Texto de Sara Dias Oliveira | Fotografia de Maria João Gala/Global Imagens
Dário Madeira, 42 anos, já desenhou alguns esboços da sua terceira coleção de sapatos de mulher para o próximo ano. São desenhos feitos a lápis com a mão esquerda. Dentro de duas semanas, vai focar-se nesse trabalho.
No seu luminoso ateliê, no rés-do-chão de um moderno edifício sem escadas em São João da Madeira, está parte da sua primeira coleção do verão passado e a atual coleção de sapatos e botins de salto alto de várias cores e feitios disponíveis em duas lojas em São João da Madeira e Santa Maria da Feira, e na sua loja online.
Na parede, mandou gravar uma frase que condensa um dos seus maiores pensamentos: «Os sonhos não têm prazo de validade! Respire fundo e siga em frente».
Aos 34 anos, Dário sofreu um AVC hemorrágico. Cuidados intensivos, cuidados intermédios, operações à cabeça, cinco meses internado no hospital. Deixou de falar, deixou de andar. Recuperou com algumas sequelas. O lado direito do corpo não funciona da mesma maneira e tornou-se esquerdino. Algumas palavras, muito poucas, não saem como quer.
Nessas ocasiões, diz, com graça, «apaga tudo, apaga tudo», insiste na palavra e continua a conversa. «Não conseguia falar, não conseguia escrever, mas não queria estar parado», lembra. Saiu do hospital numa cadeira de rodas, hoje anda pelo próprio pé, conduz um carro de mudanças automáticas, faz fisioterapia de manutenção. A energia e a força de vontade saltam à vista.
«Sou uma pessoa muito maluca e é o que digo às pessoas que sofreram um AVC: ‘sejam um bocado malucas porque a vida é andar para a frente’».
Em fevereiro deste ano, depois de uma candidatura para criar o seu próprio negócio enviada à Associação Salvador, e que foi aprovada, Dário Madeira criou a sua marca de calçado Shoes for a Cause.
A sua história está por detrás desta marca: 25% das vendas dos sapatos através da loja online revertem para um fundo destinado a fabricar um sapato confortável, moderno, e adaptado para sobreviventes de AVC, mediante as suas possibilidades económicas que são devidamente analisadas.
O protótipo já existe. É um sapato de pele, com fecho do lado esquerdo para permitir calçar só com a ajuda de uma mão, muito leve, pesa apenas 162 gramas, com visual moderno. Dário já anda a testá-lo em vários pés e está satisfeito com as opiniões que vai recolhendo.
E conhece o meio. Desde os 18 anos, até ao AVC, trabalhou com peles e componentes para calçado, foi comercial da área. Por isso, na sua marca de calçado, só peles de qualidade, escolhidas minuciosamente por si.
«Sou uma pessoa muito maluca e é o que digo às pessoas que sofreram um AVC: ‘Sejam um bocado malucas porque a vida é andar para a frente’», diz. Depois do AVC, foi pai da Francisca que agora tem dois anos. «As pessoas têm de meter na cabeça que têm de tentar alguma coisa na vida. É para andar».
Desistir? Nunca. Nem quando estava na cama do hospital, a perceber tudo o que lhe diziam e sem conseguir falar, pensava em baixar os braços. Usava todas as suas expressões para dizer que estava ali para lutar. Para recuperar. Fazia fisioterapia de manhã à noite. Não queria estar parado. E a família foi sempre o seu maior apoio. O seu pilar, a sua âncora. «Ter uma família é mesmo preciso, mesmo mesmo, mesmo muito».
Dário tornou-se homem muito cedo. Tinha nove anos quando o pai morreu, ficou com a mãe e a irmã. Nas férias de verão da escola, quando os miúdos da sua idade iam para a praia, Dário trabalhava em fábricas de componentes para automóveis. «A primeira coisa é a nossa família, é a melhor coisa do mundo. A vida é hoje, amanhã não se sabe, e ontem não dá para andar para a frente», diz.
O seu corpo já andava a dar sinais. A pressão arterial muito alta, as dores de cabeça que não lhe davam descanso, dois maços de tabaco por dia e no stress do trabalho, havia dias de nove cafés.
A vida ensinou-lhe várias coisas. Há quase oito anos, a 1 de novembro de 2009, depois de ter almoçado com a família da namorada, na primeira apresentação oficial, Dário, então com 34 anos, sofreu um AVC. Nessa tarde, estava a ver um filme com Elisabete Pinho, agora sua mulher, quando deixou de sentir o braço, a boca ficou ao lado, começou a chorar.
Tinha sofrido um AVC grave. O seu corpo já andava a dar sinais. A pressão arterial muito alta, as dores de cabeça que não lhe davam descanso. Fumava dois maços por dia e no stress do trabalho, de um lado para o outro, por várias zonas do país, sobretudo no norte, havia dias de nove cafés.
Um cliente aqui, um cliente ali, uma empresa ali, outra acolá. «Um AVC tem três partes. A primeira é a pergunta por que é que isto aconteceu a mim e não aos outros. A segunda e mais difícil, é reagir ou ficar em casa e deixar de querer saber. A terceira é agir: “anda, vamos embora, a tua vida está aqui, está aqui a tua família, os teus amigos”». «As pessoas têm de ver a vida. A gente tem de arranjar alguma coisa para trabalhar». Foi o que fez.
Dário não está parado. Desenha os seus sapatos, compra as peles, manda fabricar, bate à porta de lojas para vender. A sua marca de calçado tem uma história, tem uma causa: calçar pessoas que sofreram AVC e que podem ter um sapato bonito e confortável, tenham ou não dinheiro. E vale a pena continuar a sonhar? «Sim, ainda estou aqui», responde.
LEIA OUTRAS HISTÓRIAS DE SUPERAÇÃO:
Aos 24 anos, Frederico sofreu um AVC um dia depois do seu casamento