaçara-a com “boca de palhaço”. Abrir-lhe a boca à navalha num pavoroso sorriso perpétuo.

– A senhora ficou com medo que o senhor a matasse?

– Tenho.

– Tinha?

– Tinha e tenho.

Carla sempre vivera com a Lady e o Spock e só entregara o Scott a Gil porque o cão, como segundo macho, guerreava com o Spock. Não os foi resgatar por ter muito medo. Fala dos cães no presente:

– Posso falar abertamente? Os cães para mim são como os meus filhos, que eu não tenho mais ninguém. Tenho-os desde bebé. Para mim, são pessoas.

Mas como disse a juíza, se fossem filhos não ia lá com a polícia? Carla disse-me que o homem arranjou os relatórios de óbito com um veterinário só para a torturar, como na guerra. Tem a certeza de que os cães estão vivos, para lá das Linhas de Torres.