Almada: há um bairro fantasma a tentar ganhar nova vida

Texto Susana Torrão | Fotografias Gustavo Bom/Global Imagens

Primeiro era a família real que escolhia o palácio do Alfeite como local de veraneio. Mais tarde, o Hotel Club albergava os banhistas a poucos metros das muitas fábricas de cortiça que, a partir de meados do século XX, se instalaram na aldeia do Caramujo e na quinta da Romeira Velha.

Os moleiros já ali tinham chegado antes, e um dos seus descendentes, António José Gomes, fundou em 1865 a moagem que viria a laborar durante mais de um século: a Fábrica Industrial Aliança. Mais tarde, no local de um antigo estaleiro, viria a ser instalado, em 1936, o Arsenal do Alfeite.

A proximidade do Tejo e de Lisboa foram determinantes para o desenvolvimento de um pólo industrial que teve a moagem, a construção naval e a cortiça como principais eixos. Ao longo de décadas, foram chegando famílias que vinham trabalhar nas fábricas de cortiça cujo apogeu se viveu entre 1930 e 1955. William Rankin & Sons – «a fábrica do Rank» -, Henrique Bucknal e filhos – «a Bucknall» -, Manuel Antão Junior ou Vilarinho & Sobrinho fazem ainda parte das recordações de quem ali nasceu e viveu.

Imponente, como se quisesse resistir a tudo, ergue-se o edifício da moagem. Classificado como imóvel de interesse público, foi construído para resistir: mandado erguer por António José Gomes na sequência de um incêndio foi o primeiro edifício em Portugal com uma estrutura integralmente de betão armado, que espera agora, coberto de graffitis, ser convertido em museu.

Hoje, depois da decadência que se iniciou nos anos 1960 e se acentuou na década seguinte, o bairro ganhou a aparência de uma cidade fantasma, com o fecho de todas as fábricas. Há, contudo, sinais de uma tentativa de renascimento – antigos armazéns convertem-se em ginásios, um dos antigos refeitórios de uma fábrica está prestes a converter-se em edifício multiusos e é lá que estão alguns restaurantes famosos na cidade, como a Tia Bé – são, aliás, uma das atuais imagens de marca do bairro.

Oito décadas de memória

«Nasci, fui criada, namorei e casei no Caramujo», diz D. Berta, 89 anos, 66 dos quais vividos no antigo bairro industrial. O pai, originário de Pomares, Arganil, e a mãe, vinda de Frossos, conheceram-se em Lisboa e mudaram-se para ali. O pai tinha uma taberna e casa de comidas e, depois de casar, Berta seguiu-lhe os passos. «Ficava mesmo em frente à fábrica das farinhas. Ainda lá está», recorda a antiga comerciante, que servia refeições à base de sopa e peixe frito.

Muito antes disso, D. Berta frequentou a escola primária no Alfeite, aprendeu a nadar na praia da Mutela, onde os miúdos iam brincar e aproveitar o rio, e lavou roupa nos antigos tanques da Romeira. «Levava-a num alguidar, à cabeça, apoiada numa “sogra” feita com um pano. Tratava a roupa com sabão e cinza para a pôr à cora e ia-a regando, para que o sabão não a pusesse amarela», recorda. À tarde, trazia a roupa escorrida num balde. «Quando tirava o alguidar da cabeça sentia-me a crescer um palmo!», conta.

«Era uma zona de muito movimento. De manhã, passavam as mulheres todas para ir trabalhar para as fábricas», diz D. Berta. A chaminé da moagem, que apitava à hora do almoço e da saída, marcava as horas.

Ainda não havia água canalizada e os aguadeiros vinham à porta. No sofá da sala da casa onde vive há 23 anos, D. Berta desfila um rol de figuras que marcavam os dias no bairro: os aguadeiros Manuel e António, o «maneta» – «que não tinha mesmo um braço e vendia água com um carrinho de mão», a «Beatriz bêbeda» ou o Martins, cujo estabelecimento ficava onde é atualmente o restaurante Tia Bé, no Caramujo. À lista junta o senhor Jerónimo – o cliente que lhe levava os bilhetinhos de Álvaro, o então namorado, com quem está casada há 64 anos.

