Rui Cardoso Martins

A cápsula vazia

Ilustração: João Vasco Correia

A juíza disse:

– Levante-se o arguido Mário…

e levantaram-se dois homens, um magríssimo e o outro inchado de músculos e de gordura, que não se auto-excluem. O magro tinha ouvido mal, chamava-se Marco e dormitava no banco à espera da vez no julgamento. Voltou a sentar-se, espetando-se na madeira como vareta metálica. Já como saca de batatas em pé ficou o verdadeiro Mário (se há verdade num homem que se autodefine como não sendo nada):

– Emprego?

– Desempregado.

– Isso ainda não é emprego. Que profissão tinha?

– Nenhuma.

– Nunca fez nada?

– Nunca.

– Que estudos tem?

– Nenhum.

– Não estudou?

– Só até à primeira classe.

– Mas não posso pôr como profissão “desempregado”…

Mário ficou com pena da juíza e esforçou-se para preencher o vazio logístico. A cápsula do crânio, coberta de cabelo asa de corvo, fervia-lhe. [Alguma coisa Mário hás-de ter feito em quase 30 anos de vida. Puxa pela cabeça, Mário.] Lembrou-se então que nos intervalos de não fazer nada participara em vendas ambulantes de sapatos, t-shirts, coisas assim. E de receber o “rezi”. O rezi fez a juíza rir.

– O rendimento social de inserção, o RSI?

– Eu chamo-lhe rezi.

Esta informação permitiu que o mundo andasse em frente. Em Março de 2016, Mário estava zangado com a mulher grávida, com a sogra e com o pai, mas felizmente não se chegou a zangar com a tia, que lhe emprestou o apartamento para dormir. Era uma casa de habitação social devoluta, ou melhor, uma casa que a tia não chegara a devolver. Como se tinha perdido a fechadura da entrada, encontrara uma vocação: era lar provisório de drogados, seringas, pratinhas e uns sofás imundos. Mário não tinha nada a ver com isso, a tia só lhe pedira que tratasse do sítio. Dormia num colchão em cima do soalho. Um dia, entrou pela porta um grupo de polícias em missão de combate, varrendo o perímetro.

– O guarda entrou já com a pistola apontada para mim. Agarrou-me, algemou-me…

À entrada, em cima de uma cadeira, os polícias viram uma peúga de homem. Lá dentro, 11 balas intactas e cartuchos já detonados.

– Eu disse: “mas isto não é meu!” E o guarda: “mas como tu estás aqui a viver, é teu…”

– Não era seu?, perguntou a juíza.

– E tinha deixado ali? Só se fosse maluco!

Mário apresentou uma teoria:

– A porta estava rebentada, não tinha fechadura… Às vezes eu estava a dormir, ouvia a porta a abrir, eu dizia “quem é?” e quando lá chegava já tinham ido embora. Uma vez entrei e estavam três nos sofás. E a um até tive de dar uns palmadões, não queria sair. Quando estava lá, eu ia e fugiam, mas, como agora não estou, já lá devem estar outra vez.

A juíza não engolia a ideia de que as balas eram de outra pessoa. Mas Mário voltou ao seu pilar lógico, é um homem sem letras mas com um argumentário mínimo:

– Se aquilo fosse meu, acha que eu ia deixar ali em cima, que era só mexer para cair?

Se aquilo fosse dele, talvez soubesse em que parede dura ou tecido mole as balas foram disparadas. Mas Mário não sabia de nada. Com isto, também a juíza se baralhou, voltando à escolaridade:

– Quais são as suas habilitações literárias?

– Nhonhoma [ou coisa parecida], disse Mário, cooperante.

– Nono ano?

– Nenhuma!

– Mas nem foi à escola?

– Fui à escola, mas só queria malandrice com os meus colegas mais velhos e não aprendi nada.

– Então não sabe ler?

– Não.

Mário não sabe nada, não tocou em nada, não faz nada, não é nada.

É também confuso podermos, em 2018, contar a história de um jovem português que nem a saberá ler.

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia