Tozé Brito: «Estávamos nós no haxixe, já estavam os Beatles no LSD»

Entrevista Alexandra Tavares-Teles | Fotografias Jorge Simão

São 11 da manhã. Que música já ouviu?
A caminho da SPA, o álbum O, do Damien Rice. É dos que nunca me canso de ouvir.

Tem uma banda favorita?
É complicado escolher uma. Os Beatles foram a primeira que me bateu forte, e talvez a que mais me influenciou, mas os Stones, Cream, Beach Boys, Pink Floyd, Crosby, Stills, Nash and Young e mais tarde os U2, Ramones, Nirvana, Coldplay e a Dave Mattews Band estão todas na primeira divisão. E só estamos a falar de bandas, houve artistas solistas, e acima de tudo compositores e autores, que foram ainda mais importantes na minha formação musical.

Que vozes o comovem?
As que cantam palavras e têm melodias que me comovem. Claro que se uma voz for boa e se o timbre for distinto, melhor ainda. Mas uma voz, só por si, não me comove, o que ela canta sim. Comovem-me Brel, Juan Manel Serrat, Chico Buarque. Buarque, por exemplo, não tendo uma grande voz, diz de forma maravilhosa o que canta.

Como define a sua voz?
Até gravar com o Paulo de Carvalho achava-a suficiente para cantar em grupo, mas não a solo. Depois de ouvir lado a lado com a do Paulo percebi que o timbre e a interpretação também são importantes. Nas vozes intimistas, as palavras ganham outro peso.

Desempenhou todos os papéis possíveis no meio musical português. Estava à espera desta carreira – que faz agora 50 anos?
Sinceramente não, nunca esperei que o meu trajeto musical me levasse por tantos caminhos diferentes. Fiz realmente tudo o que podia fazer num país como o nosso, e quando olho para trás só posso considerar-me um homem de muita sorte, porque sem sorte qualquer grau de talento é curto.

Que lugar tem na música portuguesa?
Tenho o meu lugar e isso chega-me, porque tenho também a noção de que ninguém resiste cinquenta anos neste meio por acaso.

«Parece um lugar-comum responder assim, mas escolher uma música minha é como escolher um filho, não tenho uma favorita.»

Tem registadas na SPA mais de quinhentas canções. Como é o processo de escrita?
Por regra, as horas de escrita são à noite. Mas, porque também podem ser a qualquer hora e em qualquer lugar, tenho violas e blocos de notas por todo o lado. Quando fumava, os cigarros eram imprescindíveis. Fumava três maços por dia, andava sempre com dois maços nos bolsos e com um volume na mala de trabalho. Parei de fumar no dia 2 de fevereiro de 1991, às 04h20 da tarde, com a ajuda da acupuntura. Ia fazer 40 anos.

Tinha a noção de que haviam de o matar?
Estava já com um pequeno enfisema. Por isso, prometi a mim mesmo deixar de fumar antes dos 40. Durante um ano não consegui escrever. Bloqueei.

Escreve muito sobre o amor.
Todos os meus erros e fraquezas são de amor. É um tema inesgotável que toca toda a gente.

Romântico incorrigível?
Romântico sim, sem dúvida. Corrigível sempre que necessário.

Das quinhentas músicas que criou, tem uma favorita?
Parece um lugar-comum responder assim, mas é como escolher um filho, não tenho uma favorita. Sei bem que dessas quinhentas talvez umas cem sejam muito superiores às restantes, mas favorita não tenho.

«Nas grandes canções comerciais, em geral, nasce primeiro a música. Depois, basta alinhavar uma boa história e traduzi­-la em palavras que encaixem bem. Assumo que das quinhentas e tal canções que escrevi metade das letras são simplistas.»

O que nasce primeiro: letra ou música?
Depende e tem efeito no resultado final. Se primeiro a letra, as palavras predominam na canção. O protagonismo é da letra, até porque nasceu livre, sem formatação. Quando a música nasce primeiro, dá-se o inverso. A música passa a ser o fator dominante e a letra torna-se num acompanhamento para trautear. Nas grandes canções comerciais, em geral, nasce primeiro a música. Depois, basta alinhavar uma boa história e traduzi­-la em palavras que encaixem bem. Assumo que das quinhentas e tal canções que escrevi metade das letras são simplistas.

