«O jornalismo vive uma crise muito preocupante»

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Entrevista de Alexandra Tavares-Teles | Fotografias de Jorge Simão

Imaginem-se sem a câmara. O que muda na vossa atitude e no olhar?
Alfredo Cunha (AC) – Não funciono sem uma câmara na mão ou à mão. Se for ali ao outro lado da sala ela vai comigo.
Rui Ochoa (RO) – A máquina anda sempre comigo. Mas ainda que não andasse o meu olhar parte sempre da visão fotográfica. Olho para as pessoas e para as situações a partir de um retângulo de uma máquina fotográfica. Sempre, o que provavelmente me dará uma visão deturpada, mas é assim.

A velha questão da câmara como extensão e filtro. E escudo também?
AC – Filtro e escudo porque toda a gente tem medo. Há realidades que só consigo encarar através da câmara. No Iraque aconteceu-me isso todos os dias. A câmara é uma barreira invisível e blindada que me protege. A visão através da câmara funciona do ponto de vista estético e da segurança.
RO – Sem esse filtro psicológico não seria possível fotografar determinados cenários difíceis.

Mas trata-se de falsa segurança. Até onde já foram, que riscos pisaram que em retrospetiva vos fazem estremecer?
RO – Fiz vários cenários de guerra, no Iraque, em Angola na guerra civil, com o Alfredo na Roménia numa altura muito complicada (queda do ditador Nicolae Ceausescu ), vivi alguns perigos porém nunca tive medo antes de o ter. Não ter medo é uma irresponsabilidade, é evidente, mas nunca me questionei muito. Sempre pensei “estou aqui para mostrar o que aqui se passa”, numa mistura de ingenuidade com missão.

E de poder. A câmara é uma licença.
RO – Muito poder.
AC – Poder e fragilidade na medida em que nos transforma em alvo. Mas não me queixo. Foi a profissão que escolhi, a de jornalista fotógrafo.

Aceitam que vos chame artistas?
AC – Sempre considerei a fotografia uma arte. Hoje sou apenas um fotógrafo, por isso, podem chamar-me o que entenderem que sou. Por exemplo, um simples fotógrafo de Castro Verde. Exceto jornalista. Já não sou.
RO – Claro que é uma arte. Não se esqueçam que a chamada 7ª arte nasce a partir da invenção da fotografia

Então, o que é ser fotógrafo?
RO – A fotografia é uma marca da história, para o tempo. Nesse sentido, e ainda que possa parecer pretensioso, digo que sou um fazedor de história. Quero que as minhas fotografias deixem marca.
AC – Sou fotógrafo desde que nasci, represento a terceira geração de fotógrafos da família. Levei muita lambada do meu pai, que era fotógrafo, tal como seu pai, o meu avô Alfredo Cunha. Entrei num laboratório pela primeira vez devia ter seis, sete anos, aos oito anos já imprimia e fotografava casamentos e batizados com o meu pai. Achava aquilo uma grande chatice e, portanto, não queria ser fotógrafo. Nessa fase , em boa verdade, nem isso nem outra coisa. Não queria estudar, não queria trabalhar (risos).
RO – (risos) Isso é o ideal, Alfredo.
AC – Pois é, mas aí entraram as lambadas do pai. Só mais tarde ganhei gosto pela coisa.

Quando?
AC – Quando comecei a fotografar as minhas amigas. Percebi então a imensidão da fotografia.
RO – (risos) Que não metesse mulheres.
AC – Há melhor razão? Tão boa razão que lhe tomei o gosto e fui trabalhar para O Século. Portanto, o que é ser fotógrafo? Não sei. Mas sei que a fotografia é a minha vida, que sem ela não saberia viver.

«Mentiria se afirmasse que não tenho saudades dos meus amigos e da redação. O jornalismo foi uma paixão. Mas hoje nem o jornalismo me quer nem eu quero o jornalismo.», Alfredo Cunha

Tiveram carreiras longas, reconhecidas, nos jornais. Vivem bem longe das redações?
AC – Mentiria se afirmasse que não tenho saudades dos meus amigos e da redação. O jornalismo foi outra paixão e sonho muito com a reportagem. Mas em boa verdade hoje em dia nem o jornalismo me quer nem eu quero o jornalismo. A única coisa que quero fazer é fotografia editorial e conceptual, projetos como América América, esta exposição conjunta com o Rui. Este está a ser o período mais produtivo da minha vida.
RO – Foi muito difícil, muito doloroso, mas agora estou aliviado, tal é o estado do jornalismo e a crise que vive.

