Texto de José Miguel Gaspar | Fotos de Leonel de Castro/Global Imagens
São os últimos habitantes e ali são todos feitos da mesma substância, carne e osso e ansiedade. Manuel Duarte e a mulher Maria Cândida, ele tem 67, ela 63 e em 2005 atroou-se num AVC, sobem juntos para o 13.º andar da sua casa na Torre 3 e vão demorar 15 minutos a subir porque a Maria Cândida demora mais do que os demais. O elevador avariou. Outra vez. Isto é um dia normal.
Joaquim Ferreira, 70 anos, Torre 2, 12.º andar, mora com a mulher Fernanda e um terrier chamado Torrete. Há três meses a polícia deitou-lhe a porta abaixo, a polícia dos peitos de plástico, assim, subitamente um susto estampido muito alto na manhãzinha, a farejar sabe ele o quê. “Vieram à droga, pois, nada, não havia nada, claro, pediram muita desculpa, paraquedistas, os brutos”. E a porta ficou abananada da entrada e ele é que teve de a compor. E também foi um dia normal.
Julinho Silva, nome artístico Buster, 26 anos, um rapper a emergir no meio da Torre 1, conseguiu uma coisa praticamente impossível: durante uma tarde inteira de um dia de sol de junho eliminou completamente de ações e sinais de droga o pátio frontal e a entrada da torre da sua casa. Está tudo gravado em vídeo, está no Youtube, nada de droga, parecia outro bairro, todos vestidos de orgulho à frente da torre a cantar e a cabriolar gestos de hip-hop, música e motas de rodas no ar, o orgulho levantado, o Julinho estampado a sorrir. E esse dia foi tudo menos normal.
O cerco imobiliário e a falta de capital
À meia-noite de um dia qualquer ou a qualquer hora do dia é perfeitamente possível e absolutamente seguro atravessar o Bairro do Aleixo, Porto ocidental, foz fluvial, por qualquer uma das três entradas, mas quem o fizer deve saber que vai ser abordado pelos homens da oferta. Uma ou várias vezes. Eles são a paisagem sempre lá, eles e os seus consumidores, e nada nos prepara para a violência sensorial do que vamos ver: um parque recreativo de toxicomaníacos que transmutaram o bairro num condomínio de chuto a céu aberto sem semelhante na cidade e no país.
Há dez anos debaixo de um plano político especial de investimento público-privado de demolição das cinco torres, evacuação e realocação camarária dos moradores, o processo demora e deixa o bairro vexado num purgatório – um paraíso para quem quer comprar droga ou consumi-la logo ali; um inferno de teatro e putrefação viva que persiste nos olhos de quem lá mora.
Passaram sete anos desde que Rui Rio, autarca maioritário de então, executou a ordem de demolição com explosivos da primeira torre de 65 casas e 13 andares e cinco anos quando foi arrasada a segunda. Houve alarme, protesto, manifestações, indignação, processos de tentativa de impedimento cautelar, mágoa, resignação e tristeza, foi assim sucessivamente até ao culminar numa memória terrível: o som retumbado de um prédio a partir-se, degolado por dentro, os olhos dos moradores gelados de horror.
Desde que tudo começou já foram realojadas 300 famílias, mas 270 pessoas permanecem suspensas nos três prédios restantes. A demora é um problema de capital. O bairro está debaixo da regência especial do Fundo Imobiliário Invesurb, que quer no futuro erguer ali oito blocos de luxo para vender, mas a sociedade gestora, Gesfimo, da órbita do ex-BES, está paralisada e a nova gestão designada, Fund Box, entrada há dois anos com o novo acionista Mota Engil, só este mês obteve garantia bancária e aguarda ainda parecer da CMVM para seguir. Em dez anos, o Fundo falhou com clamor (os outros acionistas são António Oliveira e a própria Câmara, além do ex-BES, dividindo seis milhões de euros de capital) e só conseguiu entregar 23 casas de várias dezenas que tem de reabilitar ou edificar.
Se olharmos para trás vemos que o bairro, inaugurado há 42 anos para realojar habitantes das colmeias do Barredo, na Ribeira do Porto, é um erro arquitetónico de conflitualidade social em altura, sem varandas nem janelas grandes que virassem os habitantes para o exterior e para o cuidado coletivo do espaço comum. Como o bairro está com ordem de extinção, as torres degradam-se, os elevadores avariam, os moradores assistem há anos ao abandono progressivo do Estado: há muito fechou a escola e o centro de dia, fechou o café do Caetano, esboroam-se os jardins, cresce o lixo daninho por todo o lado, a recolha é disruptiva, os prédios apresentam-se na sua pior condição de sempre, com fachadas em notícia de perigo de ruir.
