As primeiras top model portuguesas

Texto Sónia Salgueiro Silva

«Tenho 47 anos. Estranho era se as coisas não tivessem mudado.» Começa assim a conversa com Sofia Aparício, a camaleónica manequim que em 1990 venceu o concurso Miss Wonderland, em 1992 o Look of the Year (agora Elite Model Look) e que ainda há três anos (2014) desfilou na Moda Lisboa «por amizade ao Filipe Faísca». A verdade é que Sofia, hoje atriz, não tem saudades nenhumas dos tempos dourados que viveu na passerelle. Chegou à moda aos 13 anos, pela mão do costureiro José Carlos (1950-2004), cujo salão de cabeleireiro frequentava com a mãe.

Foi ele quem a «mascarou de senhora» e lhe tirou as primeiras fotografias. Até aí nunca tinha pensado desfilar. «Queria ser astronauta ou arquiteta, sempre fui boa aluna e sempre tive boas notas. E sempre fui muito tímida. Mas quando me vi em frente à câmara fotográfica comecei a brincar e descobri qualquer coisa em mim. Acho que sempre gostei de brincar às bonecas.»

O prazer que lhe dava viver esse faz-de-conta, levou-a ao primeiro trabalho profissional. Tinha 15 anos e desfilou para Ana Salazar. Nervos, recorda, não tinha. Antes disso frequentara o curso de Manequim – incentivada pela mãe que a achava «um bocadinho maria-rapaz» – de Brian McCarthy, o inglês que desde 1970 formou modelos em Portugal e que foi o responsável por pôr uma geração a desfilar.

«Ainda hoje, ninguém anda na passerelle como ele nos ensinava», diz a ex-manequim Yolanda Lobo, 60 anos, hoje a trabalhar em decoração de interiores. «Ele era muito bom. Faz muita falta a um manequim saber andar, saber pisar.»

Em 1981, Yolanda Lobo, hoje com 60 anos, tornou–se a primeira manequim portuguesa a desfilar em Paris. «Íamos para todo o lado sozinhas. De comboio, carro, avião. Quando fui para França paguei tudo, até o alojamento.»

«Eu comecei na moda tarde, já tinha 24 anos, mas tinha tanto trabalho que ao fim de um ano a desfilar em Portugal, onde fiz tudo o que havia para fazer, quis experimentar ir para França.» Em 1981, Yolanda Lobo tornou-se a primeira portuguesa a desfilar em Paris. Como na altura ainda não existiam agências de modelos (as primeiras datam do final da década de 80), teve de fazer tudo sozinha. «Íamos para todo o lado sozinhas. De comboio, carro, avião. Quando fui para Paris paguei tudo, até o alojamento.»

E correu-lhe bem. Foi bem-sucedida. Durante três anos viveu em ponte aérea entre Paris e Lisboa. «Nunca lá fiquei a viver mas, como tinha muito trabalho, acabei por deixar de ficar alojada em hotéis para ficar em casa dos costureiros que me convidavam para desfilar.»
Na década de 80 e 90 as coisas eram mais imediatas. «Éramos poucos na época, talvez uns trinta ou quarenta manequins», diz Xana Nunes. «Uma grande família. Se alguém queria que eu fizesse um trabalho ligava lá para casa, convidava-me, combinávamos uma hora e eu ia lá ter com o meu pai.»

A ex-manequim de 52 anos, que em 1989 fez a primeira capa de uma revista de moda em Portugal, Máxima, e hoje trabalha como relações públicas e dinamizadora de eventos, estreou-se nos desfiles aos 16 anos. Tal como Sofia Aparício, também o fez de forma inesperada. «Fazia ballet e ginástica desportiva desde pequena. Na altura fazia dança contemporânea com o Rui Horta e alguém da moda foi assistir a uma aula porque precisavam de manequins para um desfile de desporto. Acabei por ser escolhida.» O porte atlético fez a diferença.

Na década de ouro da moda nacional, os desfiles eram mais do que apenas passagens de modelos. Eram espetáculos coreografados e teatrais. Encarnávamos personagens consoante a roupa que vestíamos. Às vezes, os manequins quase tiravam protagonismo ao fato. Hoje, o que pode acontecer é o manequim ser maquilhado ou penteado para assim exaltar as tendências que o criador quer passar.» Xana lembra-se bem dos desfiles «extraordinários» de Ana Salazar ou os «glamourosos» de José Carlos.