A crise é conjuntural ou fazem um diagnóstico mais grave? O fotojornalismo acabou?
RO – O jornalismo passa por uma fase expetante, confusa, muito confusa, em resultado da promessa que alguns paladinos do novo jornalismo fizeram aos empresários: a de que era possível fazer jornalismo barato, a de que as editorias não são necessárias, a de que os bons fotógrafos não são necessários, a de que afinal qualquer um consegue carregar num botão. O jornalismo e consequentemente o fotojornalismo não acabou nem vai acabar mas vive um interregno muito preocupante.
AC – Uma crise criada por patrões incompetentes que não souberam gerir o negócio, gente que substituiu jornalistas por gestores e jornalismo por cartões de crédito e por carros topo de gama. E a fotografia foi a primeira vítima. Mas quando o sobressalto passar e o modelo se ajustar, o jornalismo fotográfico continuará e continuaremos a ter fotógrafos. Uns bons, outros maus. Se fotografam com uma máquina ou com um telemóvel é indiferente.

Não há aí demasiado otimismo?
AC – Sou um otimista mas as pessoas não podem submeter-se, têm de lutar. É preciso e urgente não dobrar a espinha, chamar palhaços aos palhaços, dizer não aos patrões e aos diretores incompetentes. Alguns colegas têm sido os nossos maiores carrascos. Mais que os patrões.
RO – Há um grande retrocesso em relação ao que foi conseguido, e muito a custo, nos anos 90 mas a crise passará.

«Durante anos, as redações desvalorizaram-nos. Os fotógrafos eram feios, porcos, incultos, usados por quem detinha o poder. E o poder estava nas mãos de gente do tipo moral dos rapazes lambe-botas dos nossos dias», Rui Ochoa.

Como lidam com esse retrocesso tendo sido os dois primeiros editores de fotografia?
RO – Custa um bocado sobretudo porque foi uma guerra difícil. Não fossemos (eu e o Alfredo, e outros camaradas, é justo referi-lo) tipos com personalidades fortes e não teria sido possível. Durante anos e anos, as redações desvalorizaram-nos. Os fotógrafos eram feios, porcos, incultos, usados por quem detinha o poder. E o poder estava nas mãos de pessoas do tipo moral dos rapazes lambe-botas dos nossos dias. Algumas ascenderam depois a diretores de grandes semanários.
AC – Basta dizer que naquela época poucos eram os fotógrafos que tinham poder para impor uma assinatura nas fotos. Ou que nas deslocações era muito comum serem apresentados pelo jornalista como “o meu fotógrafo”.
RO – Acontece que os leitores foram exigindo cada vez mais rigor e verdade e não há rigor sem a fotografia. Francisco Balsemão, primeiro, e Belmiro de Azevedo depois, perceberam que havia que dotar o fotojornalismo de estatuto próprio e criar equipas consistentes, disciplinadas e com visão.
AC – Antes de mais foi uma boa decisão empresarial, que se refletiu nas vendas.
RO – A revista do Expresso valia 33 por cento de influência nas vendas e vivia em 70 por cento da fotografia. Da boa fotografia. Balsemão insistia todas as semanas para que houvesse uma grande fotografia na primeira página. E José António Saraiva defendia o mesmo.
AC – Começaram a perceber que a imagem vende.
RO – Que não há jornalismo moderno sem investimento no fotojornalismo. E a verdade é que é precisamente nessa altura que se dá um crescimento brutal do jornalismo.
AC – E vai voltar a acontecer. Na net ou no papel, a grande fotografia vai voltar outra vez em grande.
RO – Na altura foi uma questão de poder. O poder de decidir o espaço a dar à fotografia. É sempre o poder.

