Simone de Oliveira: «Sinto que estou sempre no palco»

Entrevista Catarina Carvalho | Fotografia Jorge Simão

É difícil fazer uma entrevista a Simone de Oliveira. Mulher de muitas facetas e vida longa ­– faz no próximo ano 80 anos ­–, pública e documentada, em entrevistas e coscuvilhices… Simone tem até já uma biografia em livro, Força de Viver (edições Matéria Prima). Mas a sua gargalhada forte, aberta, tira nervos a qualquer entrevistador.

Isso e o sentido de humor, espicaçado pela flûte de espumante da longa carta do restaurante JNcQUOI, onde decorre a entrevista/almoço, na sala que Simone bem conhece, o antigo foyer do Teatro Tivoli. Tudo é pretexto para ativar a memória numa mulher com tanta.

Ali entrou Simone como repórter para cobrir um Festival da Canção, quando teve essa profissão depois de ter perdido a voz. Vai voltar àquele teatro a partir de 23 de setembro, no desafio que lhe foi colocado pelo autor Tiago Torres da Silva e pela produtora UAU. Um musical que será a sua biografia, em vida, em que cantará as suas canções e será ela própria. Como diz: Aleluia, corações ao alto!

Simone vestiu o seu smoking para a sessão de fotografias que decorreu no espaço do Teatro Tivoli BBVA. Aqui, um corner da editora de luxo italiana Rizzoli.

Vai estrear um espetáculo biográfico. Não podia ser feito sem a Simone, pois não?
Quando o Tiago Torres da Silva lhe propôs, o Paulo Dias, da UAU [a produtora] perguntou isso: é com ela ou sem ela? É com ela! Então está bem. Não, não era a mesma coisa… Uma biografia com a pessoa viva: aleluia, corações ao alto!

Passou­‑lhe pela cabeça recusar?
Não, não. Quero agradecer muito ao Renato Júnior [direção musical] e ao Tiago [texto], à UAU, a toda a gente aqui no Teatro Tivoli. Mas tenho um bocadinho de medo. E se eles não gostam? Já tenho sessenta anos disto e cada vez é pior. Como diz o Tiago, entrar no palco é como num Boeing. No início é assim, depois é voar e aterrar. À primeira, deixa ver como é que eles são, à segunda, apanhá­‑los, na terceira estão comigo.

E depois é respirar fundo.
Não se pode respirar muito fundo. Tem de se estar sempre em alerta. E no fim, tirem­‑me daqui quero ir para casa!

Toma alguma coisa antes?
Não me digam nada, meia hora antes. Vou à casa de banho. Fumo um cigarro. E um golinho de whisky, molho a ponta da língua.

É exatamente sobre o quê, a peça?
É uma história. Sou a Simone. Canto e falo. Naturalmente vou dizer mais duas ou três coisas além do que está escrito… Não se pode fumar, e eu entro a dizer: o meu reino por um cigarro. Há três Simones. Eu agora, a dos 25 anos e a dos 50 anos. A Sissi e a Maria João Abreu. A única coisa que vão estar tramadas é que têm de cantar as minhas cantigas. Eu estou cá para ajudar. Estão para ali umas 17 ou 20 cantigas. O primeiro ato acaba com a Desfolhada e não é cantada por mim! Eu qualquer dia não canto a Desfolhada… Ando há 49 anos a cantar. A cap­pella, com guitarra, sozinha, com orquestra, sem orquestra, com piano, sem piano….

Começa como?
Com o Sol de Inverno. Uma canção lindíssima. Se tivesse sido cantada pelo Sinatra era um êxito incrível. Eu digo assim estas coisas… O meu alter ego é a Mariazinha. Digo­‑lhe: Oh Mariazinha, pela tua rica saúde, tu cala­‑te! O meu pai dizia: um diz destes, vou levar­‑te um maço de tabaco à prisão.

«Não quero ser pesada a alguém e tenho pânico do ridículo. Vivo sozinha há 21 anos. Às vezes chateia­‑me. Na mesma casa onde o Varela viveu, na cama onde ele morreu.»