Tipo Ok ok, Ok ko, das Doce?
Essa por acaso não é minha, mas escrevi muitas coisas para as Doce e elas são um excelente exemplo do que acabei de dizer.

«Uma da manhã ei, duas da manhã»?
Essa sim é minha, e é para pôr as pessoas a cantar imediatamente. É o formato Festival da Canção, serviu para ganhar uma edição.

«Sei que matei os sonhos de algumas pessoas»

É um dos rostos mais associados ao Festival da Canção – que Portugal acabou de ganhar, internacionalmente, depois de muitos anos de maus resultados. Até que ponto foi importante na sua carreira?
Fui a doze, ganhei três. Boa média. Mas sempre percebi que o gosto do público português tem pouco que ver com o que se passa na Eurovisão.

Este ano não…
As canções que aqui ganharam – por vezes grandes canções, especialmente em 60/70 – lá fora não conseguiam resultados. A Tourada, do Tordo, ou a Desfolhada, da Simone, tinham muito do peso na letra. Lá fora, isso conta pouco. Só foi possível ganharmos a Eurovisão este ano porque houve um júri, do qual por acaso fiz parte, que ao votar de forma expressiva a canção do Salvador evitou a vitória do concorrente mais votado pelo público. Mas, sabe, ganhar a Eurovisão dura o que dura. Para nós, o importante era ganhar o festival cá dentro. Nem era preciso ganhar, a simples presença na final tinha um reflexo brutal no número de espetáculos por verão.

«Poucos entenderam como pude escrever canções proibidas pela censura antes da revolução e logo a seguir, em 1976, fazer canções de amor, desprovidas de crítica social.»

Lançou grupos de grande sucesso. Doce e Gemini, por exemplo. O que significaram e que papel lhes dá na sua carreira?
Foram dois grupos que ajudaram em muito a estabelecer o meu nome como autor e compositor, acima de tudo. Ajudaram-me também a perceber que o mais difícil é escrever canções simples mas eficazes e acessíveis a todos, porque complicar e chegar a poucos é bem mais fácil, embora os críticos tenham muita dificuldade em admiti-lo.

Como lidava com a crítica?
Uma relação pacífica mas esquizofrénica. Poucos entenderam como pude escrever canções proibidas pela censura antes da revolução e logo a seguir, em 1976, fazer canções de amor, desprovidas de crítica social. Os grandes ataques vieram sempre por essa razão.

As Doce. Em 82, 83, 84 estavam na moda. Como viveu esse fenómeno?
Era uma coisa brutal. O grupo começava a atuar no dia 1 de julho e acabava a 30 de setembro, três meses em que praticamente não iam a casa. Uma loucura mesmo. Que implicava um desgaste tremendo, que por vezes se fazia sentir.

Como assim?
Como conto no livro, uma noite, às quatro da manhã, telefonaram-me a dizer que estavam no Porto e que o grupo tinha acabado – que uma tinha feito isto, a outra aquilo, que uma tinha desligado o microfone, enfim, coisas sem importância. Fui imediatamente para o Porto. Cheguei às nove da manhã e fomos conversar. Eu dizia-lhes: «Estão loucas? Querem destruir um poço de petróleo? Entendam-se, que não voltarão a ter um grupo como este.»

Como editor, teve nas mãos as aspirações e os sonhos de muita gente. De que forma lidou com esse poder?
Sei que matei os sonhos de algumas pessoas e essa foi das coisas mais complicadas que tive de fazer na vida. Comecei como A&R (artistas e repertório) e essa função, numa companhia de discos, passa por ouvir e selecionar artistas e repertório, descobrir talento e escolher canções que sirvam esse talento. Por isso, ouvi centenas e centenas de pessoas por ano, centenas e centenas de cassetes. Algumas eram devolvidas imediatamente.