Ninguém gosta de dividir poder. Como reagiram as redações?
RO – Algumas mentes ficaram perturbadas e todos os dias havia lutas tremendas. Quem até ali decidia que fotografias se publicavam ou era o chefe de redação ou o gráfico. O meu papel e o do Alfredo foi o de lutar para que a fotografia tivesse dignidade igual à do texto. De repente, as redações viram entrar uma nova geração de fotógrafos, cultos, que sabiam falar e comer à mesa, que se vestiam como deve ser. Criaram-se equipas que rivalizavam com as dos melhores jornais do mundo.
AC – Oh Rui, convenhamos que alguns (fotógrafos) continuaram e continuam a ser feios porcos e maus (risos). Mas é verdade, criaram-se grandes equipas.
RO – E esta foi a pedra na engrenagem. Na engrenagem dos medíocres rancorosos, que perderam o poder de escolher fotografias, coisa para a qual não tinham a mínima vocação. Esses tipos exerciam uma pressão violentíssima e não descansaram enquanto não acabaram com o nosso trabalho e hoje nenhum jornal tem editor de fotografia. Venderam aos patrões a ideia de que a fotografia não é importante, de que bastava fotógrafos a 500 euros, que tudo se fazia. E o resultado está à vista – a degradação da qualidade do jornalismo.
AC – O problema não é só esse. Nos últimos dez anos, assistiu-se a um saneamento políticos das redações: o jornalismo era de esquerda, hoje é de direita.
RO – Não diria tanto. O problema é que não tem ideologia. Infelizmente nem é de direita nem é de esquerda.
AC – Tem, Rui, e é de direita. Já tens órgãos de informação bem feitos e bem pensados de direita. No Público, a coisa só descambou depois da saída do Vicente Jorge Silva.

«Uma redação em que os jornalistas não discutem é uma redação morta. Esse é um dos problemas de hoje. Para mim, é inconcebível», Rui Ochoa

Como lidaram com essa pressão? O vosso mau feitio é lendário.
AC – Muito facilmente: rua da minha secção. Disse-o a vários diretores. Eles: “ai, eu sou o diretor”. E eu: “pois, perdão meu senhor mas quem escolhe as fotos sou eu”. Eles: “Pois não a publico” e eu “ai não? então sai uma mancha, não te dou outra”. (risos) Isto aos berros e numa linguagem muito violenta.
RO – A única maneira de lidar com isso era exercer o poder com pulso. Fiz questão e por isso chamavam-me “o coronel”. Com pulso e com berros e com vernáculo. Já agora, e qual o problema de berrar, de discutir? Uma redação em que os jornalistas não discutem é uma redação morta. Esse é um dos problemas de hoje. Para mim, é inconcebível. Mais: dizem-me que há diretores não falam com jornalistas. Se é porque não lhes apetece, porque são incompetentes, porque têm medo de enfrentar ou porque não estão para dar confiança não sei. Sei que no meu tempo o diretor sofria pressões, berros, insultos se fosse preciso, e ninguém se zangava. No meu tempo o diretor era o primeiro da redação. Hoje, é o último da administração.

Há hoje dinheiro para pagar essas vossas equipas?
AC – Com uma política correta, há. Haverá neste negócio melhor investimento que em bons jornalistas e fotógrafos? Que raio de ideia é esta de que se pode enganar um leitor servindo-lhe um produto mau? Quem acredita que se pode fazer um produto bom com jornalistas sem qualidade e baratos? Não há dinheiro para jornalistas mas há dinheiro para pagar 20 mil euros por mês a administradores da treta.
RO – Com carro de 60.000
AC – O negócio não aguenta mordomias destas.

Nunca tiveram mordomias?
RO – Um bom ordenado. A certa altura, como estava generalizado entre os diretores, atribuíram-me um carro.
AC – E trabalhávamos 16 a 18 horas por dia. Mas o dinheiro não dá para tudo. Mas isto vai mudar.

Como?
AC – O The New York Times está a subir brutalmente as vendas em papel e fechou várias secções de Internet. Vai haver uma geringonça para a imprensa. Temos nos jornais dos melhores jornalistas.
RO – Ainda a crise e o digital não tinham chegado e já os burocratas ocupavam os jornais e davam ordens. Quando um jornal não manda um jornalista ao Irão porque é caro, o negócio está condenado.

«A solução passa pelo equilíbrio entre o papel e a net, por gestores competentes e jornalistas que não se verguem. Quero jornais com grandes textos e fotografias que não se encontrem na net», Alfredo Cunha.

Da falta de dinheiro para a força da Internet. O mundo mudou.
RO – Não venham dizer-me que a culpa é da net. Há jornais que vendem porque fazem um produto profissional tendo em conta o tipo de leitores.
AC – A solução passa pelo equilíbrio entre o papel e a net, por gestores competentes e por jornalistas que não se verguem. Quero jornais com grandes textos e fotografias que não se encontrem na net.

Ponderam voltar ao jornalismo?
AC – Nunca mais, não se deve voltar aonde fomos felizes.
RO – Se calhar não. No atual cenário, nunca.
AC – No último ano tive vários convites para voltar. Não aceitei. Não estou para os aturar. Quero fazer as minhas fotografias.

Falem-me das vossas fotografias. Por exemplo, deixam alguém mexer-lhes?
AC – Nem pensar. Nas minhas fotografias só mexo eu.
RO – Era o que faltava. Produzo e edito todas a minhas fotografias. Nas minhas funções atuais, trabalhando com o Presidente da República, o trabalho é tanto que por vezes perguntam-me por que não arranjo alguém para tratar das fotos. Nem pensar.

O que distingue as vossas fotografias?
RO – As minhas são as minhas. Trabalhei sempre à procura de um estilo que me definisse.
AC – Não sei bem responder. Gosto de me ver um fotógrafo humanista.

Os dois são também retratistas. O que faz um grande retrato?
AC – Ser bom. É simples, não é?
RO – Nem mais.

Foto de Alfredo Cunha, escolha de Rui Ochoa. Lisboa, 1975. Pilhas de caixotes e contentores simbolo do retorno de mais de meio milhão de portugueses que vivam em África. “Gosto muito de muitas fotografias do Alfredo mas esta é maravilhosa. Estética e simbolicamente mas também porque encerra a definação de fotojornalismo

Qual consideram ser vosso melhor trabalho?
AC – Há anos que ando a dizer que o meu trabalho sobre a descolonização é muito melhor que o do 25 de abril. O 25 de abril foi o trabalho de um dia. Na descolonização andei a fotografar com a sensação de que que ninguém via os retornados. Os seus caixotes estiveram esquecidos em Belém durante meses. Durante 15 dias fiz a ponte aérea Lisboa/Luanda diariamente. Foi um trabalho intenso.
RO – É difícil escolher. Talvez este trabalho sobre a América, iniciado há 15 anos e que ainda não está concluído. Fiz um primeiro livro, Os Portugueses da América, gostaria agora de fotografar a América pobre. No meu caso, nunca nada está feito, o que é bom, ajuda-me a não desistir.

O mundo da fotografia mudou. Como se relacionam com a mudança?
AC – Mantendo-nos informados e atualizados. Não falaria em mudança mas em evolução. A questão do analógico e do digital é falsa.
RO – A técnica é evolutiva e tem que ver com rapidez. Dantes, enviar uma fotografia demorava uma hora, hoje apenas alguns segundos. A fotografia continua a ser feita no cérebro do fotógrafo.
AC – Nos últimos cinco venderam -se mais máquinas fotográficas que nos restantes 145.

A técnica trouxe menos verdade à fotografia?
AC – Manipulação houve sempre, não tem que ver com o digital ou o anal
RO – A fotografia digital constitui um novo paradigma. Mas a essência é a mesma.

Um fragmento da realidade não a representa, pode até distorcê-la. Quanto melhor é a fotografia menos verdade encerra?
AC – Respondo com a frase de Avedon (Richard): «Todas as fotografias são verdadeiras, nenhuma é a verdade».

Foto de Alfredo Cunha, escolha de Rui Ochoa. Lisboa, 1975. Pilhas de caixotes e contentores simbolo do retorno de mais de meio milhão de portugueses que vivam em África. “Gosto muito de muitas fotografias do Alfredo mas esta é maravilhosa. Estética e simbolicamente mas também porque encerra a definação de fotojornalismo.

É mais fácil fotografar agora?
AC – Mais difícil. Fazer boa fotografia é mais difícil. É mais fácil fazer fotografia em quantidade, mas boa fotografia, não. E vai ser cada vez mais difícil.

Ainda há artesãos da fotografia?
AC – Claro que há.
RO – Não como dantes, Alfredo.

Um fotógrafo também se mede pelo que decide não fotografar? O que vos leva a carregar ou a não carregar no botão?
RO – Há uns anos, no autódromo do Estoril, um concorrente foi atropelado a 200 à hora. Foi cair uns 100 metros à frente do impacto. Não sei se estava morto. Fotografei-o sem o ver e o que fez carregar no botão foi o instinto. Tu estavas lá, Alfredo.
AC – Estava ao teu lado e não fui capaz de carregar no botão. Vi o homem cortado ao meio e gelei. Conseguiste fotografá-lo porque acho que não o viste.
RO – Vi-o a partir da máquina. Quando tirei a máquina fiquei horrorizado.
AC – Quando percebi que tinha falhado a foto e lembro-me de te dizer: ‘Estou tramado’ (o verbo foi outro, mais contundente). E tu: ‘Estás nada, eu dou-te o negativo’.
RO – Tivemos uma cena idêntica na Madeira, lembras-te? Quando caiu o avião.
AC – Sempre os cadáveres, Rui. Os nossos fantasmas.

O que vos move nesse momento?
RO – O espírito de informar. O Alfredo não fotografou aquela cena terrível porque deu a si próprio tempo para pensar. Eu não. Só pensei depois.
AC – Só me aconteceu duas vezes. E do outro caso não quero falar.

Nunca se arrependeram de uma fotografia?
RO – Não me arrependo de nada. A minha missão é fotografar. Nunca fiz fotografias indignas. Há muitas forma de fotografar qualquer coisa terrível.
AC – No Iraque fotografei dezenas de mortos. Não me arrependo, mas convivo mal com isso. Horror é fotografar uma pessoa que nos está dizer adeus e dez minutos depois o ver a mesma pessoa a ser levado num saco, aos bocados. Aconteceu comigo, ainda hoje sonho com isso. Só me arrependo das fotografias que não fiz.

«A fotogenia é o génio do fotógrafo. Se ele não conseguir captar a alma do fotografado, não há beleza que resista», Rui Ochoa.

Dizem que os pescadores nunca esquecem os peixes que lhes escaparam da rede. O mesmo acontece com as fotografias e os fotógrafos?
AC – Nunca me esqueço as fotografias que falhei.
RO – Ui, impossível. Tenho centenas delas que “vi” e não fotografei por diversas razões alheias à minha vontade. Davam para fazer um imenso livro.
AC – Recentemente perdi um cartão de 64 gigas com fotografias que fiz na Índia. Milhares de fotografias de elefantes. Lembro-me delas todas.
RO – (risos) Ficaste doente.
AC – Doente? Fiquei louco. Dizia-me a minha filha ‘mas, pai, tens aqui tantos elefantes’. Tinha mas não eram os elefantes que perdi.
RO – Senti o mesmo quando me roubaram o computador com 10 mil fotografias lá dentro, sem back-up. Mas, como dizes, o que custa mais são as fotografias que vimos acontecer à nossa frente e não fizemos.

Pensem nos rostos mais fotogénicos do último século. Quais escolhiam?
AC – Samuel Beckett.
RO – Lady Di.

Como definem fotogenia?
RO – A fotogenia é o génio do fotógrafo. Se ele não conseguir captar a alma do fotografado, não há beleza que resista.
AC – Concordo.

Fotografias icónicas que gostariam que fossem vossas.
AC – Muitas, talvez Minamata, de Eugene Smith.
RO – Há fotografias icónicas que adoro e admiro, mas não me passa pela cabeça apoderar-me delas. O seu a seu dono

Que pensam dos paparazzi?
AC – Existem grandes fotógrafos paparazzi, mas até isso foi abastardado.
RO – São um certo tipo de fotografia com fins não informativos e que de algum modo servem sempre os que são alvo desses fotógrafos.

E do Instagram (que não frequentam)?
RO – Alguns fotógrafos, não por acaso os menos talentosos, acham que a proliferação de meios para obter uma fotografia veio destruir a profissão. Penso exatamente o contrário. A maior parte das fotos que se encontram nas redes é lixo, é verdade. Mas há um lado bom. E esse lado bom é termos miúdos de 14 e 15 anos a fotografarem. Um ato banal, como é a utilização do telemóvel, está a criar cada vez mais consumidores de fotografia.
AC – Concordo completamente.

Por outro lado, com o cidadão-fotógrafo acabaram-se os exclusivos fotográficos no jornalismo.
AC – Uma boa fotografia será sempre uma boa fotografia. E será sempre imprescindível.

Que pensam das selfies?
RO – Revelam uma necessidade de protagonismo, mas nem que seja por isso, o importante é que as pessoas fotografem.
AC – Não compreendo as selfies.

Nunca fizeram um auto-retrato?
AC – Tenho mais que fazer.
RO – Nunca. Só olho para o espelho para me pentear.

