Todas as graças a Deus, Coltrane

Notícias Magazine

Dizzy Gillespie e Miles Davis têm mais do que um ponto em comum. Ambos tidos como génios musicais, ambos reconhecidos pela sua defesa dos direitos dos negros nos Estados Unidos, ambos com um ponto estranho no currículo: despediram John Coltrane.

Gillespie geria a sua banda como um exército, com horários bem definidos e uma regra a que não abria exceções – músicos seus tinham de estar livres de drogas.

Miles Davis, famoso pelo irascível feitio, tinha outro conjunto de regras, mas era bem mais tolerante no que respeita a drogas – ou não tivesse, também ele, travado o seu combate.

Ainda assim, ambos despediram Coltrane pelo consumo de heroína. Gillespie quando o apanhou a injetá-la numa casa de banho. Miles, anos depois, em 1957. Ambos haveriam de perdoar-lhe. Gillespie quase imediatamente, Davis precisaria de bem mais tempo. O mesmo que Coltrane precisou para chegar à forma que ainda hoje o coloca, confortável, entre os maiores génios da música.

A confissão chegou nas notas de A Love Supreme, lançado em 1965. «Durante 1957, pela graça de Deus, tive um despertar espiritual que acabaria por me levar a uma vida mais rica, mais preenchida», escreve Coltrane, no que muitos historiadores interpretam como o anúncio do abandono de um vício que durante mais de dez anos lhe pesava nos ombros. Para o que se seguiu, o mundo da música ainda não encontrou explicação.

A carreira a solo disparou, gravou com Thelonious Monk e até conseguiu o perdão de Miles Davis, com quem voltou a reunir-se em estúdio. Do encontro resultou uma das grandes obras-primas do género, Kind of Blue, disco editado em 1959.

Da devoção por Charlie Parker tinha herdado o instrumento de eleição, mas também o vício da heroína. Mas se Bird perdeu o jogo logo aos 35 anos, Coltrane foi salvo pelo «despertar espiritual». «Este disco é uma humilde oferta a Ele. Uma tentativa de dizer “obrigado” através do trabalho que fazemos com os nossos corações e línguas», escreve em A Love Supreme.

Nascido numa família católica, casado com uma muçulmana, ao longo dos anos estudou várias religiões – em particular o hinduísmo e o budismo –, e nas notas do disco que dedica a Deus não há qualquer referência à religião em causa. Um pormenor irrelevante até porque há anos que existe, em São Francisco, a Saint John Coltrane Church.

Em época de festas, aqui ficam todas as Graças ao Deus Coltrane, por tudo. Por ter derrotado o vício que tantos leva, por A Love Supreme, por Giant Steps, por Blue Train, por Ballads, por tantas horas de música que contam tudo sem uma única palavra. Às vezes nada melhor do que o grito de um saxofone.

A LOVE SUPREME
John Coltrane
21,99

A minha escolha

JORGE PALMA
E AFINAL ERA SÓ ISTO
Foi em 2016 que completou 25 anos. E se o disco, em que Palma se apresentou sozinho ao piano, há muito que estava entre os preferidos dos fãs do cantor e compositor, agora chega mais uma reedição, na sua versão ao vivo e com direito a brindes.

Dos concertos para a comemoração do quarto de século foram escolhidas as sete melhores interpretações para o DVD que acompanha a edição e ainda duas canções nunca antes editadas em disco – Aprés les Temps (Léo Ferré) e Bird on the Wire (Leonard Cohen).

Originalmente lançado para mostrar o lado de recatado pianista, então desconhecido, de Palma, à música de o passar dos anos só fez bem. Por ter canções intemporais, porque a classe dos temas se revela à prova de todo o desgaste e resistente a modas e modinhas, porque ainda hoje muitos lhes conhecem de cor as letras.

Entre os versos mais famosos está o de A Gente Vai Continuar, com a promessa de que é isso que há a fazer enquanto houver estrada para andar. Suspeito que, tal como em 1991, essa continuará a fazer-se bem ao som de . Sempre sem aditivos, apenas com Palma, um piano e canções como as que só ele faz.

SÓ AO VIVO
Universal
CD – 14,99 euros
CD/DVD 18,99 euros