«Era uma zona de muito movimento. De manhã, passavam as mulheres todas para ir trabalhar para as fábricas», diz D. Berta. A chaminé da moagem, que apitava à hora do almoço e da saída, causava desassossego. «As pessoas até se assustavam!». Aliás, o barulho que vinha da fábrica era constante. «Quando a fábrica parava para fazer limpeza era um silêncio», lembra.

D. Berta, 89 anos, nasceu, cresceu e viveu 66 anos no Caramujo. Hoje, custa-lhe voltar ao antigo bairro industrial onde também nasceu a filha, Rosa.

No cais do Caramujo as fragatas descarregavam o carvão para as vagonetas que seguiam pelos carris até perto da chaminé da fábrica e que hoje ainda atravessam a rua. «O carvão era para fazer o vapor para as máquinas trabalharem», explica D. Berta. Rosa, a filha, lembra-se da água vir mesmo até perto das casas e de tudo ser desembarcado ali: trigo, cevada, louças de barro e carvão de pedra, que passou a ser carregado por operários.

A atividade do bairro só parava ao domingo. «As fábricas só depois passaram também a fechar ao sábado à tarde, com as novas leis do trabalho», conta a antiga moradora. O domingo era dia de visitar os amigos, ou de deixar o assado a fazer numa das padarias do bairro, que cedia os fornos à vizinhança.

Há 23 anos, D. Berta trespassou o negócio e saiu do Caramujo. Não gosta de voltar ao bairro. «Faz-me confusão ver como está… E não digo que aquela é a minha terra! Era uma coisa digna de se ver e agora não há nada para ver ali», diz.

Um bairro coeso mas desigual

Também Hélia Santos, de 59 anos, que nasceu e ali viveu até ao início dos anos 90, evita voltar ao Caramujo. «As recordações agradáveis já não existem», diz. O pai era guarda-fiscal e chegou ao Caramujo em 1953. Mais tarde mudaria de posto mas continuou a viver ali. Hélia, tal como a irmã mais velha, fez a pré-primária na escola do Desportivo do Cova da Piedade, e a primária na «escola das raparigas», já no centro da freguesia.

Hélia Santos, 59 anos, voltou ao Caramujo para recordar o bairro onde cresceu.

É com entusiasmo que relata o bulício. «A entrada principal do Alfeite ficava perto e os militares iam e vinham a pé de Cacilhas. De manhã e à tarde as ruas enchiam-se de militares. E havia também uns carros pretos, de Estado, que traziam os oficiais», recorda.

Das fábricas, lembra-se do mar de gente que enchia a rua às cinco da tarde: «Mesmo quem morava longe regressava a pé». As condições de vida eram modestas, com várias famílias a partilhar a mesma casa.

A classe corticeira tinha uma grande capacidade organizacional e reivindicativa e, ao longo de todo o século XX o quotidiano do bairro foi marcado por várias greves, uma das quais, em 1943, ganhou fama nacional.

Hélia recorda-se do convívio entre vizinhos, com conversas na rua ou à janela. Por vezes, fruto da bisbilhotice e da proximidade forçadas, surgiam zaragatas. O bairro tinha vários estabelecimentos comerciais, entre os quais várias tabernas – que ajudavam ao índice de zaragatas – lugares de fruta e padarias, que abriam à tarde para que os trabalhadores levassem levasse pão fresco para casa.

Hélia soma ainda às memórias as fragatas vindas do Ribatejo, que chegavam no verão ao cais do Caramujo carregadas de melão, e as carroças que, depois de vazias, levavam os miúdos do bairro a passear.

As idas à «cooperativa» também eram uma constante. Fundada por corticeiros, em 1893, a Cooperativa de Consumo Piedense chegou a ser considerada, nos anos 1960, a mais importante cooperativa de consumo da Península Ibérica. E ser sócio implicava ter dinheiro para pagar as quotas. «Dizia-se: “até é sócio da cooperativa!” ou “já é sócio da cooperativa”», conta Hélia que recorda as dificuldades dos vizinhos quando os ordenados deixaram de ser pagos à semana para serem pagos ao mês. Na cooperativa também existia assistência médica, enfermagem e uma biblioteca. Além do mais, era ponto de encontro para reuniões políticas.

«Lembro-me da GNR fazer rusgas durante a noite, na Cova da Piedade. Eu era pequena e os cavalos eram enormes – parecia-me que os GNR ficavam quase ao nível do primeiro andar das casas. Um amigo do meu pai chegou a ser preso»

A classe corticeira tinha uma grande capacidade organizacional e reivindicativa e, ao longo de todo o século XX o quotidiano do bairro foi marcado por várias greves, uma das quais, em 1943, ganhou fama nacional. No início do século XX, o jornal O Corticeiro chegou a ser dirigido por figuras próximas do movimento anarquista. Muitos dos habitantes do Caramujo e Romeira tinham senão atividade, pelo menos consciência política.

Em casa de Hélia ouvia-se a emissão de rádio da BBC em surdina, lá em cima, o «senhor João» era anarquista confesso e os vizinhos da frente também eram politicamente ativos. «Lembro-me da GNR fazer rusgas durante a noite, na Cova da Piedade. Eu era pequena e os cavalos eram enormes – parecia-me que os GNR ficavam quase ao nível do primeiro andar das casas. Um amigo do meu pai chegou a ser preso, por causa de uns panfletos, mas o meu pai não podia ir vê-lo a Caxias devido à profissão que tinha», conta Hélia.

A História ao vivo

Passear com António Policarpo pelas ruas do bairro é receber uma aula de história. O pai veio trabalhar para a construção naval e o António, com 15 anos, também foi trabalhar para o Alfeite – e é um interessado pelo passado do local.

O ponto de encontro, do outro lado da estrada que passa junto ao Hospital Particular de Almada, revela-se uma fonte infindável de informação. «A ponte do Caramujo passava por cima de uma linha de água e ficava aqui, quase ao lado do restaurante», explica António.

A aridez do lugar torna difícil de acreditar que esta já foi uma zona de esteiros e linhas de água, muitas vezes infestada de mosquitos. A dita ponte, construída em 1890, foi demolida em 1939 aquando da instalação do saneamento.

«A população vinha de outros pontos do país para trabalhar nas vinhas – a quinta da Romeira tinha vinha e a região era afamada pelos seus vinhos – mas a filoxera obrigou a uma viragem e foi a indústria corticeira que veio salvar a situação»

Ali perto, a ameaçar ruína, está também o edifício onde, cerca 1860/65, foi fundada a Sociedade Filarmónica Caramujense 23 de Julho. Em 1889 e já com a sociedade com sede num edifício junto à igreja, um grupo de cidadãos próximos da maçonaria e do movimento republicano, mudou-lhe o nome para Sociedade Filarmónica União Piedense (SFUAP), que ainda hoje existe e em cuja sede funcionou, no final do século XIX e início do século XX o Teatro Garrett.

António Policarpo é um interessado pela história local de Almada e conhece a Cova da Piedade como poucos.

«A população vinha de outros pontos do país para trabalhar nas vinhas – a quinta da Romeira tinha vinha e a região era afamada pelos seus vinhos – mas a filoxera obrigou a uma viragem e foi a indústria corticeira que veio salvar a situação», recorda António, que lembra ainda a importância da aldeia da Mutela – do outro lado da via. «Até meados de 1800. Esta zona era conhecida por Cova da Mutela», diz.

Um pouco mais à frente, António Policarpo lembra que antes da moagem, existiam ali moinhos de maré – pelo menos desde o século XVI – e, ao virar da esquina, junto ao Tejo, lembra histórias de contrabando feito a escassos metros do posto da guarda-fiscal.

Chegados à Romeira, é tempo de recordar mais uma ponte – a do Rogil – a fábrica Rankin & Son e os lavadouros onde as mulheres vinham pôr a roupa a corar. E junta-lhes as histórias dos assaltos, os encontros entre rapazes e raparigas à socapa dos mais conservadores. «As moças eram super-vigiadas, mas juntavam-se quatro ou cinco em casa de quem tivesse pais mais permissivos e onde houvesse gira-discos, as meninas faziam bolos, e estavam feitas as condições para um “assalto”».