Outras tinham algum valor. Por exemplo?
Ouvi pela primeira vez a Ana Moura numa dessas cassetes. O grupo era estranho, canções fracas, muito de baile, mas depois havia aquela voz incrível. Pedi aos meus colaboradores que me descobrissem aquela miúda. A primeira vez que falei com a Ana perguntei-lhe se só cantava aquilo. «Canto fado todas as quintas no Senhor Vinho.» E eu lá fui. Ao fim de três fados, disse-lhe que íamos gravar. Gravar fado. E foi assim que uma cassete que não valia nada deu a conhecer uma grande voz. Esse é um dos grandes prazeres daquele trabalho. Nunca abdiquei de ser A&R, mesmo quando já tinha funções de presidente das editoras. Era o que mais gostava de fazer.

O que define um bom editor?
Acima de tudo o respeito pelo artista, pelo ser humano, pelas suas opções estéticas e artísticas. Ninguém pode ser o que não é por natureza. O passo seguinte é ter a noção perfeita de que cada artista tem um público distinto, e que é primordialmente esse público que devemos todos respeitar, porque cada caso é um caso e se o trabalho é mal dirigido hipotecamos muitas vezes o sucesso.

«Enganei-me algumas vezes, como é óbvio, mas tenho a certeza de que o balanço é bastante positivo, foram muito mais as vezes em que acertei em cheio do que aquelas em que me enganei ou me enganaram.»

Que lugar tem na edição discográfica?
Não gostaria de ser eu a responder a essa pergunta. Tenho a noção perfeita do que fiz enquanto editor, mas não me compete a mim julgar o mérito do meu trabalho, que sejam aqueles que trabalharam comigo a fazê-lo.

Como era o relacionamento com a concorrência?
Muito bom. Não me lembro de ter tido um problema sério com ninguém. Éramos obviamente concorrentes, tivemos as nossas pequenas guerras, mas acima de tudo está para mim sempre o respeito. E curiosamente, pensando bem, quanto mais concorrentes mais amigos fomos.

Não é um mundo fácil. É verdade que havia propostas desonestas?
Havia muita gente que fazia propostas desonestas. Do tipo «se nos der mais dinheiro para gravar damos-lhe uma parte». Ouvi muitas propostas destas. Mas desde a história das tesouradas do meu pai no meu cabelo que aprendi a lição, o dinheiro, sendo importante, estará para mim sempre num plano muito inferior à minha dignidade.

A certa altura, despediu os Heróis do Mar que acabariam por ir para a Valentim de Carvalho (ficariam mais tarde com os Madredeus, por via de Pedro Ayres Magalhães). Arrependeu-se?
Não, de forma nenhuma, aliás não os despedi, foram eles que quiseram sair da então Polygram e os problemas que os levaram a querer partir não eram diretamente comigo, ficámos e somos para sempre amigos.

«Não é mesmo nada fácil lidar com primas-donas e eu tive de lidar com muitas em cinquenta anos de música. Mas diria que todos os artistas têm um ego forte e que o problema é muitas vezes a autoestima não estar ao mesmo nível.»

Enganou-se muitas vezes?
Enganei-me algumas vezes, como é óbvio, mas tenho a certeza de que o balanço é bastante positivo, foram muito mais as vezes em que acertei em cheio do que aquelas em que me enganei ou me enganaram.

Não é fácil lidar com primas-donas.
Não é mesmo nada fácil lidar com primas-donas e eu tive de lidar com muitas em cinquenta anos de música, antes, durante e depois dos meus anos de indústria discográfica. Mas diria que invariavelmente todos os artistas têm um ego forte e que o problema é muitas vezes a autoestima não estar ao mesmo nível. Sem pessoalizar, quando o sucesso nas suas carreiras não corresponde às suas expetativas, e porque a culpa para eles nunca é deles, tornam-se nos casos mais complicados.

Carlos Paredes odiava gravar. Porquê?
O Carlos foi um dos músicos mais geniais com quem tive a honra de trabalhar, mas tudo o que fosse entrar em estúdio para gravar era um tormento. A ideia de que aquilo que ia tocar ficaria registado para sempre aterrorizava-o, inventava mil desculpas e não gravava. O último álbum dele que produzi foi o Espelho de Sons. Mas para isso, tive de lhe dizer que o Pedro Caldeira Cabral ia gravar na íntegra a obra do avô e do pai dele. Mal lho disse, e depois de meses de hesitações, em duas noites gravou todo o álbum. A vontade de ser ele a gravar essas obras foi bem maior do que a aversão que tinha a qualquer estúdio. Valeu bem a pena inventar aquele fantasma.

