Por um natal (e uma vida) sem lixo e sem luxo

Texto Catarina Fernandes Martins

Para o primeiro Natal de Aurora, Joana Tadeu escreveu uma carta ao Pai Natal pouco comum. Nessa carta, enviada a todos os familiares que celebrarão a época com a bebé de 4 meses, Joana pediu, em nome da filha, que neste ano não se comprem presentes.

Em vez disso, aqueles que quiserem oferecer alguma coisa à recém­‑nascida deverão contribuir para uma conta em seu nome para que um dia a Aurora «possa comprar todos os objetos de plástico que assim entender, caso eu a eduque mal», brinca a mãe.

O primeiro Natal de Aurora é o segundo Natal tendencialmente sem desperdício do casal Joana Tadeu e Martim Vidigal que há mais de um ano aderiram ao Desperdício Zero, um conceito desenvolvido pela ativista Bea Johnson para designar estilos de vida em que se reduz o lixo e se minimiza tanto quanto possível o desperdício.

Desde 2008 que Bea e a sua família – dois adultos, duas crianças e um cão – consegue colocar o lixo anual num pequeno frasco de vidro. Para isso, a francesa a residir nos Estados Unidos cumpre a regra dos cinco R – recusar (dizer «não» a tudo aquilo que não é necessário), reduzir (questionar as suas necessidades), reutilizar, reciclar (aquilo que não conseguir recusar, reduzir ou reutilizar) e compostar (que em inglês é rot).

Para Joana Tadeu, a ideia importante é substituir os presentes materiais por experiências, o que encaixa na filosofia de desperdício zero: possuir menos e viver mais. [Fotografia de Martim Vidigal]

O estilo de vida Zero Waste é motivado naturalmente pela proteção ambiental e por razões ecológicas, mas também, garantem os seus seguidores, pelos benefícios para a saúde (através da redução do contacto com os tóxicos do plástico ou os químicos de certos detergentes, essencialmente) e para os ganhos nas poupanças familiares – Bea Johnson aponta que comprar a granel permite poupar no mínimo 15 por cento, valor incluído no preço de qualquer produto embalado. Além disso, um estilo de vida mais simples acaba por resultar também na intensificação dos laços sociais.

O exemplo de Bea Johnson inspirou milhares de seguidores por todo o mundo. Depois de lerem os seus livros e verem as suas palestras na internet muitas famílias percebem, pela primeira vez, que grande parte dos plásticos que colocam para reciclagem não podem, na prática, ser reciclados. E decidem eliminar os guardanapos de papel, tornam­‑se vegetarianos, abandonam os detergentes de limpeza, criam lojas a granel.

Neste documento encontra uma lista completa dos sites úteis sobre o Movimento Desperdício Zero em Portugal.

Em Portugal os simpatizantes desta filosofia encontram­‑se na página de Facebook – Zero Waste Portugal/Lixo Zero – seguida por mais de cinco mil pessoas e em vários blogues e perfis de Instagram com dicas e partilha de experiências pessoais em torno das tentativas de eliminar o desperdício.

Para esses, a época natalícia, com as suas montanhas de papel de embrulho e de embalagens de plástico, o desperdício alimentar a triplicar ou as decorações que se renovam consoante a moda, constituem um desafio acrescido.

Ao frequentar cafés e restaurantes, Ana Milhazes Martins passou a fazer pedidos especiais, rejeitando guardanapos de papel ou a folha para proteger os tabuleiros. «Às vezes passo o dia a dizer não. Muitas vezes acham que estou a ser chata.» [Fotografia de André Gouveia/Global Imagens]

Com 7 anos, Ana Milhazes Martins incentivava os vizinhos a apanhar o lixo que se acumulava frequentemente no jardim do prédio onde vivia, no Porto. Quando se intensificou a prática da reciclagem em Portugal, aderiu de imediato.

Em maio de 2016, depois de ler o livro de Bea Johnson [Desperdício Zero, ed. Presença], percebeu que a estas preocupações em torno do lixo faltava uma noção essencial – a de deixar de o produzir. E ao encontrar no exemplo da francesa um desafio que considerou à altura, Ana Milhazes Martins concentrou­‑se em seguir todos os passos sugeridos pela guru do desperdício zero.

Antes de se esforçar por ser desperdício zero, Ana adotou um estilo de vida minimalista. Na prática, isto significa que desde 2011 deixou de haver presentes de Natal.

Ana olhou para o caixote do lixo para perceber onde estava o maior desperdício. Percebeu que gastava demasiadas toalhitas para tratar do cão e substituiu­‑as por T­‑shirts velhas. Depois perguntou a um casal de agricultores a quem compra semanalmente um cabaz de bens de agricultura biológica se podia entregar cascas de comida para que eles fizessem a compostagem. Assim faz até hoje.

Fora de casa foi mais difícil. Ao frequentar cafés e restaurantes, Ana passou a fazer pedidos especiais, rejeitando guardanapos de papel ou a folha colocada para proteger os tabuleiros. «Às vezes passo o dia a dizer não. Tenho de estar com o botão sempre ligado e muitas vezes acham que estou a ser chata.»

