Sida: «Há um novo grupo de risco: os confiantes»

Texto Catarina Fernandes Martins | Fotografia de Shutterstock

A médica Jacinta Azevedo trabalha com doenças contagiosas desde antes do aparecimento do VIH/SIDA. Olhando para a história dessas doenças, a imunologista teme que certos padrões se repitam.

«Na década de 1950, depois da descoberta da penicilina, os casos de sífilis e gonorreia baixaram radicalmente para aumentarem exponencialmente logo de seguida, até aos anos 1980, em que as campanhas de prevenção contra o VIH provocaram uma redução das DST bacterianas. No início do século XXI assistimos à re-emergência destas duas doenças, que tem acompanhado o aumento dos casos de VIH», diz a imunologista que dirige o Centro de Deteção do VIH na Lapa.

Em julho deste ano, uma das figuras mundiais sobre a doença e diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Contagiosas dos Estados Unidos, Anthony S. Fauci, disse numa conferência internacional que indivíduos com cargas virais suprimidas não podem transmitir o vírus.

Segundo o Centro de Controlo e Prevenção da Doença, os doentes HIV/SIDA que tomem a medicação diária e «apresentem uma carga viral suprimida não correm qualquer risco de transmitir o vírus HIV.»

No final de setembro, o Centro de Controlo e Prevenção da Doença (CDC) divulgou uma carta onde se lia que os doentes HIV/SIDA que tomem a medicação diária e «apresentem uma carga viral suprimida não correm qualquer risco de transmitir o vírus HIV a um parceiro que não esteja contaminado». No mês de novembro, a prestigiada publicação científica britânica Lancet concordou com a ideia num editorial.

Esta mudança de discurso não aconteceu do dia para a noite. Em 2008, especialistas suíços já tinham anunciado que pacientes com níveis de HIV indetetáveis não podiam transmitir o vírus através do contacto sexual. A partir de 2011, estudos importantes confirmaram essa ideia.

Para assinalar o Dia Mundial da Luta contra a SIDA, o jornal norte-americano The Washington Post publicou um artigo sobre os efeitos que a mudança de diretivas está a produzir nas vidas dos doentes, dando voz a seropositivos que sentem que pode haver uma mudança no estigma que enfrentam nas suas vidas.

Apesar de reconhecer a importância da atenção dada às pessoas doentes, que «precisam de ter acesso aos cuidados e têm direito a não enfrentar discriminação», a médica Jacinta Azevedo está preocupada com a falta de foco na prevenção.

As metas 90-90-90 da ONUSIDA para 2020 – que 90% das pessoas infetadas devem ter o diagnóstico, que 90% recebam tratamento antiretroviral e que 90% destas tenham carga viral indetetável – colocaram o foco nos pacientes com HIV, defende Jacinta Azevedo.

Apesar de reconhecer a importância da atenção dada às pessoas doentes, que «precisam de ter acesso aos cuidados e têm direito a não enfrentar discriminação», a médica está também preocupada com a falta de foco na prevenção.

«Este problema é uma moeda de duas faces. Foi uma ótima notícia quando surgiu a terapêutica anti-retroviral de alta potência porque melhorou a esperança de vida daqueles que estavam “condenados”. Por outro lado, se a doença não é mortal, já não há tanto medo, já não é preciso protegermo-nos. A minha grande preocupação é com aqueles que ainda não foram infetados»,” diz.

Preocupação que aumenta quando a médica olha para os números em crescimento das doenças sexualmente transmissíveis além do HIV/SIDA. Tanto mais que doenças como a sífilis e a gonorreia são «portas de entrada para o HIV», explica. A sífilis é neste momento a doença sexualmente transmissível com maior incidência em Portugal, de acordo com a DGS.

Se o aumento das doenças sexualmente transmissíveis é uma realidade em todo o mundo, Jacinta Azevedo tem críticas a fazer à visão das autoridades para este problema.

«Em outros países a luta contra o VIH incorpora a luta contra as outras infeções sexualmente transmissíveis. Em Portugal há foco exclusivo no VIH, esquecendo que as outras doenças abrem a porta ao VIH», diz.

Na verdade, o número de novos casos de infeção com o vírus VIH está a aumentar na Europa, a única região do mundo onde isso acontece.

Consciente de que está a fazer uma declaração «politicamente incorreta», a imunologista arrisca uma previsão. «Quando o Centro de Controlo e Prevenção da Doença e a Organização Mundial de Saúde põem como meta ter doentes infetados sob tratamento na esperança de que a transmissão não se faça, isso preocupa-me porque leva muitas pessoas a acreditar que não precisam de usar preservativo. É um facto que a transmissão é menor, mas não é nula. O VIH pode vir a aumentar por aumento de contactos sexuais não protegidos», diz.

Na verdade, o número de novos casos de infeção com o vírus VIH está a aumentar na Europa, a única região do mundo onde isso acontece.

Jacinta Azevedo diz que a população mais vulnerável neste momento em Portugal é «a população sexualmente ativa», particularizando os mais jovens e os idosos.

Um relatório divulgado esta semana pelo Centro Europeu para a Prevenção e Controlo da Doença (ECDC) e pelo Gabinete Regional para a Europa da Organização Mundial de Saúde (OMS-Europa) concluiu que Portugal está entre os países da Área Económica Europeia que apresentam mais casos de diagnósticos tardios para a infeção com o vírus VIH, entre os adultos mais velhos: acima dos 50 anos.

«Começámos por dizer que havia grupos de risco, depois passámos a falar de comportamentos de risco. Mas eu atrevo-me a falar num novo grupo de risco, o dos confiantes.»

Para a imunologista, a vulnerabilidade dos jovens deve-se à ineficácia «das mensagens de saúde pública e informação sexual» que os atingem. A este propósito, Jacinta Azevedo refere vários mitos que lhe chegam nas consultas.

«Há o mito de que quem tem parceiro fixo não tem risco, o mito de que só os toxicodependentes ou as prostitutas correm risco, o mito de que conheço bem certa pessoa, que tem bom aspeto e portanto não preciso de me proteger», diz.

Por tudo isto, Jacinta Azevedo fala de um novo grupo de risco: «começámos por dizer que havia grupos de risco, depois passámos a falar de comportamentos de risco. Mas eu atrevo-me a falar num novo grupo de risco, o dos confiantes. Agora quando as pessoas são infetadas a resposta quase a 100% é “porque confiei”».