«Tive dúvidas se iria estar à altura de gravar um álbum com o Paulo de Carvalho»

Como autor fez muitas parcerias. Prefere-as à composição a solo?
Há dois tipos de parcerias. Com o Zé Carlos Ary dos Santos o processo era muito simples, ele encaixava qualquer letra em qualquer música, por mais torcida que esta fosse. As tónicas caíam nos sítios certos e, veja, musicalmente ele era quase surdo. Enquanto lhe cantava a música, ele tamborilava com os dedos no tampo da mesa: «um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, sete sílabas, tónica na segunda e na quinta», dizia e anotava, em hieróglifos. Mas o Zé Carlos era uma exceção genial. Com o Zé Cid, por exemplo, valia tudo. Música primeiro, música depois, tudo ao mesmo tempo, tanto fazia. Outro tipo de genialidade, também excecional.

E com Paulo de Carvalho?
O Paulo não é prioritariamente um letrista e em regra fazia a música à frente. Com o meu irmão Pedro, que não escreve uma palavra mas é um belíssimo músico, também escrevi quase sempre as letras depois, embora o À Tua Espera, da Simone, tenha nascido ao contrário, primeiro a letra, depois a música, e talvez seja a melhor que escrevemos.

Com o Paulo de Carvalho fez parceria vocal e gravaram um disco. Como foi cantar ao lado da que considera ser a melhor voz deste país?
Absolutamente inesquecível. Tive sérias dúvidas se iria estar à altura de gravar esse álbum com ele, mas à medida que fomos avançando fui percebendo que as nossas vozes colavam bem, mesmo sendo a dele infinitamente melhor do que a minha. Foi aliás ter gravado esse Cantar de Amigos que me convenceu de que poderia gravar a solo, como vim a fazer mais tarde.

«Continuo doente do Benfica e a culpa é do Eusébio, Coluna e companhia. Tinha 10 anos quando o Benfica foi campeão europeu e ver jogar aquela equipa fabulosa fez de mim para sempre benfiquista.»

Não escreveu só música. Fez textos de humor para Herman José. O célebre Estebes.
Escrever para o Herman foi um delírio. Na altura do Tal Canal, ele queria fazer uma coisa sobre futebol, mas a verdade é que não percebia nada de futebol. A sério, não sabia sequer o que era um penalty. Falou comigo, aceitei o desafio e propus que os textos fossem escritos em parceria com o António Tavares-Teles. O que nos ríamos os dois enquanto escrevíamos. O Herman apanhava o essencial e ia por ali fora com a genialidade dele.

Assim nasceu o Estebes. Textos de um portista e de um benfiquista. Um benfiquista que veio do Porto. Continua doente do Benfica?
Continuo doente do Benfica e a culpa é do Eusébio, Coluna e companhia. Tinha 10 anos quando o Benfica foi campeão europeu e ver jogar aquela equipa fabulosa fez de mim para sempre benfiquista, tal como alguns dos meus amigos mais novos são hoje portistas por causa da grande equipa do Porto que foi também campeã europeia.

Tozé, Herman e o terrorismo. Que triângulo é esse?
São duas e terríficas. O Sting tinha-me convidado para ir à Toscana, à quinta dele, e eu levei o Herman, que na altura tinha um programa de entrevistas. No hotel, em Florença, ligámos e assistimos em direto aos ataques terroristas em Nova Iorque. Atónitos. Era o dia 11 de setembro de 2001. Dois anos e meio depois, viajámos de novo juntos, desta vez a Londres para ver o Jamie Cullum. No dia de regresso, aconteceram os atentados de Madrid, em Atocha. Foi também o dia em que decidimos que não voltaríamos a viajar juntos.