Um caso de saúde pública
“O Aleixo é hoje uma tragédia que acontece a céu aberto”, repetiu Rui Moreira, o autarca independente que sucedeu ao social-democrata Rui Rio há cinco anos, cinco meses após a última demolição. Moreira, que em tempo recente visitou o bairro sem Imprensa a ver, viu a degradação, a mancha perpétua na saúde dos consumidores e colocou em marcha a saída urgente de moradores até março de 2019.
Mas passou já mês e meio e não houve novos contactos da Domus Social, os moradores não sabem se as regras de saída são as mesmas, não sabem se terão três locais à escolha como tiveram os realojados antes deles. Os 270 moradores sairão para casas camarárias que vagam na cidade à média de uma por dia, transpondo na urgência os outros munícipes do Porto cuja lista de espera é superior a mil.
“O Aleixo é hoje uma tragédia que acontece a céu aberto” (Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto)
Há duas mudanças recentes a reportar: no último mês o bairro levou uma ceifada nas ervas e no lixo que atapetava as ruas – um mar de corpúsculos de plástico e metal dos kits dos consumidores que largam tudo no chão: seringas, ampolas, tampinhas, toalhetes de desinfetar manchados de sangue, parecem mapas de tesouro perdidos, cruzes que não levam a lado nenhum -, e ergueram-se cercas de arame para trajetos seguros à voltas das três torres, “galinheiros”, acusam os moradores, agora realmente cercados.
O problema da saúde pública foi menorizado, mas não desaparece só assim, além de que o lixo daninho já está outra vez a medrar. O problema só se resolve quando for arrumado outro maior: o que fazer aos 60 a 80 velhos consumidores duros (cocaína, heroína e crack são as drogas do pódio; o crack, que é base de cocaína e parece calcário ou açúcar sujo em cristal, é hoje a substância que mais preocupa porque está em ascensão) que compram, consomem e ficam por ali no bairro dias inteiros a repetir?
Muitos são sem-abrigo, alguns pernoitam por lá, encolhidos nos cantinhos dos muros desmoronados, parecem desmaiados em cartões a desfazer, como o refluxo de uma maré que se recusa a vazar. O caso já foi superiormente anotado e tem motivado reuniões entre a Câmara e a Autoridade Regional de Saúde do Norte, que trabalham com as entidades no terreno que melhor dominam a situação. Além disso, reativou a discussão sobre a urgência das unidades de consumo assistido, vulgo salas de chuto, com o dossiê a aguardar agora deliberação e parecer da Assembleia Municipal do Porto.
No teatro da degradação
Mesmo que não queira, Manuel Duarte – que mora no Aleixo desde 1976 vindo da Viela do Buraco, na Ribeira, hoje são três, ele, a mulher Maria Cândida e a filha que mora com eles, mas já foram 11, com mais dois filhos, mais cunhados, mais os sogros e os netos – anda há cinco anos para trás e para a frente aos papéis com a Domus Social, a empresa de habitação municipal do Porto que coordena o processo de evacuação.
“Vá descansado para casa que em breve vai ser chamado para sair”, é esta a frase que mais vezes ouve do lado de lá do guiché. “Foram tantas que eu há muito que deixei de acreditar. Cinco anos?! Como é possível estar a pedir para sair de casa há cinco anos e ainda aqui estar, tendo eu a mulher como tenho nesta condição?”, pergunta Manuel incrédulo a vacilar, a dizer que também já fez dois bypasses ao coração. “Como é que querem que a gente ande aqui para cima e para baixo com 13 andares de escadas cada vez que queremos ir à rua?”.
Naquele dia, o elevador da Torre 3 tinha avariado outra vez. É um elevador novo e moderno da Schmitt, foi posto no verão, mas está parado no 1.º andar e não se vai mexer. Manuel conta sem se rir o que é que aconteceu. “Às vezes chove aqui dentro”, diz ele a ironizar sobre o episódio de terça à tarde quando uma vizinha resolveu lavar o pátio comum de um andar ou dois de cima de forma súbita e obstinadamente e pôs a mangueira a jorrar e a golfar.