Cinco passos para uma vida sem desperdício

  • Adotar guardanapos e lenços de pano.
  • Substituir a escova de dentes de plástico por uma de bambu.
  • Fazer a própria pasta de dentes, os cosméticos e os detergentes de limpeza.
  • Comprar a granel.
  • Utilizar T­‑shirts velhas como panos de cozinha e limpeza.

No verão de 2016, quando percebeu que, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, não era fácil comprar bens a granel em Portugal, Ana contactou diretamente algumas lojas para compilar num documento aquelas que permitiam a comprar de produtos sem recorrer a embalagens de plástico.

Foi por essa altura que, em torno desse documento de Excel, surgiu a comunidade Zero Waste em Portugal. O documento cresceu também e hoje inclui dicas sobre como começar este estilo de vida, receitas de produtos de limpeza e higiene e links para sites de membros da comunidade, em português e inglês. Deu também origem a um site em que todos podem adicionar o nome de lojas de venda de produtos a granel em Portugal.

Antes de se esforçar por ser desperdício zero, Ana adotou um estilo de vida minimalista. Na prática, isto significa que desde 2011 deixou de haver presentes de Natal. Esse foi o primeiro passo para adequar a filosofia à época festiva mais associada ao desperdício.

Ana Rosa diz que os tios­‑avós que viviam no Alentejo eram zero wasters sem saberem. «Tudo era utilizado até romper, todos os restos eram dados aos animais, os sacos de plástico eram lavados e reutilizados.»

Além da eliminação das prendas, Ana concentra também a atenção no desperdício alimentar, encomendando apenas a porção necessária de comida vegetariana com que celebra a quadra. «É tudo entregue sem embalagens descartáveis e eu depois devolvo os recipientes.»

Ana Rosa está a estudar o excel do Desperdício Zero e começa a aplicar algumas regras lá em casa, onde vive com o marido, simpatizante ainda não muito convencido do movimento, e as filhas pequenas, que, à exceção da mais velha, com 6 anos, não têm muita consciência do fenómeno.

Ana Rosa está convencida de que a sua curiosidade por este estilo de vida tem raízes nos tios­‑avós que viviam no Alentejo e que, diz, foram os zero wasters originais. «Tudo era utilizado até romper e não dar para remediar mais, todos os restos eram dados aos animais, os sacos de plástico eram lavados, estendidos e reutilizados.»

«Tínhamos o hábito de não olhar para a origem dos produtos e neste ano já decidimos que só compramos os portugueses», diz Ana Rosa. «E concordámos em reduzir as quantidades de comida pelo menos em metade.» [Fotografia de Orlando Almeida/Global Imagens]
Aplicando algumas dessas lições, Ana adotou um estilo de vida de redução do desperdício, tendo eliminado guardanapos de papel, rolos de papel de cozinha, escovas de dentes de plástico (substituídas por escovas de bambu) e detergentes de limpeza (substituídos por sabão, água, bicarbonato de sódio e essências).

«Esta readaptação demora muito tempo.» Este será o primeiro Natal desde que começou a seguir a filosofia do lixo zero e, talvez por isso, está particularmente empenhada, preocupando­‑se em tentar consciencializar familiares e amigos. «Noto que todos ficam sensibilizados para o tema. Agora vêm ter comigo e dizem que já adotaram x ou y. Esse é o maior prazer.»

Para conter a generosidade dos tios e avós, Ana pediu menos presentes e o esforço de evitar o plástico. Sensibilizados para o tema, a mãe e o irmão de Ana já concordaram com a redução das quantidades de comida à mesa de Natal.

«Tínhamos o hábito de não olhar para a origem dos produtos e neste ano já decidimos que só compramos os portugueses. E concordámos em reduzir as quantidades pelo menos em metade.»

Como a família viveu parte da vida em França, a tradição desenvolvida não foi a do bacalhau, mas a do convívio em torno dos pratos preferidos. O que leva tendencialmente a exageros. «Tínhamos o hábito de não olhar para a origem dos produtos e neste ano já decidimos que só compramos os portugueses. E concordámos em reduzir as quantidades pelo menos em metade.»

O mais difícil para Ana está a ser a questão das decorações natalícias. «Comprávamos sempre um pinheiro natural e eu nem me preocupava com a origem da árvore. Neste ano decidimos reutilizar ramos e fazer uma árvore não tradicional, mas eu e o meu companheiro estamos na dúvida – será que vamos comprar uma árvore? Nem as miúdas se importam com a mudança, nós é que estamos cheios de vícios.»

Poupar e reduzir o desperdício sempre foram preocupações de Sónia Martins. Mas desde que ficou desempregada abraçou um estilo de vida minimalista. Ao descobrir uma filosofia que de certa forma oficializa aquilo que já praticava, multiplicou as regras a seguir. Guardanapos, lenços e mesmo pensos higiénicos foram substituídos por alternativas de pano.