«Comecei na moda já tarde. Não foi fácil, porque já tinha filhos e não tinha ajuda familiar. Mas fazia o que realmente gostava e ainda me pagavam para isso.» Ana Marta Faial, 59 anos

A par de Bryan McCarthy, o cabeleireiro e costureiro José Carlos – vítima de um enfarte no final de agosto de 2004 – foi o mentor de muitas das manequins dessa época. Dalila Martins era uma delas. «O José Carlos era o meu cabeleireiro e um dia falou-me de uns cursos de valorização pessoal e de postura dados por um inglês, um Bryan McCarthy. Eu fui.» A antiga manequim entrou na moda com 25 anos. Para trás ficavam quatro anos como professora de Francês e Português no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa. «Em 1977 comecei a desfilar.

«Não me identifico com a Moda Lisboa porque há muitos jovens que não sabem desfilar e isso deixa-me triste.» diz Yolanda Lobo

Quando os alunos começaram a levar para as aulas as revistas onde aparecia, decidi deixar o ensino. Foi um salto no escuro, havia muito pouco trabalho. Mas, para minha surpresa, comecei a participar em todos os desfiles importantes. E troquei um trabalho cinzento por uma vida sempre em festa.»

Desse tempo, lembra-se da exigência dos ensaios. «Como os desfiles eram muito teatrais exigiam horas e horas de ensaios. Agora é completamente diferente.» Sobretudo, na forma de desfilar. «Hoje só desfilam a olhar em frente, sem mostrar emoção nenhuma», diz a atual relações públicas. Essa característica irrita bastante Yolanda Lobo, que garante não ir muitas vezes à Moda Lisboa por sentir «vergonha alheia».

«Eu não me contratava», ri-se Sofia Aparício

«Não me identifico com a Moda Lisboa porque há muitos jovens que não sabem desfilar e isso deixa-me triste. As pessoas ficam chocadas com o ar de frete, com o ar de robô, com a rapidez do andar. Dizem-me muitas vezes, “no seu tempo é que era”.» Como depois de abandonar as passerelles a antiga manequim teve uma escola de modelos, não são raras as vezes em que lhe apetece «saltar para o desfile e dar umas dicas aos protagonistas». «Eu não me contratava», ri-se Sofia Aparício que, para conter impulsos como os de Yolanda, nunca deu aulas de passagens de modelos.

«Dei um workshop uma vez, e comecei logo por lhes dizer que não iam ser manequins.» Porquê? «Hoje todos querem ser manequins, mas poucos o podem ser.» Isso leva à criação de muitas agências fictícias que só existem para burlar quem tem sonhos. «Nenhuma agência pede dinheiro aos agenciados. Quando muito, faz uma sessão fotográfica que depois lhe é descontado no primeiro ordenado.» E aponta o dedo: «A culpa é dos paizinhos dessas crianças que não lhes ensinam que a vida não é só aparecer na TV, nas revistas.»

«Fazia ballet e ginástica desportiva desde pequena. Na altura fazia dança contemporânea e alguém da moda foi assistir a uma aula porque precisavam de manequins para um desfile de desporto.» E escolheram-na. Xana Nunes, 52 anos

Xana Nunes, que em 2000 deu aulas numa escola de manequins, concorda e acrescenta que «nessa altura eram os pais que incentivavam e que levavam os filhos à escola para tentarem a sua sorte». Muito diferente do tempo dela. «Quando comecei, os meus pais não gostaram da ideia, achavam que era um perigo.» De cada vez que tinha um trabalho, lá ia ela acompanhada pelo pai, pela mãe ou pelo irmão.

«A profissão nem era reconhecida. Quando passávamos um recibo tínhamos de o passar como “artista”», lembra Xana Nunes.

Margarida Hilário também teve de pedir autorização aos pais para sair de Estarreja para ir para Lisboa tirar o curso de Bryan McCarthy. Tinha 18 anos. «Na altura tive de convencer os meus pais.» Desfilou apenas seis anos, mas a profissão valeu-lhe «muitas amizades», «viagens» e ser a pessoa que é hoje. Atualmente trabalha numa empresa de distribuição de marcas de vestuário.

«Conheci gente com uma mentalidade muito aberta, ganhei mundo. Eu era uma miúda da classe média nascida e criada na província. Foi bastante importante para a minha formação enquanto mulher adulta.» Hoje tem 46 anos e percebe que era uma «profissão mais difícil na altura porque tudo era mais arcaico».