Com a sua vida, era para já nada a assustar…
Tenho muito medo de uma coisa que se chama Alzheimer. A minha filha diz que se eu tiver não me lembro. Ironicamente. Fui à médica, para saber dos meus medos. Ela riu­‑se muito. Ficou a olhar para mim e disse: Simone, tem de perceber uma coisa, a Simone não é como as outras pessoas. É tudo ao contrário. A médica das oncologias trata­‑me por menina. Mas eu não quero ser pesada a alguém e tenho pânico do ridículo. Vivo sozinha há 21 anos. Às vezes chateia­‑me. Na mesma casa onde o Varela viveu, na cama onde ele morreu.

Sempre sozinha?
Sim. Fiz asneira. Devia ter tido alguém. Fiquei viúva com 57 anos. Mas era uma grande chatice, porque tinha de ser inteligente, culto, apessoado, tinha de cheirar bem, simpático, tinha de não me maçar. Tinha de me levar ao teatro, e depois um copo… tudo. E depois ir embora para casa e não chatear. Não foi fácil a morte do Varela. Mas a grande sorte que eu tive foi que estava sempre a trabalhar nessas alturas.

O facto de ter continuado sozinha fala também da sua força, de ser autossuficiente. Já tinha saído de um primeiro casamento, infeliz, já tinha escolhido ficar sozinha com os seus dois filhos…
Sim. Mas com o Varela há outras coisas. Foram 23 anos de uma vida muito cheia, aquela casa muito pequenina, de flores, de estreia, os meus problemas oncológicos, os dele… Eu era a Cantigas e ele era o Dramas. Por exemplo, sempre que atravessávamos a ponte ele tinha muito medo, tinha de se fechar os vidros todos e não falar. Nem música nem nada. Um dia maravilhoso de sol, de agosto, e ele: Ó Cantigas, acha que vai chover? E o meu filho é assim: gosta daquele tempo de inverno, a coalha. Ele era assim. Quando lhe disse que me tinham convidado para a Genoveva d’A Tragédia da Rua das Flores, ele: Como? Você não tem ontem para fazer isso. Como? Você não tem ontem, como atriz, para fazer esse papel, vai estragar as cantigas todas, por isso não conte comigo.

Mas depois ele dava­‑lhe valor?
Depois sim. Eu cantava muito no Altis, e no Altis cantava­‑se fado, eu precisava do dinheiro, convidaram­‑me e fui. E o Varela foi ver­‑me. E só disse: Você não sabe o que está a fazer. Porquê, canto mal? Não, canta bem. Então? Mas não sabe o que está a fazer. Então, porra! Tivemos discussões violentas. Eh pá, guardas o tom do Teatro Nacional para as tuas colegas do Teatro Nacional. Quando eu quis fazer os 35 anos de carreira no Teatro Nacional, não havia autorização para música ligeira. Quem dá é o Pedro Santana Lopes ­– secretário de Estado da Cultura. E o Varela: Tu não vais porque não consegues cantar 25 cantigas, vê lá se metes na tua cabeça. Era assim, muito negativo. Mas fez­‑me muito bem porque deu­‑me uma serenidade que eu não tinha, e uma tranquilidade, e eu dei­‑lhe as minhas gargalhadas e sentido de humor. Quando ele morreu, levei ali três anos a bater a cabeça nos móveis. O tempo é uma grande ajuda. Isto é uma frase feita, mas é assim. E o palco também, muito. Eu ainda continuo a extravasar muitas das minhas angústias e solidões no palco. Já me disseram que eu mordo as palavras como mordo as angústias. As palavras deixaram­‑me cicatrizes. O Zé Carlos Ary dos Santos conheceu­‑me muito bem, e o David Mourão-Ferreira também. Eu nunca me escondi atras de tábuas, sou o que sou. Embora tivesse sido acusada de ter criado um boneco.

Ganhei a fama de ser uma mulher de força. Nunca fui feminista, queimar sutiãs não dá muito jeito… Mas fiz o que quis fazer, amei quem quis amar. Não escondo nada. Fui uma mulher fora dos cânones. Falsos.

Porque às vezes parece estar prisioneira dessa força que tem de demonstrar, dessa imagem.
Mas às vezes não sou forte. Chorei muito sozinha. Tenho uma solidão muito própria, muito minha, que não tem nada que ver com o público, os amigos, a família.

Sente que se exige de si essa imagem?
Sim, sinto. Exigem sempre. Não posso falhar. Estar muito bem, ser muito esperta, dizer as frases certas. E às vezes não me apetece nada disso. Não me apetece sair de casa nem ir ao cabeleireiro. Apetece­‑me pôr uns jeans e amarrar o cabelo e não me apetece falar.

