Toca o sino, pequenino

Notícias Magazine

1. Belém é atravessada, ferida, por um muro de betão. No autocarro que me levou até àquela zona da cidade, ouvia‑se uma versão árabe de um tema dos Pink Floyd. Muito apropriadamente, The Wall. Curiosamente, Roger Waters escreveu no muro, no lado palestino: «Tear down the wall.» Independentemente da plausibilidade histórica de Belém ser efetivamente o local do nascimento de Cristo, o facto é que esta cidade se tornou, corroborada pela crença e sem qualquer margem para dúvida, o lugar onde Jesus nasceu.

2. Deus poderia ter feito a sua aparição histórica sem passar pela infância. Um pouco como sucedeu com Adão e Eva, que apareceram no Jardim sem terem sido crianças. Há uma beleza poética no facto de Deus todo‑poderoso ter escolhido surgir na forma mais dependente e frágil que um ser humano pode assumir, a de recém‑nascido, ao qual se deve acrescentar o contexto dramático da fuga. Há um paralelo com muito do que se passa hoje em dia. Mudaram os romanos e mais alguns dos seus títeres, mas mantiveram‑se inalteradas algumas circunstâncias, como a opressão e o exílio. No campo de refugiados de Aida ouvi o seguinte do coordenador do projeto Aida Youth Center, que foi a primeira pessoa a nascer nesse espaço:
Lutamos com as artes e com o teatro. A luta é cultural.
Não quero morrer pela pátria, quero viver nela.
Não nos podemos dar ao luxo de entrar em desespero.
Não educamos crianças para serem máquinas, não queremos que saibam todas as respostas, mas sim que saibam fazer uma pergunta.

3. Por causa das disputas entre as várias igrejas, nomeadamente a Igreja Ortodoxa Oriental, a Igreja Arménia e a ordem dos monges franciscanos, as chaves da Basílica da Natividade estão, há quase mil anos, a cargo de duas famílias muçulmanas. A senhora que tinha as chaves quando visitei a igreja era esta (a da esquerda):A proverbial hospitalidade levantina é omnipresente. Depois da visita, entrámos em casa da guardiã das chaves para comer alguma coisa. Bolos, bolachas, fruta, café. As bananas da região de Jericó são especialmente boas (os palestinos garantem ser as melhores do mundo). A chave da igreja pode ver‑se no canto inferior direito da fotografia:

4. O Natal tornou‑se uma festa dedicada à família, à paz, à solidariedade, ainda que boa parte da alegria se apoie em objetos de consumo. Os brinquedos e a recreação são acompanhados por um sentimento de posse e os abraços convivem com carrinhos fabricados na China. De facto, o Natal tem muito pouco que ver com o local onde nasceu: na Belém de todos os dias vive‑se com medo e a solidariedade é um bem demasiado escasso, como aliás acontece em praticamente todo o lado. Dizem que o que engorda não é o que comemos entre o Natal e o Ano Novo, mas o que comemos entre o AnoNovo e o Natal. Com a nossa maneira de viver acontece exatamente a mesma coisa.