«A profissão nem era reconhecida. Quando passávamos um recibo tínhamos de o passar como “artista”», lembra Xana Nunes. Mesmo assim valia a pena. «Ganhávamos imenso dinheiro. Não me lembro de quanto, mas era muito dinheiro.»

«Queria ser astronauta ou arquiteta, sempre fui boa aluna e sempre tive boas notas. E sempre fui muito tímida. Mas quando me vi em frente à câmara fotográfica comecei a brincar e descobri qualquer coisa em mim.» Sofia Aparício, 47 anos

«Eu ganhava em dois ou três desfiles o ordenado de um mês», diz Yolanda Lobo que, antes de abraçar a profissão, foi assessora de vários políticos, nomeadamente Mário Soares. Um trabalho em que já era bem paga. Mas nada que se comparasse. Foi quando se apercebeu dessa diferença, e de que «por ser magrinha, alta, exótica e com um cabelo pelos rins» podia vir a ter sucesso, que resolveu experimentar o mundo da moda.

Mas ninguém batia Sofia Aparício, a manequim nacional mais requisitada de sempre. «Eu era paga muito acima do resto das pessoas, porque o meu valor comercial era maior, não por ser melhor do que os outros.»

Não se arrependeu. Dalila Martins, 66 anos, também não. «Eu dava-me ao luxo, como tinha estabelecido que não trabalhava aos fins de semana por causa dos meus três filhos, de pedir cachets bastante altos para que desistissem de me contratar.» Ainda assim, contratavam-na. Tal como Ana Marta Faial, 59 anos, cujos traços africanos (nasceu em Benguela, Angola) lhe conferiam a «beleza exótica» que agradava a alguns estilistas. «Comecei na moda já tarde. Não foi fácil, porque já tinha filhos e não tinha ajuda familiar. Mas fazia o que realmente gostava e ainda me pagavam para isso.»

Mas ninguém batia Sofia Aparício, a manequim nacional mais requisitada de sempre. «Eu era paga muito acima do resto das pessoas, porque o meu valor comercial era maior, não por ser melhor do que os outros.» Como via a moda como um caminho para a independência, quanto mais dinheiro ganhasse, melhor. Por isso, fez as malas e foi para Paris.

«Fui com um acordo com os meus pais: querem que eu vá para a Católica [universidade, onde estudou Gestão], então deixam-me ir para Paris à aventura.» E foi. Sozinha, sem nada marcado, foi bater às portas. «Fui sem contratos, sem ajudas, nada. Fui pedir trabalho e correu bem.» Esta era a forma arcaica de fazer moda. «Agora o mercado está mais profissional.»

«Conheci gente com uma mentalidade muito aberta, ganhei mundo. Eu era uma miúda da classe média nascida e criada na província. Foi importante para a minha formação enquanto mulher adulta.» Margarida Hilário, 46 anos

Na época não existiam equipas de bastidores, por exemplo, responsáveis por toda a logística operacional de apoio a um desfile. «Na altura éramos nós que fazíamos tudo», diz Yolanda. «Não éramos tão mimadas.

Tínhamos de saber maquilhar-nos, pentear-nos… E andávamos sempre com uma mala com um par de sapatos de salto alto brancos, outros pretos. Houve desfiles em que até levei os meus próprios acessórios», diz Xana Nunes, que aos 24 anos, quando ficou grávida de Carolina, a primeira filha, desistiu da profissão e da família profissional que acolhera. «Nos anos 90 nós éramos uma família.

Sofia Aparício é mais pragmática: «Por que é que se hão de lembrar de mim? Que fiz eu de tão extraordinário?»

Ajudávamo-nos todos muito uns aos outros, encobríamo-nos quando um chegava tarde, havia uma grande camaradagem», diz Sofia Aparício. Ana Marta Faial concorda: «Guardo muito boas recordações, sobretudo do ambiente de amizade e companheirismo que se vivia no meio da moda, quando a concorrência ainda não era tão feroz. O mundo da moda é impiedoso. Tão depressa estamos no topo, como de repente, já nem se lembram de que existimos. É tão efémera essa profissão.»

Sofia Aparício é mais pragmática: «Por que é que se hão de lembrar de mim? Que fiz eu de tão extraordinário?» Só ter sido a manequim portuguesa mais versátil de sempre e ter marcado uma época que ainda hoje pode servir de exemplo e inspiração às novas gerações.