Histórias de viagens de um músico: um acidente de helicóptero em Nova Iorque; a sorte grande de um taxista polaco, que se cruzou consigo e com o Paulo de Carvalho.
São histórias que me marcaram muito e que estão contadas ao pormenor na minha biografia Eu Sou Outro Tu, escrita por Luciano Reis e editada este ano. Em Nova Iorque, com o Manel Faria dos Trovante e o Carlos Martins, um outro amigo nosso, fomos obrigados a fazer um crash landing em pleno Central Park, porque o motor do helicóptero pegou fogo e não morremos todos por milagre. Na Polónia, depois de participarmos num festival em que nos pagaram em zelotes, moeda que não conseguiríamos cambiar fora do país, decidimos oferecer todo esse dinheiro ao motorista de táxi que em Varsóvia nos levou ao aeroporto. Ainda hoje fecho os olhos e vejo a cara dele, atónito, com o que deveria representar anos de trabalho para ele nas mãos, depois de uma corrida de táxi. São momentos desses que nos fazem dar mais valor à nossa vida e à dos outros.

Quarteto 1111, nos anos 1970. Da esquerda para a direita, José Cid, Mike Sergeant, Tozé Brito e Michel Silveira.

«Estávamos nós no haxixe, já estavam os Beatles no LSD»

Finais dos anos 1960, início dos seventies, era baixista dos Pop Five, uma banda reconhecida, e do Quarteto 1111, a líder. Percorriam o país, em concertos. Como foram esses tempos.
Tempos épicos, basta dizer que íamos do Porto a Lisboa e demorávamos sete horas a chegar, com uma carrinha cheia de instrumentos e alguns de nós lá dentro. Outros num carro. Tempos em que não havia roadies para carregar o material, fazíamos nós tudo. Devo dizer que aquilo não tinha graça nenhuma, era trabalho puro e duro, à mistura com coisas estranhíssimas. Tocámos em cima de fardos de palha, de tratores, em palcos montados em locais surreais. Numa das vezes, entre nós e público passava uma estrada. Noutras, faltava a corrente, deixando às escuras o palco e a vila. A estrada, naquela altura, era isso.

Tempos pré-históricos. Nem vale a pena perguntar por camarins, certo?
Zero. Em geral, vestíamo-nos na casa do padre. E comida resumia-se a umas sanduíches, à nossa custa.

Os contratos não previam uma refeição?
Quase nenhum. Lembro-me de um contrato com um casino que previa uma ceia no final do espetáculo, coisa simples, nada de luxos. Porém, às três da manhã a cozinha tinha fechado. Mostrámos o contrato, reclamámos mas não se demoveram. Bom, aí, o nosso manager começou a partir pratos. Trás. Um prato, dois pratos, por aí fora. E lá cederam. Mas em regra, os contratos não previam alimentação. E mesmo em relação ao cachet, enfim, era preciso cuidado. A atuação não começava sem que o manager levantasse o dedo como prova de que já tinha recebido o cachet. Que era pago em notas de 20, 50, 100 escudos. Eram sacos de notas.

«Em 1970, o Quarteto 1111 ganhava vinte contos por espetáculo. Tocava-se até as quatro da manhã e depois era preciso desmontar tudo. A caravana consistia numa carrinha e num carro. Só não fomos assaltados porque o nosso manager tinha licença de porte de arma. Dava uns tiros para o ar e os tipos fugiam como coelhos.»

Nunca foram assaltados?
Por mero acaso. Corríamos o país todo tocando em festas populares e romarias, por vezes sítios mal frequentados. E de vez em quando havia sustos. Não tenho provas de que seriam pessoas ligadas às comissões de festas, mas a verdade é que eram os que tinham acesso direto a essa informação. Na altura era muito dinheiro. Em 1970, o 1111 ganhava vinte contos por espetáculo. Imagine 20 contos em sacos de plástico em notas pequenas. Nessa fase, os espetáculos acabavam sistematicamente às cinco ou seis da manhã. Tocava-se até as quatro da manhã e depois era preciso desmontar tudo. A caravana consistia numa carrinha e num carro, a carrinha para os instrumentos e nós no carro. De vez em quando lá encontrávamos a estrada barrada com árvores ou pedregulhos e só não chegámos a ser assaltados porque o nosso manager tinha licença de porte de arma. Dava uns tiros para o ar e os tipos fugiam como coelhos. Ouviam-se.

Uma vida muito pouco glamorosa.
Horrível. No fim do verão estávamos exaustos. Sobretudo o Zé Cid, que era o vocalista,
e eu, que também cantava. Até porque, naquele tempo e naquelas idades, não havia grandes cuidados com a voz. Quando necessário, tomava-se uma injeção de cortisona e estava feito.

«Desengane-se quem pensa que aquele Portugal era muito casto, muito puro e muito conservador. Esqueçam. As meninas entravam-nos pelos quartos de hotel em sítios à época longínquos, como Vila Real ou Viseu.»

E mais alguma coisa que vos mantivesse acordados e com energia, não?
Tudo isso, se bem que no 1111 nem toda a gente experimentava. O Zé Cid, por exemplo, nunca tocou em nada. Nem uma passa. No meu caso, e só posso falar por mim, foi mais experimentalismo do que outra coisa. Estamos a falar dos anos em que estas coisas começaram a chegar a Portugal. Os cabelos começavam a ser verdadeiramente compridos, os Porfírios vendiam as Levi’s e algumas camisas com padrões mais arrojados e já não era imperioso ir a Londres comprar roupa de palco. E as drogas, e estamos a falar de drogas leves, também chegaram. Vinham sobretudo de Marrocos. O haxixe era bom, e os fornecedores de confiança. Estávamos nós no haxixe, já estavam os Beatles no LSD. Cheguei lá mas só muito mais tarde. Aliás, daí não passei. Cheguei à conclusão de que não ajudava em nada a minha criatividade. Não me acrescentava absolutamente nada, a não ser vários ataques de riso em cima do palco, a despropósito. O Zé Cid, que nem uma cerveja bebia, nem fumava, ficava louco. Eu, nessa fase, fumava dois para três maços por dia. Cheguei aos três maços.

Drogas, festas, mulheres bonitas. O lado glamoroso.
Havia, claro, um lado glamoroso. Era solteiro, tinha disponibilidade e os ataques eram idênticos aos de hoje. Desengane-se quem pensa que aquele Portugal era muito casto, muito puro e muito conservador. Esqueçam. As meninas entravam-nos pelos quartos de hotel em sítios à época longínquos, como Vila Real ou Viseu.

Vila Real e Viseu?
Sim, sim, até mais na província. Em 70, 71, 72 acontecia em qualquer lado. As miúdas subornavam os porteiros.

O 1111 era a banda com mais canções proibidas pela censura. Um álbum inteiro, o primeiro, foi proibido. Das dez canções só duas não foram censuradas. O disco acabou por sair mas, claro, apenas por umas horas.

Nunca diziam não?
Dizíamos não em noventa por cento dos casos. Desde logo porque algumas eram desengraçadas mas sobretudo por causa da idade. As raparigas podiam ser um problema. Olhava-se para aquelas miúdas e via-se perfeitamente que não tinham 18 anos. E mesmo que tivessem era preciso perceber que cuidados tinham. O perigo era muito grande. Quando tínhamos tempo para as conhecer era diferente. Por exemplo, durante dois anos fizemos o verão a tocar em Albufeira e, portanto, fomos criando uma relação com algumas fãs. Há dessa altura uma história engraçada. Uma miúda interessada, a quem disse na brincadeira «OK, tudo bem, desde que peças autorização ao meu manager». E ela foi mesmo pedir. [risos]

E como era em Lisboa?
Conhecíamos raparigas muito bonitas, neste caso, com uma agravante – como consumiam o mesmo tipo de substâncias, a empatia era quase obrigatória. Não há nisto exagero – nesses tempos os músicos eram as grandes vedetas. Em Portugal e em todo o mundo. Estávamos em cima do palco e tínhamos à nossa frente fãs completamente rendidas.

«Não se falava de política lá em casa»

Vivia-se em ditadura. Sentiam-se vigiados?
Era ver os agentes da PIDE em Vilar de Mouros, em 1971, na que é considerada a primeira edição do festival, com o Elton John e o Manfred Mann e na qual o 111 também tocou. Vinte mil pessoas concentradas levaram muitos pides a Vilar de Mouros. Sabíamos bem quem eles eram, notavam-se à légua. Estavam muito atentos ao que diziam sobretudo as bandas nacionais. Por isso, nesse festival não tocámos as canções proibidas. O 1111 era a banda com mais canções proibidas pela censura. Um álbum inteiro, o primeiro, foi proibido. Das dez canções só duas não foram censuradas. O disco acabou por sair mas, claro, apenas por umas horas.

Nessa fase já tinha trocado o Porto por Cascais. Uma terra que é uma marca na sua vida. Porquê?
Nem me imagino a viver noutro sítio. No Porto, vivia perto do mar. Fui para Cascais para estar junto do mar. Sem mar, sinto-me um pouco perdido. Mas Cascais era mais. Naquela época tinha uma noite fabulosa. As boas discotecas na área de Lisboa estavam em Cascais e enchiam todas as noites com portugueses e turistas. Os porteiros das discotecas ligavam-me para casa a avisar das entradas: «Chegaram duas inglesas, três suecas, quatro espanholas» e nós saíamos a correr. Cascais também era isto.

«Depois de três anos de excessos, conheci a Tessa, apaixonei-me por ela, pela calma e paz que me transmitia, e percebi que seria a mulher ideal para partilhar a minha vida.»

Em 1972, com 21 anos, casa.
Felizmente. Depois de três anos de excessos, conheci a Tessa, apaixonei-me por ela, pela calma e paz que me transmitia, e percebi que seria a mulher ideal para partilhar a minha vida.

Jovem, bem-sucedido, na carreira desejada, mas com a espada da guerra colonial sobre a cabeça. Como lidava com esse futuro?
Tomando bem cedo a decisão de sair de Portugal. Como passava a vida a viajar com a banda, tinha passaporte. Em 1972, passei a fronteira a salto. Segui para Londres. A minha mulher já lá estava. Vivi lá dois anos.

Longe do mar.
Em Londres foi complicado. Não tive de passar pelos restaurantes e pelos bares, a servir às mesas, porque consegui um emprego fabuloso, de tradutor, numa companhia de seguros. Ganhava cem libras por mês. Mas a minha vida era dura: das nove da manhã às cinco da tarde trabalhava na companhia, corria depois para a faculdade de psicologia, e ali ficava das seis às nove. Chegava a casa depois das dez para jantar e para me levantar às seis e meia da manhã do dia seguinte. Valiam-me alguns fins de semana em que me divertia a tocar em bares. Noutros, tinha de estudar, foi muito duro.

Choque frontal com a vida que levava daqui.
Horários, trabalho e clima. E na perspetiva de ter de ficar ali a vida inteira. Por isso fui estudar psicologia. Era mais uma arma.

O curso que não tirou cá. Como é que os pais reagiram quando abandonou o estudo?
Foi muito complicado. O meu pai tinha uma ideia correta da música, ou seja, que é um caminho em que poucos têm sucesso. «Olha à tua volta», disse-me. Não me convenceu. Eu estava preparado para ir para um casino tocar todas as noites e ficar ali até morrer, se fosse preciso, agarrado ao baixo. E disse-lho.

Há de resto uma tradição musical na família.
E não fui o único a segui-la. O meu irmão Pedro é um ótimo músico, compôs muito comigo. Essa tradição vem do lado do meu pai e da minha avó paterna, filha de um professor de música e sobrinha de um maestro.

A avó casada com o avô autoritário?
Muito autoritário. À mesa, ninguém abria a boca antes de ele dar a refeição por iniciada.

Fale-me das suas origens.
Nasci numa família de classe média pura e dura. O meu avô era diretor do BES e o meu pai chegou a administrador da Tranquilidade. Na mesma casa, uma casa enorme em Paranhos, viviam os meus avós e os meus pais. Cresci rodeado de mulheres: a avó, a pessoa que estava sempre connosco, e três empregadas. Vivi desafogadamente uma infância tranquila. Não se falava de política lá em casa. Era tabu. Não sendo nada a favor do regime, o meu pai não queria confusões.

«Tinha 13 anos e, pela primeira vez, o meu cabelo estava com um tamanho a que achava graça. Foi então que fiz a asneira: tirei dinheiro do porta-moedas da minha avó para comprar um SG Gigante. Perante a minha confissão, o meu pai cortou-me o cabelo a eito. O que eu chorei.»