O Schmitt viu-se aguado, primeiro tremeu, depois tossiu e por fim parou. Chamou-se o técnico, o técnico veio, demorou, viu o chuveiro dentro do elevador, abanou a cabeça, decretou dois dias de repouso ao Schmitt e foi-se embora a abanar a cabeça. “E nós que moramos lá em cima é que temos que alombar”, queixa-se o Manuel da desconsideração. No dia a seguir, o Schmitt ainda inerte a secar, a mesma vizinha da aguada passa pelo elevador parado diz um palavrão e depois sai da torre a palavrear. “Parece que estão a gozar connosco. É sempre a mesma merda com estes elevadores”, diz Manuel a reproduzir o comentário da vizinha sem uma única vez se rir.
É o meio da tarde, é uma tarde de sol do princípio de outubro e não está ninguém nos bancos de conversação que há nos pequenos pátios à entrada da rua do meio do bairro, um de cada lado de pedra debaixo das sombras estrelares das folhas dos plátanos altivos. Vão encher-se intermitentes de gente ao fim da tarde em conversas de vizinhas, mas são cada vez menos, dantes havia mais, e Maria Cândida, que voltou da fisioterapia que faz todos os dias desde que teve o AVC, levanta-se do banco e prepara-se para continuar a ginástica, agora numa via-sacra de escadas a subir.
São 208 degraus e pelo menos o dobro de passos até lá acima para ela e Manuel aflige-se reservadamente de cara fechada a ver a mulher subir os lanços um passo de cada vez, dois pés em cada degrau, a mão do braço bom do lado do AVC sempre no corrimão, mas o outro braço e a outra perna do mesmo lado parecem esquecidos, o resto do corpo não os compreende, quer avançar, ela não tem culpa, demora-se a subir. E às vezes pára e sorri para a sua situação, mas só brevemente porque depois emudece para continuar a arfar e a escalar.
Duarte, que fez sempre vida ali no bairro, trabalha desde os 12 anos, andou em tipografias, estojoarias, expositores, agora é vigilante de sonos noturnos na segurança do Douro Villa, um condomínio vizinho com casas 20 vezes mais caras que a sua, vê todos os dias o teatro da degradação da droga à sua porta. Ele é como os demais, uma pessoa comum obrigada a fazer coisas extraordinárias: ver agulhas e espetados nas escadas logo pela manhã, que ele tem que enxotar; um ou outro junkie fugidiço que se meteu nos andares devolutos de cima para consumir e dormir, e que ele vai deportar dali em voz grossa; às vezes até limpa ele mesmo as pratas e tarecos de metal e plástico que os viciados deixam no chão porque ali há crianças.
Não é coisa que se queira ver, nem de manhã nem à tarde, nem se estiver sol e houver vento maravilhoso entre as árvores. Nem sequer à noite, porque os junkies estão sempre por ali, a garatujar, descampados, metidos nas suas tendinhas escondidas de cores precárias, com luzinhas a tremer na cabeça, a vaguear no escuro mar preto interior da noite, que, por acaso, ali nem é demasiado sombria, tem uma luz amável de amarelo sossegador.
Ele reage com perplexidade à pergunta. “Não, não acredito no plano especial do presidente que diz que nos tira a todos daqui até março.” E depois a perplexidade dá lugar à ansiedade. “Já imaginou o que isto nos faz, estarmos a dias ou semanas de mudar de casa, eu sei lá, e não fazermos a menor ideia onde vamos viver? Imagine lá se puder”, e depois a ansiedade dá lugar à melancolia e a cara de Manuel Duarte obscurece.
“Não, não acredito no plano especial do presidente que diz que nos tira a todos daqui até março.” (Manuel Duarte, residente no Aleixo)
Ali ninguém ignora o estigma e o ignóbil
O orgulho e o valor do orgulho em cada um é um sentimento palpável na postura das pessoas do Aleixo. É um sentimento comum mas exalta-se, não se disfarça, usa-se por fora do peito. Ninguém ignora o estigma da ignóbil droga, alguns fazem parte dele, muitos mais não, mas todos são levados nessa sombra, ceifados pela base no direito social da presunção da confiabilidade que devemos ter uns perante os outros.