É muito difícil esse confronto com a imagem que as pessoas têm e tiveram de si?
Aquilo que sinto é que estou sempre a fazer exame. Estou sempre no palco. Seja no restaurante do Bairro Alto, seja neste, seja no palco. Eu não sou uma cantora popular. Não estou armada em parva. Mas a minha vida é muito aberta. Deve ser por isso que as pessoas pensam que eu tenho culpa de muita coisa, no bom sentido. Da independência da mulher – é ela. Teve filhos sem ser casada ­– na altura ninguém tinha. Ela foi capaz de andar de mala na mão ­– fui, sim, senhora. Isso foi criando à minha volta talvez um mito que eu nunca quis que acontecesse. Virei uma coisa que não sei muito bem o que é.

Isso já mudou, essa animosidade…
Na rua as pessoas falam maravilhosamente bem comigo. Há uns dois anos eu ia na Politécnica a apanhar um táxi e vem uma rapariga, daquelas punks, com piercings no nariz, tatuagens. E parou na minha frente. E ela disse: Não se assuste, mas eu tenho de dizer umas coisas. E disse que eu era extraordinária, que era uma maravilha. E o que é que uma rapariga…. ? Eu não esperava. Porque não percebo. Fiz o último disco tem dois anos, ninguém soube. Não vendeu. Há uma canção do Augusto Madureira, da SIC, que se chama Foi Assim, e a filha de uma amiga minha era daquela que mais gostava. Daquele texto. Uma rapariga de 12 ou 13 anos. Ela diz que é a forma como eu digo as palavras.

E é verdade. Tem uma relação com o som, e com as articulação das sílabas. Diz as palavras com o som que ela merecem.
Neste espetáculo, as cantigas foram muito difíceis de escolher porque eu tenho mais de 400 canções. E a Fátima Bernardo ­– a minha assistente ­– ouviu­‑as todas. E houve muitas, do lado B, que não ficaram. Eu gostava mesmo de fazer um disco com o lado B, com duetos dessas canções com gente nova. Há canções extraordinárias. Há uma que é para acabar o espetáculo. Só há uma. Apenas o Meu Povo. Foi quando a minha mãe morreu, ela não me ouviu outra vez cantar depois de perder a voz. Morreu quando eu tinha 33 anos. E quando o Zé Carlos [Ary dos Santos] me perguntou se eu quero cantar, ele fez uma canção para mim. Aquele texto é para mim. «Quem disse que morreu a madrugada, quem disse que esta noite foi perdida, quem pôs na minha alma magoada as palavras mais tristes que há na vida.» E cantei. Estava com a voz sem segurança. E ganhei o prémio de interpretação do Festival da Canção. Pela minha mãe.

Como percebeu que tinha perdido a voz?
No Porto, no São João, a seguir à Desfolhada. Estava numa tournée. Começo a falar e o Artur Garcia diz: Fala, Simone fala. E eu: Oh caraças, estou a falar. A primeira vez que falhou foi no Savoy do Funchal, à terceira canção a voz desliga. E o empresário a dizer que eu tenho de cantar porque está a pagar. Levei muito tempo a perdoar­‑me. Fui cantando em cima das faringites, laringites, até que as cordas vocais foram perdendo a elasticidade. E não vibravam. Foi excesso de trabalho e voz mal colocada. E estive três anos calada.

E quando regressa?
Aparece o Zip Zip, começo a perceber que se canta de outra maneira, aparecem as baladas. O Tordo, a geração depois de mim, o Paulo de Carvalho. E começo a pensar: se calhar tenho de dar aqui uma volta ao texto, não sei é qual. Fiz umas aulas de voz. E quando estava no Casino como locutora de continuidade ­– apresentava os malabaristas, os cantores – apresentei muitas vezes o Carlos do Carmo. E um dia, fui lá para trás, quietinha, e ouço­‑o chamar­‑me. E chego lá, lembro­‑me, tinha um vestido roxo… Já no ensaio ele me tinha perguntado se eu me lembrava do Shadow of Your Smile, e o pianista tocou três tons abaixo. E ele chamou­‑me ao palco e eu lá cantei. Comecei com ele e depois foi sozinha. Fui reaprendendo. E ainda bem que perdi essa voz porque ganhei esta que foi a voz que a vida inventou por mim. Eu acho sempre que foi a vida que me foi vivendo. Eu não escolhi nada.

