Yazidis: a última escala antes da paz em Portugal

Chegam hoje a Portugal os primeiros refugiados de um grupo de 400 yazidis que o governo se disponibilizou para acolher e que ficarão em Guimarães. Fugidos de um pesadelo difícil de descrever no Norte do Iraque, onde se concentra a maior comunidade desta minoria religiosa no mundo, estão a ser alvo de um genocídio levado a cabo pelos extremistas islâmicos do Daesh. Reportagem exclusiva no campo de refugiados de Petra Olimpou, na Grécia, com os homens e mulheres yazidis que estão a chegar. Eles só querem paz. E esperam encontrá‑la em Portugal.

Uma mulher ajoelha-se em frente a uma fogueira e não consegue suster as lágrimas. «Eles roubaram os nossos bebés, cortaram-lhes as cabeças, cozinharam-nos com arroz e depois obrigaram-nos a comer os nossos filhos», diz Ghazal. Em Sinjar, no norte do Iraque, aquela madrugada de 3 de agosto de 2014 marcou o início do terror. A cidade dormia serenamente quando chegaram os militantes do desataram a espalhar o pânico.

Seguiram‑se dias de pesadelo naquela região onde se concentra a maior comunidade yazidi no mundo, cerca de 600 mil pessoas. Estima‑se que cinco mil homens tenham sido mortos e outras tantas mulheres e crianças raptadas para serem escravizadas pelos extremistas. Alguns conseguiram fugir. Mais de 2500 yazidis estão agora na Grécia à espera que um país da União Europeia lhes conceda asilo. Portugal já formalizou a disponibilidade para receber cerca de quatro centenas. O primeiro grupo – cerca de trinta – deve chegar nas próximas semanas e será acolhido em Guimarães. Numa fase posterior chegarão cerca de cem e serão acolhidos em Lisboa. «Em Portugal [o apoio aos refugiados] é uma questão nacional», disse o ministro adjunto, Eduardo Cabrita, à Notícias Magazine em dezembro passado.

Os yazidis são uma minoria religiosa que ao longo da história foi perseguida pela sua fé. São de etnia curda mas a sua religião mistura elementos de várias tradições como cristianismo, islamismo e zoroastrismo. Acreditam que Deus colocou sete anjos a proteger a Terra e que o principal é Melek Taus – o anjo Pavão – também conhecido pelo nome Shaytan – que é, no Alcorão, o nome dado a Satanás. É precisamente por isso que são perseguidos pelos salafistas: o Daesh olha para os yazidis como «adoradores do diabo» que merecem ser mortos ou escravizados. Em 2007 foram vítimas de atentados da Al-Qaeda e cerca de seiscentos foram mortos. Mas a vida deles agravou‑se naquela madrugada de agosto de 2014, quando o Daesh assumiu o controlo do Noroeste do Iraque e colocou sob o seu domínio toda a região de Sinjar. As atrocidades já foram reconhecidas internacionalmente. Em junho passado, uma comissão de inquérito da ONU divulgou um relatório que denunciou que o Daesh está a cometer genocídio contra os yazidis. Mais de 3200 mulheres e crianças continuam nas mãos dos extremistas.

O campo de Petra Olimpou onde está Ghazal situa‑se num vale a seiscentos metros de altitude, junto ao monte Olimpo, no Norte da Grécia, a quatrocentos quilómetros de Atenas. Abriu em abril de 2016 para receber exclusivamente refugiados da minoria yazidi que um mês antes se depararam com o fecho da fronteira de Idomeni, junto à Macedónia. São 1250 pessoas distribuídas por mais de uma centena de tendas de lona branca fornecidas pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Algumas famílias construíram a sua própria barraca com paus, cobertores e plásticos. A comida é feita numa fogueira à porta da respetiva tenda. Dormem em cobertores espalhados num chão que amiúde recebe visitas de cobras ou escorpiões.

Mais de metade da população do campo são crianças que brincam e correm um pouco por todo o lado. Todos os adultos dizem o mesmo: querem os filhos longe das bombas e perto das escolas. «Não queremos que cresçam a ouvir o som das explosões ou os disparos das metralhadoras», diz Peer Suliman. «Não queremos que as crianças vejam aquilo que nós, os pais e avós, vimos.»

Estas crianças não vão à escola há três anos, garante o porta‑voz da comunidade no campo, Sheik Nuri. A poucos metros, Gozi Khalf, uma mulher com quatro filhos à volta, diz que só quer viver num país seguro «onde os nossos filhos possam ter aulas». O marido, Hagi Smoqe, diz que só fugiu do Iraque pelo futuro deles. Numa tenda vizinha, Peer Suliman sublinha que o sonho das crianças é simples: roupas novas, ir à escola, jogar futebol «e talvez um bocado de chocolate».