Não é uma coisa de somenos, desconfiar de alguém só porque vem de um certo sítio de difamação, é isso o estigma e isso indigna. E magoa e inflama o orgulho e por isso o orgulho de pertencer ali às vezes é furioso, às vezes ressalta, crava-se na pele e permanece como uma tatuagem das torres enxertada nas costas de alguém. E salta para as paredes dos prédios, por fora e pelo interior recôndito, escadas acima até ao cimo dos 13 andares, todas as paredes estão escritas e rascunhadas com franqueza crua e espichada.
Na Torre 3 há mais declarações de amor, desenhos infantis e paredes beges por grafar; na 2 há muitos tags eriçados sobre o amor postos de outra cor, há mais declarações emendadas a tinta diferente na parede ou riscadas a vermelho zangado; e na Torre 1 é tudo diferente porque as paredes dali estão endemicamente ocupadas por gente ou por vultos que saem ocultos das paredes de gente. São paredes vivas, é neorrealismo encardido, galhardia, prosápia, bazófia, insultos pretos a políticos, à bófia e aos cavicórneos, com choques frontais de cores, amores riscados e aquela exaltação do andamento, “Aleixo Sempre”, “Aleixo Zone”, “Xangai Aleixo”, “Cardinal”.
O episódio do estrondo da polícia
O bairro já não tem partes bonitas, só memórias e fantasmas de coisas que já não são. Joaquim Ferreira está ali a entardecer a juventude, olha pela janela do seu 12.º andar e vê o mesmo rio em que mergulhava quando era novo. Está agora mais à frente, ele já foi jovem, já foi comando indómito em Angola, já foi mais alto, já foi mais audaz, já saiu a escorrer do rio de mão dada com aquela que viria a ser a sua mulher.
Ela também se lembra, a Fernanda, tem 67 anos, era quando mergulhava na Ribeira, está agora na sua sala onde entra o sol, ela tem o joelho inchado, dá passinhos pequeninos, senta-se e põe-se a ver desatenta a novela da SIC “Mar salgado”. Também ela está mais à frente na torrente do rio, do outro lado da sua vista é a igreja branca da Afurada, quando anoitecer a igreja vai acender, as luzes vão derreter no rio, rajadas, e depois vê a fileira do casario pitoresco de cores variegadas e azulejos nítidos das casas dos pescadores.
“Será que este vai ser o nosso último Natal aqui?”, interroga-se Joaquim a afagar as orelhas do Torrete, o seu cordeiro jack russell terrier, “não acredito que a gente saia já, então estamos há tantos anos para sair e não saímos e agora dizem de repente que há casas?”. Descrente, Joaquim evoca São Tomé e diz “só acredito quando vir, e digo mais, acredito quando tiver a chave na mão”.
“Não acredito que a gente saia já, então estamos há tantos anos para sair e não saímos e agora dizem de repente que há casas?” (Joaquim Ferreira, residente no Aleixo)
E depois diz da sua vontade: “Eu não estou à procura de casa, eles é que nos querem tirar daqui. Pois podem querer, mas se quiserem têm primeiro que tratar de nós. E depois”, continua ele ligeiramente agitado, o cão escapule-se para o regaço da novela da mulher, “vamos poder escolher para onde queremos ir ou vamos obrigados para algum sítio sem ver? É que se for assim não tem jeito, não tem jeito nenhum”.
A morar ali desde o início do bairro, em 1976, “a Torre 1 ainda nem estava completa, era só esqueleto, mas foi ocupada mesmo assim, tomada de assalto pela noite”, já passaram por aquela casa quatro filhas e dez netos do casal. Estão agora ali todos na parede, risonhos e a cores, a casa superlotada de retratos dos netos e das mães deles, até num passe-partout digital que passa fotos num mix em permanente aparecer, desaparecer.
E Joaquim recorda aquele encontro vespertino em que acordou com estrondo e a casa estava cheia de polícias peitudos de capacete a querer espiolhar. Ele rediz as perguntas que lhe fez a polícia e repete as respostas que lhes deu: “Droga? Tenho, medicamentos da farmácia. Armas? É, facas da cozinha, estão ali. Dinheiro? Olhe, agora está mesmo a gozar comigo, é?”. E Joaquim diz a rir que a coisa não teve piada nenhuma: “É assim a nossa polícia de investigação, uma coboiada, primeiro arrombam a porta, só depois é que fazem as perguntas. É por sermos pobres? Não devia ser assim, pois não?”.