Escolheu cantar a Desfolhada.
Para mim era normal. Mas fui a quarta escolha! O Zé Carlos escolheu a Madalena Iglésias que não quis cantar a frase ­«quem faz um filho fá­‑lo por gosto». Depois veio ter comigo: Onde é que está aquela mulher muito grande? Veio ao restaurante que eu tinha, o Candelabro. Com um grupo todo do Festival e da Valentim de Carvalho. E disse: Olá, tenho aqui uma cantiga. Só que ele não sabia, mas aquele texto já me tinha aparecido, à sorrelfa, trazido da RTP pelo José Mensurado. Num papel de embrulho… Eu tinha lido aquilo. Eu olhei para o texto e reconheci. E disse que cantava. Só por causa daquele verso? Então eu fiz dois, filhos, e fi­‑los por gosto e com quem quis. Mas isso foi uma complicação. Estive para ser presa, a guarda no restaurante, de puta para baixo, chamaram­‑me tudo.

Lá está, a Desfolhada não aparece de geração espontânea.
Acho que isso começa quando eu fujo de casa, do meu casamento. Com a violência doméstica. É por isso que eu começo a cantar, lá está. E isso é que me espanta ­– como mudei. Eu era a filha do papá e da mamã, no bom sentido. Mas pergunto a mim própria onde fui buscar coragem, pelo respeito que tinha pelo meu pai e pela minha mãe, tinha casado pela igreja, para sair de casa. É que não havia nada a fazer.

Está arrependida?
Não.

Há males que vêm por bem.
Não, a sério, a sério. Casei com 19 anos. Tinha namorado três anos. Foi horrível. Foi um destino, eu tinha de ter passado por aquilo para chegar onde tinha de ter chegado. Não há outra razão. Estive casada dois meses. Ponha isso em 1956. Foi um escândalo. Voltei para casa, num dia em que o Sporting estava a jogar e o meu pai tinha ido, a minha mãe caiu para o lado. E o meu pai perguntou: O que é que tu queres? E eu disse que não voltava para lá, que ele me podia pôr na rua, eu ia para a rua. Foi um pai incansável. Credo. Depois apaixonei­‑me pelo pai dos meus filhos na Queima das Fitas do Porto. Era um engenheiro, lindo como o sol, ai ai ai, estou tão apaixonada. Grandes dramas na família, não pode namorar, não pode casar, está proscrita pela família toda. A minha mãe dizia: A Simone é uma miúda, tem 19 anos, o que é que tu queres que ela faça…

Como começou a cantar?
Para me tirarem do estado letárgico em que eu estava, a minha irmã disse ao meu pai para eu ir para esta escola de formação de artistas da rádio. Eu cantava o fado da carta e do marco do correio para a minha mãe. Na minha escola da D. Albertina, nos Olivais, quando chovia e a gente não podia ir para o jardim, elas diziam: Deixe lá a Simone cantar, e eu cantava. Marco do Correio… Mas nunca em circunstância alguma na minha mente eu queria ser artista. Até porque isso não se usava na altura.

E o que ia ser?
Ia tirar um curso, casar e ter filhos. Como qualquer menina daquela idade.

Em lavores femininos?
Não, muito mais saltar ao eixo e assim… Mas eu só virei outra pessoa depois dos 19 anos quando entrei para o tal Centro de Preparação de Artistas da Rádio. O Mota Pereira olhou para mim ­– com a outra voz que eu tinha, que perdi ­– e disse: Sabe a voz que tem? Não… Quer cantar? Não… Não quer ir para a rádio? Não. A única coisa que eu queria era que aquilo que me tinha acontecido não tivesse acontecido. Mais nada. Andava acompanhada. Só fui para lá porque se passasse ali três horas por dia talvez a minha cabeça não desse a volta. A última grande tareia que levo é lá. Sai uma noticiazinha sobre uma rapariga com uma linda voz que apareceu… E quando cheguei à receção disseram­‑me que estava lá um senhor à minha espera. Eu virei­‑me ­– ele apanhou­‑me. Graças a Deus, mais uma vez, porque consegui o que na altura era impensável. Separação judicial de pessoa e bens. Era o que tinha no passaporte – Se. Judi. Pess. e Bens. Quando fui a Barcelona cantar à televisão e na fronteira perguntaram o que era aquilo. Se não tivesse levado essa tareia, que foi em público, não tinha tido autorização para nada, nem para sair do país nem para trabalhar. Por isso: abençoada tareiazinha.

Houve um processo judicial?
Foi a tribunal. Eu não falo muito nisso. Levei muito tempo… não foi para me perdoar, foi para apagar. Foi tão mau, fizeram­‑me tão mal, eu era tão boa miúda e achava que a vida era tão bonita, e tive sempre uma família tão boa, que quando aquilo me aconteceu eu pensei: isto não pode ser assim. Depois apaixonei­‑me por um senhor engenheiro…

Já estava a cantar?
A cantarzinho. Estreei­‑me no cinema Império no primeiro Festival da Canção que houve, sem televisão ainda, quando a Maria de Fátima Bravo estreia o Vocês Sabem Lá. Eles arranjaram um quarto de hora para eu cantar, três cantigas. O Burrinho e os Santos Populares, do Max, e o Adeus. Porque o Mota Pereira achava que eu tinha aquela voz e que tinha de se mostrar. Aquela outra, que eu perdi. Passado um tempo estava no tal programa que eu ouvia em casa. Depois aparece a televisão, três ou quatro meses depois, com o Melo Pereira à procura dos meninos e das meninas do centro de preparação da rádio. E depois é uma bola de neve, que eu própria levei algum tempo a perceber.

A vida de artista, de bailarina ou guitarrista ou fadista, era a má vida. Mas eu tive um pai e uma mãe espantosos, que foram aceitando essas coisas todas.

A família aceitou a menina a cantar, não?
Vamos voltar um bocadinho atrás. O meu avô paterno era preto, de São Tomé. A minha avó era belga. De Bruges. E eu tinha este nome que ninguém sabia porque é que me chamava Simone.

Era umas das perguntas que ia fazer-lhe, pode responder já.
Quando eu nasci, a minha avó queria que fosse Astrid, tinha de ser Astrid que era o nome da rainha dos belgas. E a minha mãe queria que eu fosse Maria de Lurdes. Ainda bem que não sou! Mas a Astrid morre naquele carro, com aquela coisa à volta do pescoço. E a minha mãe: Não quero isso para a minha filha! A minha avó diz: Simone. E ficou Simone. Coisa a que a minha mãe nunca achou muita graça.

E Simone é um nome que em francês e em português é igual.
Beauvoir, Signoret, Weil… Como eu gostava de ser qualquer uma delas… A Simone Signoret, por amor de Deus, que atrizaça! Então mas alguma vez na vida? Não. Sei­ pôr-me no meu lugar.

E então era, à mesma, um escândalo ir para a música.
Era mesmo a verdadeira ida para a prostituição. Não se dizia… Era à boca pequena… A vida de artista, de bailarina ou guitarrista ou fadista, era a má vida. Mas eu tive um pai e uma mãe espantosos, que foram aceitando essas coisas todas. Até, depois, quando me apaixono pelo pai dos meus filhos. Separámo­‑nos quando o Pedro tinha 7 ou 8 meses. E ele esqueceu­‑se completamente de que tinha filhos… Mas como eu não quis ir com ele para África… para Tete. Eu tinha 22 anos, ia para o mato, para uma tenda. E eu disse­‑lhe: Vá você! Ia fazer caminhos-de-ferro. E eu: Desculpa, mas não vou. Disse ao meu pai que não ia com um menino com 6 meses para um sítio que era como se fosse a Lua. E também não ia deixá­‑los com o meu pai e a minha mãe. E ele lá foi, e eu chorava naquele aeroporto baba e ranho com a mão do meu pai em cima das minhas costas. Os meus filhos foram filhos de mãe incógnita. Se eu desse o meu nome aos meus filhos eles ficavam filhos do senhor com quem eu tinha casado pela igreja. E como o pai dos meus filhos também tinha sido casado, e a senhora também não deu autorização… Maria Eduarda e Pedro sem pais e sem avós dez anos.

Ter 79 anos não me impede de gostar de estar com pessoas, sair à noite, beber um whisky. O que me está a ser difícil é que eu por dentro não tenho esta idade.

Isso não deve ter sido fácil. A escola…
Só houve problemas quando eles foram para o ciclo. Há um ministro nessa altura que disse que todas as pessoas têm de ter pai e mãe. Foi no ano da Desfolhada. 1 de junho do ano em que a Maria Eduarda ia para o liceu. Havia um livro secreto do tamanho desta mesa que era o único registo em caso de morte: sabia­‑se quem era o pai e a mãe. Nesse dia, à porta da conservatória, era uma feira. Saio de casa, com as cédulas no bolso. E a conservadora: Ó dona Simone, que bom, finalmente. Então e as cédulas? E eu: Perdi­‑as. Dava prisão. E eu sabia. Porque eles faziam averbamentos na última página. E eu queria cédulas novas com os nomes certos. E ela percebeu. E lá fez as cédulas.

Foi uma vitória?
Aí foi uma espécie de… andei aqui dez anos a lutar, atrás dos padres, dos políticos todos, mas consegui lá chegar. Ah, e tal, não pode ser, porque tu és amancebada. Não és divorciada. Amancebada, não conheço palavra mais horrível. Isto é tudo Eça de Queirós. Aliás, a Maria Eduarda chama­‑se assim por causa dele. O meu pai dizia: Este Eça tem umas figuras femininas cá com uma força.

Essa história vai estar no palco?
Não. Seria magoar os rapazes. Sobretudo os netos.

Como é que eles vivem a avó?
É uma avó que só eles têm, mais ninguém tem. Maluca, gosta de sair à noite. Oh, a avó não vai para a night. Há trinta anos que vou ao restaurante Põe­‑te na Bicha. Tenho uma mesa, uma cadeira com o meu nome e uma fotografia minha. E tive dois filhos do caraças. O Pedro está cá, é engenheiro do ambiente. A Eduarda é psicóloga clínica, vive no Luxemburgo como tradutora, é funcionária nas Comunidades. Pinta, faz escultura. Teve um filho sem se casar. Disse: Já te vinguei. Chorámos muito. Se eu hoje tenho respeito por um homem é pelo meu filho. Levei muito tempo a reganhar respeito pelas pessoas. E pelos homens, respeito nenhum.

Como fez as pazes com a humanidade?
As cantigas ajudaram­‑me muito. Estou em paz. Continuo a achar que podia ter sido menos duro, mas há pior.

Ter sido mãe sozinha muitos anos, e com uma vida de artista, não deve ter sido fácil.
Naquela altura ganhava­‑se pouco. Hoje, algumas ganharão mais. Os artistas que fazem novelas, todos. Eu morava na Avenida Rio de Janeiro, onde ainda mora o meu filho, que é o meu casarão. Dali casei, ali morreu a minha mãe, o meu pai, a minha tia de quem eu mais gostava. Quem é que estava à frente da carroça ­– euzinha. Digo isto em revista, porque se disser a sério vou chorar. Ai ai ai ai ai ai, dinheiro! Quando a Eduarda me dizia: Mãe, preciso de trezentos escudos para as fotocópias. E eu: O que é que eu faço? Mas há coisas extraordinárias na minha vida. A minha filha foi uma vez convidada para ir a um congresso de psicologia a Viena. A inscrição eram dez contos, a estada, noventa. E eu dez tinha, mas os noventa não. Disse­‑lhe para pedir ao pai. O pai disse que dava, mas na tal data não lhe deu o dinheiro. E nesse preciso dia telefonam­‑me da ilha Terceira, iam fazer o 4th of July, e convidaram­‑me. E eu cheguei cá e dei­‑lhe os noventa contos. A vida foi pesada para mim, tive de gerir muitas coisas.

Os seus filhos, além dessa história familiar, também sentiram a crítica social em relação à mãe?
Então a tua mãe o que é que vai fazer em agosto? Ah, ela agora vai a Espanha, vai representar Portugal. Não, a tua mãe em agosto vai fazer um filho por gosto. Tumba, guarda­‑chuva na cabeça. Lá fui eu à escola. Segundo ciclo, a Eduarda. Fui chamada ao Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho. Então o que se passa com a Eduarda? Não se passa nada, é uma aluna brilhante. Então? Queremos saber como é que uma artista que usa decotes, fuma e se deita às cinco da manhã tem uma filha como a Eduarda. Assim. Na minha cara. Euzinha a ouvir.

As mulheres da minha idade tiveram­‑me ódios de morte. Há uns anos ligou­‑me uma senhora para casa a pedir desculpa por me ter odiado a vida toda e desejado a morte. Pensou que eu tivesse sido amante do marido. E percebeu que era mentira.

Portugal era um país insuportável.
Era. Era pior por ser mulher, porque os homens podiam tudo.

Mas também deve ter tido o contrário disso. Mulheres que agradeciam pela forma livre como vivia. Não?
Sim, sim, sim. Ainda hoje… É muito por essas atitudes que ganhei a fama de ser uma mulher de força. Nunca fui feminista, queimar sutiãs não dá muito jeito… Fiz o que quis fazer, amei quem quis amar. Desamei. Não escondo nada. Fui uma mulher fora dos cânones da nossa sociedade. Dos cânones falsos! Eu era sensualona. Até fui proibida de cantar o Amendoim Torradinho na TV… Não era de propósito. As mulheres da minha idade tiveram­‑me ódios de morte. Há uns anos ligou­‑me uma senhora para casa a pedir desculpa por me ter odiado a vida toda e desejado a morte. Pensou que eu tivesse sido amante do marido. E percebeu que era mentira. E ligou­‑me a pedir perdão… Uma vez eu estava em casa, eram dez da manhã, toca o telefone: Alô Simone, é a Amália. Qual Amália? A Rodrigues. Olhe, é só para dizer que vamos para Paris, para o Olympia, ‘tá bem, querida? E eu desligo, ‘pera aí… ‘Tou, bom dia senhora dona Amália… Desculpe, vamos para Paris?… Eu meti­‑a no espetáculo, vamos. Mas eu não tenho dinheiro para mandar fazer os fatos. Eu também não lhe estou a dizer nada, venha cá a casa e a Teresa faz os fatos para si. Lá fui eu, para o quarto dela. Teresa, são três túnicas, uma rosa, uma preta e uma verde. Ela, metro e meio, dois maços de Marlboro por dia, encostada à ombreira da porta do quarto a fumar: sabe que é muito bonita? E eu: Sei, tenho espelhos lá em casa. Tem um nariz que ninguém tem. Também sei. Tem filhos? Tenho. Que horror. Porquê? Um artista não deve ter filhos. Mas olhe, a mim apeteceu­‑me.

Amália era importante no meio musical …
Sabia tudo. Foi das pessoas que eu vi a melhor gerir, quer o bom quer o mau. E este país nunca terá noção do percurso que ela fez a nível internacional e da influência que teve. Tem uma noção muito vaga. Era completamente magnética. Ela mandou­‑me para o Brasil. Quis que eu ficasse no Olympia.

Dominava o circuito.
Sim. Mas deu comigo. É por isso que eu digo: só não sou rica porque não quis. Estava no Canadá, um bar aí com 600 pessoas. E o pianista puxa conversa e eu acabo a cantar o My Funny Valentine. E deixa de se ouvir os copos, e toda a gente vira a cabeça. Estava lá uma senhora que vem até mim, ajoelha­‑se e diz: Há muito tempo que não ouvia alguém assim. Esse pianista fez­‑me uma proposta. Eu ficava lá a ganhar noventa contos por semana.

Porque é que não ficou?
Não era capaz de deixar os meus filhos.

Não precisava.
Deixar Portugal, não! Nasci em Lisboa e quero morrer em Lisboa. Tenho uma pátria, é a minha terra, e tenho uma língua e os meus poetas e as minhas ruas. E não troco isso. Por nada.

«[Quando me senti mais livre?] Quando tive os filhos de quem quis, como quis. Sem dar cavaco a ninguém. Ninguém me tirava aqueles filhos.»

O facto de o português lhe ser inato…
Talvez, mas também cantei em inglês e em francês. A minha avó sempre falou comigo em francês. Mas não sei, era incapaz de ir para outro sítio onde não estivesse a minha alma.

Quando se sentiu mais livre?
Quando tive os filhos de quem quis, como quis. Sem dar cavaco a ninguém. Ninguém me tirava aqueles filhos.

Continua a ser livre?
Bato­‑me pelas minhas ideias e por algumas coisas que, de mim para mim, me parece que estão certas. Ter 79 anos não me impede de gostar de estar com pessoas, sair à noite, beber um whisky. Ah, que horror uma pessoa da tua idade!

