Como um jornal vendeu um país que não existe

Texto de João Mestre

«Porque não inventamos um país?» A proposta de Philip Davies não teria nada de estranho, trabalhasse ele na indústria da ficção… e não num jornal de referência, numa época em que as notícias falsas não estavam na ordem do dia. E não só conseguiu levar esse jornal a publicar uma elaborada mentira como ainda o fez ganhar dinheiro com isso.

Em 1977, Davies era delegado comercial do The Guardian. «O Financial Times estava sempre a fazer cadernos especiais sobre pequenos países dos quais eu nunca tinha ouvido falar», contou, trinta anos depois, a um jornalista da sua antiga casa.

Com a cumplicidade do editor de projetos especiais, Stuart St. Clair Legge, e do editor da secção internacional, Geoffrey Taylor, levou a ideia adiante. Taylor deu forma e conteúdo à mirabolante empreitada, bem como ao próprio país, que imaginou, com grande detalhe, num mapa feito de duas ilhas, uma em forma de ponto, a outra de vírgula.

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San Serrife tinha a forma de ponto e vírgula

Stuart acrescentou-lhe o nome, um trocadilho que, na altura, muito antes da democratização dos processadores de texto, só a quem trabalhava com tipografia levantaria alguma suspeita: San Serriffe. [O nome provém de Sans Serif, um tipo de letra desprovida de serifas, os pequenos traços que adornam no fim das hastes das letras.]

O trocadilho tipográfico acabou por se tornar um precioso recurso para batizar as diversas ocorrências geográficas do país: a capital chama-se Bodoni, nome de um tipo de letra; as ilhas que compõem o arquipélago chamam-se Caissa Superiore e Caissa Inferiore (no jargão, «caixa alta» e «caixa baixa», letra maiúscula e minúscula, respetivamente); e o nome do ditador que governa o pequeno país, o General Pica, vem de uma unidade de medição tipográfica.

No dia 1 de abril de 1977, o The Guardian chegou às bancas com um caderno especial. À semelhança dos tais que o Financial Times publicava, nestas sete páginas dedicadas ao próspero país de quem nunca ninguém ouvira falar – no momento em que este, alegadamente, assinalava dez anos de independência – cabiam artigos sobre política monetária, desempenho da economia, comentário político, mas também reportagens sobre o florescente setor do turismo ou sobre um curioso fenómeno geológico (explicado por um «correspondente científico») que faz as ilhas de San Serriffe deslocar-se para nordeste à razão de 1,4 quilómetros por ano.

O General Pica era o ditador que governava San Serrife.
O General Pica era o ditador que governava San Serrife.

Muita gente acreditou. Não desconfiaram de pormenores de recorte absurdo, como a legenda de uma fotografia que refere «as muitas praias onde o terrorismo foi virtualmente erradicado», um artigo sobre educação que lista a disciplina de Apanha de Pérolas como parte do plano curricular nacional, ou o perfil do ditador que começa com a frase «O General Pica é um homem de família, uma qualidade que se reflete na sua escolha de ministros» (dois eram filhos, uma era tia e outro seu primo direito). Ou até o anúncio da abertura de uma vaga de leitor em Espetroescopia Lunar na Universidade, que não só incluía um salário chorudo como também alojamento gratuito e o usufruto de uma canoa.

À distância de quarenta anos, parece quase impossível que uma mentira tão descarada tenha convencido tanta gente.

Na manhã desse 1 de abril, ao entrar na cantina da redação, Geoffrey Taylor, editor da secção internacional, foi recebido com um aplauso. As telefonistas do jornal, essas não terão partilhado do entusiasmo.

Ao longo desse dia – e dos seguintes –, os telefones não pararam de tocar: leitores interessados em saber mais sobre San Serriffe e agências de viagens e companhias aéreas a reclamar pelo transtorno que lhes causou o fluxo anormal de chamadas a pedir reservas para um país inexistente.

Isto além das cartas, centenas delas, incluindo umas quantas candidaturas ao tal lugar de leitor em Espectrosescopia Lunar. Houve também quem percebesse o logro e alinhasse na brincadeira: uma carta indignada endereçada pela Frente de Libertação de San Serriffe acusava o tom submissamente pró-governamental do caderno.

Para ajudar a tornar a mentira mais credível, Alguns dos maiores anunciantes do jornal Aderiram à partida, com anúncios falsos relacionados com a temática.

À distância de quarenta anos, parece quase impossível que uma mentira tão descarada tenha convencido tanta gente. Porém, os tempos eram outros. Na perceção geral do público, se determinado assunto ou ocorrência estava no jornal, não poderia ser senão verdade. Além de que não havia grande forma de, na dúvida, verificar a sua veracidade. Mas o especial do The Guardian tinha ainda outro trunfo.

Para ajudar a tornar a mentira mais credível, foi convocada a agência de publicidade J. Walter Thompson. Além de um anúncio próprio, em que comunicava a abertura dos escritórios no coração de Bodoni, com uma equipa «fluente em caslon, inglês e português (o país era uma ex-colónia ultramarina portuguesa, com direito a igrejas manuelinas e tudo), a agência conseguiu convencer alguns dos maiores clientes a aderir à partida, com anúncios falsos relacionados com a temática.

A Guinness publicitou uma curiosa variedade da sua cerveja (de corpo branco e espuma preta) apenas produzida em San Serriffe. A After Eight aludia à diferença de duas horas entre Londres e o país fictício. A Texaco lançava um passatempo em que o vencedor teria uma viagem com todas as despesas pagas (e a companhia do então campeão mundial de Fórmula 1 James Hunt) ao Grande Prémio de San Serriffe. E a Kodak criou um concurso fotográfico, em busca de imagens «que reflitam verdadeiramente a evanescente beleza destas ilhas fabulosas».

Mais de metade do espaço destas sete páginas foi ocupado com publicidade paga. Como receita extraordinária, o The Guardian vendeu ainda 12 mil T-shirts oficiais do país, bem como autocolantes de para-choques com a inscrição «Eu já estive em San Serriffe». Quantas mil palavras vale um punhado de bons anúncios falsos?