Os políticos e a defraudação
Claro que na noite do dia do videoclipe do Julinho a vida real caiu ali como é normal e todos voltaram aos seus papéis sociais. São papéis de informalidade adestrada, da burocracia da rua que dá saídas e rendimentos reais, conquanto ilegais, a quem quiser ou precisar.
Ele mora no epicentro desse comércio, a Torre 1 que está sempre a chamejar de compradores a entrar, de capeadores, recetores, entregadores e vigias, vozes ocultas a apregoar códigos no ar – “é branca”, “é castanha”, “Holanda”, “Maradona”, “Bolicao” – e Julinho que é imune, pois não fuma, não bebe, não se droga, não tem vícios invisíveis, diz que nunca quererá sair dali.
“Isto é o meu berço e o meu enterro, quem me dera que fosse assim.” É lírico, Julinho, “adoro palavras desde pequeno, são as minhas balas, gosto mesmo é de escrever e disparar”, diz ele e essa é a sua forma de resistência e de glorificação.
“Isto é o meu berço e o meu enterro, quem me dera que fosse assim.”(Julinho Silva, rapper que vive no Aleixo)
Mas aquilo que ele fez naquela tarde de junho foi glorioso, gravou ali o vídeo de “Aleixo II”, o single da sua nova mixtape “Sangue azul”, aquela torre vil pareceu um prédio normal, ou quase, a flamejar de juventude a cantar e a dançar, com imagens aéreas solares, fumos festivos no terraço do 13.º andar, cá em baixo coreografias de bboys e gestos da cultura hip-hop cumpridos com grandeza de ânimo, o Julinho a comandar tudo. É uma imagem potente para quem conhece o ambiente habitual daquela torre, a torre do andamento que nunca pára, cheia de gestos furtivos do entra-e-sai, madrugada fora até ao nascente, noite e dia banca aberta, nem no Natal pode fechar.
É esse o poder libertador da música e da cultura, parece querer dizer Julinho Buster – e agora ele aponta a ironia do nome Buster, de Blockbuster, um nome que está em extinção como os blocos da casa dele -, que mora no 7.º andar da Torre 1 desde que nasceu há 26 anos. “É também a minha forma de resistir num bairro, o meu bairro, que sofreu sempre estigmas sociais, sobretudo o estigma da droga”, diz ele, como na canção do clipe de três minutos e meio em que faz o relato e louvor do Aleixo e descreve aquilo que está a viver: “A morte respira-me na cara/ enquanto me oferece uma chapada/ mas eu agarro-me à vida/ de cabeça levantada” ou mais à frente “mas eu falo do que eu vivo/ do que eu sinto/ eu não minto/ eu recito sem papas na língua/ sobre línguas depravadas”.
É um caso muito singular, Julinho, o rapper, uma flor correta a nascer no cisco, e a sua autenticidade merece singrar; nas suas canções – procurar “Buster” no Youtube – ele relata-se muito para lá daquilo que vê e que vive, abre o peito, confessa-se, diz sem peias que não tem mãe, foi consumida, que o pai nunca lhe liga, que só o vê em videochamada e se por acaso for Natal.
“Não sou seguramente louco por querer transformar o Aleixo em música ou literatura”, argumentará Julinho agora de pé à frente do microcafé dos balneários do ringue de futebol do bairro, o único equipamento ainda a funcionar, as mãos metidas nas redes bambas do campo de betão cracado que fica atrás da Torre 1, já não há ali competições organizadas, só espontaneidade, desejo e às vezes desatino.
“Eu não manjo nada de política, tás a ver?”, diz Julinho a falar como um rapper a argumentar com as mãos, “mas os políticos enganaram-nos, vieram cá com as suas campanhas, diziam que eram por nós, que isto não ia abaixo, mais isto, mais aquilo, eu lembro-me, eu era novo mas eu lembro-me, toda a gente aqui se lembra, e depois quando se apanharam no poleiro, o poleiro do nosso voto, viram-se contra nós e mandam demolir o bairro à traição”, diz Julinho, a falar de Rui Rio.
“Não sou seguramente louco, mas quero aqui ficar para sempre, cresci aqui, sou daqui, estes são os meus amigos, a minha família é isto aqui”, diz Julinho a abrir os braços. Talvez não tenha outro remédio que não seja olhar de frente, sempre de frente, e efabular aquilo, mas dizendo sempre a verdade, talvez não tenha outro remédio que seja não ter medo de abrir os olhos mesmo que à volta dele esteja tudo escuro e a enegrecer.