Quem é que diz isso?
O cômputo geral. A ideia… até da minha geração ­– faço­‑me entender? ­– de que não se veste como eu me visto… Embora tenha uma grande preocupação com o ridículo. Mas eu olho para as pessoas da minha idade e era incapaz de me vestir assim. Ficava muito infeliz, saia e casaco preto. Se pudesse tinha cantado toda a vida com umas calças pretas e uma camisola ou um smoking.

Nunca ninguém fala da idade com ninguém. Com a Simone toda a gente o faz. Consegue explicar?
Sei lá! A mulher ainda não morreu? A mulher perdeu a voz? A mulher fez a prótese da anca. A mulher teve dois cancros…

Simone no bar do JNcQUOI que funciona no Teatro Tivoli e em cujo restaurante decorreu a entrevista.

E as rugas…
As rugas. Oh, pá! Faz favor de desculpar. Mas é uma falta de naturalidade para com as pessoas mais velhas. As pessoas não aparecem. Não há avós, não há sogras, não há bisavós nas novelas, nas peças…

É a tirania da juventude.
Então eu estou na tirania da gente de idade. É um bocado da minha atitude, não me deixar influenciar pela velhice. Aquilo que me está a ser difícil é que eu por dentro não tenho esta idade. E fisicamente tenho os achaques de uma mulher que vai fazer 80 anos. E gerir isso é… é do caraças!

Olha para o espelho e irrita­‑se?
Então não? E depois vou para me levantar e dói­‑me a perna, e vou fazer fisioterapia.
E coxeio. E bengala ­– e depois dizem que estou de bengala. Gerir isto é uma aflição… Daquelas! Isto vai sempre de degrau em degrau. E eu tenho andado qual rapariga de 30 anos a fazer a estrada. Há dois anos fomos ao Canadá. Dou concertos, num desvario. No outro dia fiz dois mil quilómetros.

Tem pena de não ter nascido mais tarde?
Não. Teria perdido uma fase linda da Europa e de Portugal, 1960 e 70, grandes músicas, grandes concertos. Perdia o tempo da espera do telefonema do namorado. Ele não telefonou, será que vem? Agora as pessoas vão tomar um copo e zap, já foram para a cama. Como foi que disse? Ainda agora cheguei já me mandaram cantar? Perdeu­‑se tudo. As cartas, a capacidade de sonho. Estas miúdas e miúdos têm tudo.

Tenho tido a sorte de ter palmas de várias maneiras. Quando faço uma coisa na TV e o meu neto manda uma mensagem a dizer: «Ganda cena, avó». Eh pá, que grande salva de palmas. Caminhar no Bairro Alto e rapazes e raparigas a tirar fotografias comigo. Palmas.

Costuma dizer que é preciso saber viver sem palmas…
É.

Mas para si não é, não tem sido preciso.
Não tem sido. Porque eu tenho tido a sorte de ter palmas de várias maneiras. Quando faço uma coisa na TV e o meu neto manda uma mensagem a dizer: «Ganda cena, avó». Eh pá, que grande salva de palmas. Caminhar no Bairro Alto e rapazes e raparigas a tirar fotografias comigo. Palmas.

Tem saudades de alguma coisa?
Tenho saudades de mim.

Como é que passa os seus dias?
Aborreço­‑me. Aborreço­‑me de mim. Para quem vive sozinha há 21 anos…

Então este espetáculo também é uma bênção?
É.

Às vezes não se cansa de si própria?
Às vezes. Dá­‑me uma vontade de tirar a Mariazinha cá de dentro que é para ela não me chatear tanto. Não tenho o direito de me queixar de nada. Tenho obrigação de ser feliz.

E ser perfeita? Parece que sempre perseguiu isso. A mulher que é uma estrela da música e ainda faz pastéis de bacalhau…
Não, que ideia. Sei cozinhar, isso sei. Sou boa dona de casa porque a minha mãe me ensinou. Tocar piano não sei. Mas não tenho essa mania de ser a menina perfeita. Tenho defeitos, já fui muito impulsiva. Já achei que tinha sempre razão, e nem sempre tive. Mas nunca achei que era superior a qualquer coisa ou pessoa. Chamo­‑me Simone e canto cantigas, mais nada.

Mas aposto que os erros a irritam muito.
Fico lixada quando percebo que errei.