Não era só confusões. Há uma história de um cabelo cortado à tesourada.
Essa foi das piores coisas que me aconteceram na vida, tinha 13 anos e, pela primeira vez, o meu cabelo estava com um tamanho a que achava graça. Foi então que fiz a asneira: tirei dinheiro do porta-moedas da minha avó para comprar um SG Gigante achando que ela não daria conta. Deu. E disse ao meu pai que só poderiam ter sido os miúdos (eu ou algum dos meus irmãos). Como não podia deixar que os meus irmãos fossem acusados, confessei. O meu pai, com uma calma olímpica, de tesoura na mão cortou -me o cabelo a eito. O que chorei.

Tortura.
Que não acabou ali. No dia seguinte, às nove da manhã, levou-me ao senhor Fonseca para rapar o cabelo, mais uma dor. Mas o pior, ainda pior, veio depois: nessa noite, fui obrigado a fazer um périplo pelas casas de todos os primos e pedir desculpas a toda a família.

Remédio santo?
Absolutamente. Não consigo roubar sequer uma carica.

«Pela vida fora, o meu pai passou a ser um dos meus maiores fãs»

Mal andava e já cantava «Uma casa portuguesa cum cheteja». A música é uma das primeiras memórias?
A música faz parte das minhas primeiras memórias. Lembro-me perfeitamente de ver o meu pai tocar e cantar, às vezes para eu comer. Teria eu uns 2 anos ou menos.

Quando e como começa a ganhar forma a certeza de que seria esse o caminho?
Com 8 anos fui aprender a tocar piano, não achei graça nenhuma, devo dizer, e hoje tenho imensa pena de não saber tocar bem esse instrumento. Depois, com 10, passei para a viola. Gostei, desde logo porque sendo portátil podia levá-la para o liceu e tocar com amigos. Com 14 anos, formo o meu primeiro grupo. Já então sabia que gostava de música e queria ser músico. Só não fui para o conservatório porque entrei muito novo para grupos populares e visíveis. Fiquei sem tempo para estudar. Com 16 anos (1967) gravei o meu primeiro álbum. A primeira canção que escrevi está nesse vinil, chama-se «You’ll see». Porque nesse tempo tudo o que fosse cantar em português para mim era piroso. O que eu mudei. [risos].

«Sempre me aconteceu acordar a meio da noite com uma ideia. Aconteceu-me hoje mesmo. Acordei às seis da manhã com uma ideia para uma canção. Neste caso, a letra. Mas pode ser uma sequência melódica.»

Forma o Pop Five com Paulo Godinho, irmão de Sérgio Godinho, em 1967. O Porto é muito musical: Rui Veloso, Reininho, Pedro Osório, José Mário Branco, Abrunhosa. O que tem a cidade de especial?
À época, a pouca oferta em diversões e ocupação dos tempos livres. Havia meia dúzia de cinemas, não se praticava muito desporto, restava a música. Que cruzava gerações. Por exemplo, o Sérgio (Godinho), que era um pouco mais velho, ensinou-me a tocar algumas músicas.

Como chega ao 1111?
O Zé Cid viu-me tocar numa festa em Penafiel e convidou-me. Tinham ficado sem baixista. É aí que começa a tal guerra cega com o meu pai. O meu pai disse não, não podes deixar de estudar. Respondi «sim, vou deixar de estudar e vou ser músico». Na expetativa de que dali a seis meses estivesse a bater-lhe à porta, o meu pai disse-me «então vai e vira-te». Virei-me mesmo e pela vida fora passou a ser um dos meus maiores fãs.

Já então andava sempre acompanhado de um caderno de notas?
Desde miúdo. Sempre me aconteceu acordar a meio da noite com uma ideia. Aconteceu-me hoje mesmo. Acordei às seis da manhã com uma ideia para uma canção. Neste caso, a letra. Mas pode ser uma sequência melódica e a meio da noite lá estou eu a cantar para o dictafone. Naqueles tempos era mesmo com caderninhos. Passei a andar com um caderno, um pequeno teclado e um gravador.