O dono da música

Orlando Pedroso era uma presença popular nesses «assaltos» que animavam a Cova da Piedade nos anos 1960. Afinal, era ele o «dono da música». O pai – ourives de formação que abrira depois a loja de eletrodomésticos, que lhe deu a alcunha de «Pedroso das telefonias» – tinha-lhe cedido um canto do estabelecimento, onde Orlando vendia discos (singles, EPs e LPs).

Orlando descende de uma linhagem de tanoeiros cujas oficinas eram famosas na freguesia. O bisavô veio de Silves, mas o avô e o pai já nasceram na Cova da Piedade. Orlando quebrou a tradição familiar nasceu em Almada. «Coisa fina», sublinha, num comentário que revela a clivagem existente à época entre a população do Caramujo, Romeira e Cova da Piedade – na grande maioria operária – e de Almada, mais dedicada ao comércio.

O bisavô –um dos fundadores da SFUAP – tinha a sua oficina no Caramujo. No livro Almada Antiga e Moderna, de Alexandre M. Flores, no tomo dedicado à freguesia da Cova da Piedade, aparece a cópia do contrato de arrendamento assinado a 1 de janeiro de 1887 pelo mestre tanoeiro António Pedro: a renda – 36 mil reis anuais – deveria ser paga adiantada «do Natal ao São João».

Se o passado do bairro foi agitado, o futuro é incerto. A longo prazo, deverá ser integrado no plano de urbanização pensado para aquela zona ribeirinha e o antigo executivo camarário tinha pensado para a zona um período de uso transitório, com a reabilitação de três edifícios já este ano.

A oficina ficava na rua Direita, atual rua Manuel José Gomes, frente à fábrica da moagem Aliança. A tanoaria passou depois para o avô de Orlando, João Pedroso. Hoje o edifício da oficina original foi demolido e deu lugar a um parque de estacionamento quase sem uso.

Orlando lembra-se de ver o tio Tadeu a trabalhar bem como dos dias passados em casa dos avós maternos, que viviam um pouco mais adiante, na Vila Maria da Conceição, na Romeira. «O meu avô tinha vindo trabalhar para Lisboa, para um tasco de um galego. Durante a II Guerra Mundial foi ajudante de primeira e depois foi trabalhar para a moagem, onde tomava conta da lavagem dos sacos de farinha, que eram de pano», conta Orlando Pedroso.

Até ao início da década de 1970, o bulício era uma constante entre o Caramujo e a Romeira. «A decadência começou nos anos 70 e acentuou-se a partir de então», afiança Orlando. «Nos anos 1960, lembro-me dos operários da Mundet e da Rank que carregavam fardos de cortiça com mais de 60 quilos às costas», diz.

Para quem atravessa o bairro, o contraste entre um grande armazém convertido em ginásio e os restantes edifícios é gritante.

Mas o Caramujo também oferecia oportunidades de lazer: «Pescavam-se enguias sem grande esforço. Era a chamada pesca ao guizo: tínhamos uma linha com uma chumbada, uma tabuinha com um guizo que tocava quando o peixe picava», recorda o bisneto do mestre tanoeiro. E o divertimento não terminava por aqui: «Havia cinema na SFUAP – o chamado ‘cinema do piolho’ – e a partir dos anos 60, no CRP», conta.

Para quem atravessa o bairro, o contraste entre um grande armazém convertido em ginásio e os restantes edifícios é gritante. Ao lado, outro edifício está a ser recuperado e, mais à frente, já perto do largo da Romeira, o prédio revestido a azulejo do antigo refeitório das fábricas, está em obras, no processo de transformação para um espaço multiusos.

Se o passado do bairro foi agitado, o futuro é incerto. A longo prazo, deverá ser integrado no plano de urbanização pensado para aquela zona ribeirinha e o antigo executivo camarário tinha pensado para a zona um período de uso transitório, com a reabilitação de três edifícios já este ano. Para a moagem –o primeiro edifício em Portugal com uma estrutura integralmente em betão armado – existem planos de um espaço museológico dedicado à indústria. Mas por agora o grande edifício terá de esperar.