Mas a situação das crianças yazidis na Grécia é incomparavelmente melhor do que as que permanecem sob domínio do Daesh. «Estas podem brincar. As outras foram raptadas e estão a ser forçadas a ler o Alcorão e a fazer coisas más», lamenta Sheik Nuri.

As crianças sequestradas pelo Daesh (estima‑se que sejam mais de mil) enfrentam dois destinos: as meninas são violadas e vendidas em mercados de escravatura sexual; os rapazes são submetidos a lavagens cerebrais e conversões forçadas. O objetivo é criar uma nova geração de guerreiros para o Daesh. «Algumas crianças já nem nos devem reconhecer e se calhar até se fariam explodir no meio de nós», desabafa Ghazal, a mulher que chora em frente à fogueira.

No campo de Petra Olimpou, toda a gente tem uma história para contar sobre familiares raptados, desaparecidos ou mortos. Hagi Smoqe nunca mais soube dos pais. Fixa‑nos os olhos e faz um gesto com a mão a atravessar o pescoço. «Diziam que me cortavam a cabeça se eu não me convertesse ao islão.» Gozi, a mulher, relata aquela trágica madrugada. «Ouvi barulho, acordei o meu marido e disse‑lhe que estávamos a ser atacados. Saímos de casa e vimos logo cadáveres no chão. Não tínhamos carro, tentámos fugir mas três jipes do Daesh bloquearam‑nos.» A família ficou oito dias aprisionada pelo Daesh até conseguir fugir a meio de uma noite, a pé.

Cerca de cinquenta mil yazidis fugiram para as montanhas de Sinjar e viveram uma semana de tormento sem qualquer ajuda. «Quase morremos de fome», diz Gozi, enquanto recorda aqueles dias em que fugiu com o bebé ao colo. No meio da fuga aflitiva acabou por perder os outros filhos. «Disse para mim que me mataria se não os encontrasse. » Acabou por encontrá‑los. E agora estão ali sentados a seu lado, naquela barraca frágil. Têm todos menos de 8 anos e um olhar que tão depressa parece confuso – como se não percebessem o que lhes aconteceu – como a seguir parece radiante. Um dos rapazes brinca com um baralho de cartas e mostra os dotes de magia – e os irmãos soltam gargalhadas. A mãe põe mais lenha na fogueira. A água ferve para o chá. As refeições ali são básicas, com alimentos doados pelo ACNUR ou sacos de farinha vindos de ONG. «Desde que saí do Iraque nunca mais consegui comprar uma galinha para a minha família», lamenta o pai. «Não tenho um único euro», solta num encolher de ombros.

A fuga dos yazidis durou meses, para alguns mais do que um ano, através do Curdistão, Síria e Turquia. Os que chegaram à Grécia conseguiram‑no como os outros que também fogem da guerra ou da miséria: cruzaram o mar Egeu num bote a partir da costa turca até uma ilha grega. Agora estão à espera de que lhes seja concedido asilo.

Mas os yazidis na Grécia estão cansados de viver na incerteza. «Estamos fartos desta vida, andamos nisto há três anos, estamos destruídos», diz Sheik Nuri. Alguns parecem perto de perder a esperança. «Isto é outra forma de genocídio», diz Hagi Smoqe. Outros pedem ajuda ao mundo. «Queremos que o primeiro‑ministro Costa ouça a nossa voz», apela Peer Suliman, com a esperança de ser ouvido em Portugal, «um país que investe na educação e não gasta dinheiro em armas».

No final de novembro, antes dos primeiros nevões, o ACNUR transferiu os yazidis do campo de Petra Olimpou para quartos e apartamentos temporários no Norte da Grécia, distribuindo‑os pelas localidades de Volvi, Katerini e Chalkidona. Alguns foram para Atenas. Todos aguardam o desenrolar do processo de recolocação na Europa. A maior parte permanece no Curdistão iraquiano e no Norte da Síria, muitos distribuídos por campos de refugiados da região. Há comunidades significativas na Rússia e na Alemanha (quarenta mil em cada país) ou na Arménia e na Geórgia. Portugal começará a receber os primeiros dentro de poucos dias.

Sentado na tenda, Peer Suliman fala pausadamente. «Nós, yazidis, não entramos em conflito com outras religiões: queremos o bem para nós e para os outros.» O juízo é partilhado por Asmail Hussen, um professor com ar cansado. «Somos pacíficos, não matamos ninguém, não escravizamos ninguém, somos gente pobre, só queremos viver.»

[Esta reportagem foi publicada na edição em papel da Notícias Magazine de 29 de janeiro]

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Veja AQUI um vídeo dos refugiados yazidis do campo de Petra Olimpou.