E se o Tejo nos desaparece?

Notícias Magazine

Pela primeira vez, o avô levava o miúdo à Saudades do Tejo, uma comemoração – no sentido de lembrança, não de festa – que há mais de vinte anos se realizava ali. O neto perguntou: «Porquê ponte, vovô?» Não lhe perguntou «porquê Vasco da Gama?», isso o garoto sabia. Não entendia era estarem os dois sob uma autoestrada despropositada, pendurada a 50 metros e construída sobre uma planície seca – lá em cima, corria o seu longo tabuleiro. Que sentido fazia tanta engenharia quando podia ter-se traçado um caminho sem oposição que se visse?

Naquele dia de 2040, uma vez mais, os lisboetas marcavam encontro com o passado perdido, no meio dos dois pilares com cabos a suspender a autoestrada. E não iam para o tabuleiro, mas lá para baixo, para a areia seca. A tradição começara em 2020, no outono em que a falta de chuva confirmou ter vindo para ficar. No primeiro domingo de dezembro, pela primeira vez, ali, o Tejo acabou. Secou. Mil quilómetros a portar água desde a serra de Albarracín, por Espanha e Portugal fora e acabar em pó…

Chamavam-lhe, antes, Mar da Palha, uma metáfora um bocado vaidosa mas que enchia os olhos. Era uma grandiosidade até com ilhas, chamadas mouchões – e agora era uma ilha desértica a perder de vista. E quando não o era, eram bairros que se construíam onde antes mergulhara o hidroavião do filho de Jacques Cousteau, o navegador, e ruas onde o Batista Pereira, o grande nadador, treinara de bruços para não estranhar as correntes do canal da Mancha. «Nadar na rua, avô?» Não era rua de asfalto, meu querido, era rio mesmo, fundo e com correntes perigosas. O Tejo era um lugar encantado e perigoso, onde o melhor pescar era às horas de assaltar quartéis, ao anoitecer e fim da madrugada.

A triste festa era junto ao pilar que se aventurara mais rio adentro. Havia uma bateira, de tamanho natural, com mastro e dividida para arrumos da pesca, para cozinhar e para dormir. «Havia pescadores, os avieiros, um escritor, o Alves Redol tem um livro sobre eles, que faziam a vida toda no rio…», disse o avô. Ao lado da bateira, barracas puxavam pelas recordações: miniaturas de velhos barcos do Tejo, barcos de água acima, cangueiros coloridos, fragatas e varinos, botes e faluas…

Na Saudades do Tejo, ouvia-se um cantor antigo, Carlos do Carmo, e era tão bom como no tempo dele, mas agora doía. O avô não queria uma viagem lamechas com o neto pela mão e preveniu-o: «Essa ponte grande, aí em cima, foi feita para aguentar ventos de 250 quilómetros e um terramoto quatro vezes maior do que aquele que estudaste, o de 1755, sabias?» E quando o garoto abanou a cabeça, o velho foi duro: «Sabes nada! De que serviu prevenir para umas coisas e não ter dado pela desgraça que veio?»

O avô abraçou num gesto a paisagem seca. Chutou um bocado de areia e o miúdo imitou-o. «Ali, apanhava-se mexilhão», ali, no primeiro fio de prédios que já avançava pelo apetecido desaparecido leito do rio. «E atrás dos prédios havia freixos e salgueiros com garças-boieiras nos ramos.» O garoto não reconhecia a maioria da palavras mas sabia que cada uma delas significava nunca mais. O velho voltou à necessidade de ser duro: «O que mais me custa, foi ter acreditado que podia não ter sido assim… Antes da desgraça, poucos anos antes, as empresas, a ciência e os políticos puseram as águas mais limpas e a lampreia e o sável voltaram, e as carpas…»

O miúdo aproveitou o silêncio: «Viste alguma vez um golfinho?» Longo sim com a cabeça… O último fora frente ao Cais das Colunas: «Onde estivemos ontem e os tuk-tuks, pelo areal fora, levam os turistas para a Outra Banda», disse o velho. «Porquê Outra Banda, vovô?»