Os vídeos que Ema, de 4 anos, gosta de ver no YouTube deixam o pai abismado: adultos a rebentar balões, a moldar plasticinas, a pintar as mãos com tintas dizendo as cores que usam; a mergulharem bebés de plástico em guaches e a sacarem surpresas de dentro de taças cheias de M&M; a brincar com super-heróis abrindo ovos Kinder no final – as variações são imensas. Pedro Palma olha a filha num silêncio perplexo. Vê-a capaz de passar horas naquilo, se por acaso fosse pai para a deixar horas entregue ao iPad. E ele ali sentado com ela na sala, a filtrar conteúdos, hipnotizado também. Sempre se questionou como é que vídeos assim podem render milhões de visualizações. De onde vem esta febre inominável? E, mais importante ainda, porquê?
O ritmo é lento, focado numa tarefa única, com uma simplicidade apelativa para crianças que processam tanta informação nova todos os dias», diz a psicóloga Filipa Jardim Silva.
«Já conhecia o fenómeno do unboxing [à letra tirar da caixa], em que se vê gente a abrir embalagens e ovos de chocolate, revelando o que contêm. Mas estes vídeos vão além disso», explica Pedro Palma, para quem os media contribuem cada vez mais para a construção do saber, a par da família e da escola. «A Ema tinha 2 anos quando andou numa piscina de bolas, então mostrei-lhe um vídeo de meninos numa piscina igual para incentivá-la a falar.» O sistema automático do YouTube sugeriu outros vídeos, entre eles o de umas mãos a tirarem bonequinhos de tigelas de M&M com uma colher. «Depois desses descobriu mais, de crianças a brincar com bonecos e a desembrulhar surpresas, e de adultos a fazerem o mesmo para um público claramente infantil. Foi o fim da picada», diz o pai com humor.
E a verdade é que estas imagens têm, de facto, uma espécie de efeito hipnótico, afirma a psicóloga clínica Filipa Jardim Silva. «O ritmo é lento, focado numa tarefa única, com uma simplicidade apelativa para crianças que processam tanta informação nova todos os dias.» A duração é adequada: curta e ajustada à capacidade atencional dos pequenos, mantendo-os interessados do princípio ao fim. Também a narrativa das tarefas e a música ambiente ativam uma resposta sensorial meridiana autónoma. «Trata-se de um fenómeno biológico que induz o relaxamento ao produzir uma agradável sensação de formigueiro na cabeça, couro cabeludo ou regiões periféricas do corpo, em resposta a estímulos visuais, auditivos e cognitivos.»
Do ponto de vista emocional, o unboxing é contagiante. Quem vê não é um mero espetador.
Segundo o guru do marketing dinamarquês Martin Lindstrom, autor do livro A Lógica do Consumo (ed. Harper Collins), outra razão que justifica o êxito do unboxing e suas derivações são os neurónios-espelho, ativados quando uma ação realizada por outros está a ser, ao mesmo tempo, observada por nós. «É como se ver e fazer fossem a mesma coisa, com níveis de prazer idênticos», diz. As crianças assistem às gravações de outros a brincar com super-heróis, a abrir ovos-surpresa ou a rebentar balões de água – de novo tudo a acontecer naquele instante diante dos seus olhos – e a impressão que têm é a de serem elas a vivê-las, concorda a psicóloga social Ana Cristina Martins, professora do ISPA – Instituto Universitário: «Do ponto de vista emocional, o unboxing é contagiante. Quem vê não é um mero espetador.»
Foi em 2004 que a publicação de eletrónica de consumo Engadget usou o termo pela primeira vez, num artigo sobre a Nintendo DS. Dois anos mais tarde, alguém nos EUA se lembrou de fazer um vídeo a desembalar um telemóvel Nokia E61 e partilhou com o mundo as suas impressões do momento. Num instante, o unboxing galopou para outras áreas de consumo como a cosmética, compras do supermercado, ovos de chocolate ou plasticina com surpresas dentro e pacotes infantis de jogos, personagens e brinquedos da moda. As derivações entretanto surgidas a partir do unboxing tornam difícil contabilizar o fenómeno (que terá crescido uns 57 por cento em 2014, de acordo com o YouTube). Desconhece-se ainda até que ponto as marcas influenciam a divulgação de produtos nestes canais, já que a maior parte parece surgir da iniciativa dos utilizadores.
«O contágio de emoções e o efeito-surpresa fazem do unboxing um fenómeno fascinante, até viciante», sublinha a psicóloga social Ana Cristina Martins.
Para Daniel Cardoso, doutor em Ciências da Comunicação na vertente de Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, não há aqui tanto um apelo ao consumo de brinquedos mas dos próprios vídeos, tentando posicionar o canal como uma marca. «Do que vejo, estes canais dirigem-se às crianças em termos de conteúdo e apresentação, tentando alcançar visualizações no YouTube e até parcerias futuras de publicidade», aponta. Certo é que os ganhos se traduzem em 1,5 a 3 euros por cada mil visitas, em vídeos que chegam a ter mais de 100 milhões de visualizações. «A consumir construímos significados sociais, processos simbólicos. Este tipo de partilhas vai muito além de um mero apelo ao consumo ao mostrar o que escolhemos, como escolhemos e o prazer que tiramos dessa forma de dar sentido às nossas vidas», justifica o especialista.
Também a psicóloga social Ana Cristina Martins reconhece ser redutor limitar o fenómeno à questão consumista – ainda que se trate de uma poderosa estratégia de neuromarketing, apelando aos tais neurónios-espelho e aos centros de recompensa do cérebro. «O desembrulhar dos produtos é faseado, acompanhado de interjeições e de informações positivas que geram uma atitude favorável em quem vê», explica. Há quase um sentido tátil associado. Um prazer que estimula e nos mantém agarrados justamente por isso. «O contágio de emoções e o efeito-surpresa fazem do unboxing um fenómeno fascinante, até viciante», sublinha.
Sem esquecer o papel educativo, acrescenta Pedro Palma: «Estão sempre a alertar para a tecnologia nas mãos dos miúdos, mas não acho justo proibir a Ema de algo que adora quando também joga à bola na rua, pula no parque, faz puzzles e o que é suposto na idade dela.» O YouTube é um complemento, frisa o pai, averso a extremismos quando foi a ver aqueles vídeos que a filha aprendeu o alfabeto, os números até 30 e as cores, tudo em português e em inglês. «Ela vê os outros brincar e adapta gestos aos seus jogos, quase como se estivesse em interação.» A psicóloga Filipa Jardim Silva apoia o bom senso: não vale a pena diabolizar nada. «Mais importante é saber a que materiais são expostos, por quanto tempo, supervisionados por um adulto.» E assumir que há sempre benefícios e riscos em todos os contextos da vida, seja ela digital ou real.