Como vive numa quinta, no Monte da Caparica (Almada), passou também a fazer compostagem. Desde há alguns anos, Sónia faz as prendas que oferece no Natal. Entre os presentes que distribui nesta época incluem­‑se as compotas de tangerina, flores e ervas aromáticas. Apesar de pedir contenção a familiares e amigos, garante que «tenta não condicionar as pessoas».

Sónia Martins faz as prendas que oferece no Natal. Entre os presentes que distribui incluem­‑se as compotas de tangerina, flores e ervas aromáticas. Apesar de pedir contenção a familiares e amigos, garante que «tenta não condicionar as pessoas». [Fotografia de Gerardo Santos/Global Imagens]
Por isso mesmo, recentemente, quando o filho fez anos, recebeu um sem-fim de presentes. Mesmo sem compreender totalmente o estilo de vida da mãe, a criança de 2 anos respondeu naturalmente como se tivesse adotado alguns dos mesmos princípios. Ao receber mais do que uma prenda pelo aniversário, o rapaz, já apegado ao primeiro presente e pensando que um excluiria os outros, recusou os que se seguiram.

Quanto às decorações natalícias, Sónia vai construir uma árvore de Natal origami com revistas velhas, envolvendo o filho e o resto da família no processo. «Mesmo que o resultado final não seja tão bonito, é melhor que ele tenha uma ligação ao Natal por participar numa atividade que junta a família.»

Cinco ideias para um Natal sem desperdício

  • Oferecer experiências em vez de brinquedos aos mais pequenos. Bilhetes para um espetáculo, uma sessão de culinária em casa dos avós, um passeio na praia são exemplos de experiências para fazer em família ou com amigos.
  • Montar uma árvore de Natal não tradicional com ramos ou revistas antigas.
  • Oferecer consumíveis como compotas ou ervas aromáticas aos adultos.
  • Reduzir as quantidades cozinhadas informando os convidados de que a família que acolhe é totalmente responsável pela refeição e cortando as receitas de doces em metade.
  • Preparar frascos de vidro com as sobras da ceia de Natal para todos os convidados.

Anos antes de ser mãe, Joana Tadeu era viciada em compras, utilizando o consumo como terapia, diz. «Ia às compras sozinha, falava o mínimo possível e gastava cem euros por mês em lojas de roupa. Chegava a casa, abandonava o saco e quando dava por ele, meses depois, nada me servia e o talão para troca tinha passado do prazo.»

Há cerca de dois anos passou a prestar mais atenção à questão do excesso de consumo e respetiva produção de lixo e começou a empreender um novo estilo de vida. Em novembro último, depois de quatro meses de licença de maternidade e muita ponderação, Joana deu o passo: despediu­‑se do banco onde trabalhava e passou a dedicar­‑se inteiramente a promover a causa do desperdício zero.

Hoje congela o lixo doméstico para levar para a quinta do pai, não entra num café sem o próprio guardanapo de pano, mudou­‑se para uma casa mais pequena quando a filha nasceu, «para reduzir a pegada ecológica» e prepara­‑se para fazer compostagem no apartamento em Benfica, utilizando minhocas californianas.

Joana tem um fraquinho pelo Natal e pelas decorações natalícias. Não abdica da árvore natural, mas neste ano decidiu comprar uma com raiz para poder depois plantá­‑la. Além disso – e da «carta ao Pai Natal ao contrário» –, tem uma lista de sugestões para que esta época não resulte em desperdício.

É uma espécie de livro de regras que inclui as seguintes sugestões:

  • Dar prendas apenas aos mais próximos, evitando o problema de «dar presentes a quem não se quer dar presentes» (não podendo escapar a isso, Joana sugere dar consumíveis);
  • Acabar com a prática de todos levarem comida para a mesa de Natal, deixando a refeição totalmente a cargo da casa que recebe («se todos levam comida para dez, no final há comida para setenta»);
  • Reduzir as receitas de sobremesas ao meio ou um quarto («em vez de uma montanha de sonhos, apenas dez, o que é compensado pelos outros doces»);
  • Colocar frascos de vidro em cima da mesa no fim da refeição para que todos os convidados levem a sua porção de restos.

De todas as sugestões, aquela que Joana considera mais importante é a de substituir os presentes materiais por experiências, o que se encaixa totalmente na filosofia de desperdício zero – possuir menos e viver mais.

«O que este estilo de vida faz é potenciar a ligação, os laços, a vivência social. Porque, se pensarmos bem, o consumo por si só é uma experiência muito solitária.»

Em vez de oferecer meias ou pijamas aos avós, Joana começou a oferecer workshops de bailado ou bilhetes para teatro. Quando ofereceu a primeira experiência ao avô, este acabou por deixar passar o prazo, sem usufruir dela. Na segunda vez, Joana juntou­‑se a ele e o presente foi aproveitado a dobrar.

Para Joana, esta história ilustra bem aquilo que para si melhor traduz o movimento Desperdício Zero/Lixo Zero. «O que este estilo de vida faz é potenciar a ligação, os laços, a vivência social. Porque, se pensarmos bem, o consumo por si só é uma experiência muito solitária.»