Alfredo Cunha e Rui Ochoa na montagem da exposição «América/América», patente no Mira Forum, no Porto.

Têm em casa alguma fotografia tirada pelo outro?
RO – Em minha casa só tenho fotografias da minha autoria. Mas se o Alfredo me quiser dar uma das dele, aceito (risos).
AC – Esse gajo é um sovina, nunca me deu uma foto.

Amigos há quarenta anos, aparentemente fazem lembrar o cão e o gato. O que os faz gostarem tanto um do outro?
AC – Mas quem diz que gosto do gajo? Gosto lá dele. Quando o conheci não percebia a ponta de um corno de nada mas até parecia um cientista. Nada o intimidava. E convencia a malta, incluindo as mulheres.
RO – Tens razão. Já cheguei à conclusão de que não percebo nada de mulheres.
AC – (risos) Agora a sério, foste autodidata e respeito muito isso.
RO – Para além de gostar muito do teu trabalho, gosto da tua forma de estar na vida. O Alfredo é uma pessoa positiva, não se chora nem lamenta. E ao contrário de alguns medíocres sempre me ajudou (sendo mais novo que eu, tem mais dez anos disto) Ensinou-me tudo o que sabia. Naquela altura não era fácil ser bem recebido na fotografia.
AC – Nada fácil, passei por isso, sempre a quererem ver-se livres de mim (risos). Entrei para o Século Ilustrado em 1971 e logo nesse ano ganhei um prémio. Resultado: chutaram-me para as touradas. Nas touradas fotografei o José Falcão, o tipo que matou um toiro no Campo Pequeno. Resultado: puseram-me no Modas & Bordados. Aí fartei-me de fotografar modelos e fiz a minha primeira exposição. Resultado: recambiaram-me para o Século Ilustrado, onde não havia nada para fazer. Na primeira semana, dá-se o 25 de Abril. (Risos). Resultado:odiavam-me.
RO – Nunca desistes. Também gosto de ti por isso.
AC – Gosto de gente que trabalha. Eu e tu somos da província, chegámos a Lisboa com uma saca às costas e por isso não nos deixamos enganar. Sabemos que temos de trabalhar todos os dias.

Nunca foram consumidos pela rivalidade?
AC – Sempre. E já tivemos grandes divergências estéticas e políticas.
RO – Tenho uma inveja positiva do teu trabalho no 25 de Abril. Gostaria muito de o ter feito. Tenho meia dúzia de fotografias desse dia mas são de amador.

«Zangas à séria, não! Pelo menos nada que uma boa amizade não resolva rapidamente», diz Rui Ochoa. «Ele é uma melga, é verdade, mas pertence às minhas melgas», diz Alfredo Cunha

E zangas?
AC – Imiscuíamo-nos tanto na vida um do outro que chegou a dar grande sarilho. Como daquela vez na Roménia, em plena revolução (tinha morrido o Ceausescu). Eu andava há chateá-lo para que fosse passar o fim de ano a determinado sítio. “Desaparece, eu passo o fim e ano onde quiser”. E eu não gostei. “Olha lá, tu não falas comigo assim”. E ele: “Tu desaparece, olha que eu ando para te partir a tromba há muito tempo”. Pronto, confusão. Tiveram até de nos afastar.
RO – (risos) Nessa fase almoçávamos e jantávamos em casa do outro, estávamos juntos todos todos os dias. Construímos uma enorme intimidade.

E zangas sérias?
RO – À séria, não! Pelo menos nada que uma boa amizade não resolva rapidamente
AC – Ele é uma melga, é verdade, mas pertence às minhas melgas.

Lembram-se do dia em que se conheceram?
RO – Sabem uma coisa estranha? Não me lembro de primeira vez que me encontrei contigo.
AC – Lembro-me eu. Vi este gajo pela primeira vez no dia 25 de abril, no largo do Carmo. E uns dias depois, em frente à PIDE.
RO – Morávamos os dois na Amadora e de não tínhamos carro.
AC – E de aparecias no Século Ilustrado a fazer perguntas técnicas.
RO – Ao contrário de ti não nasci fotógrafo, comecei jornalista da escrita. Devo a fotografia ao Doutor Cunhal. Uma malta do JN preparava-se para me sanear por ter sido chefe de quina da mocidade portuguesa – e também porque nessa fase, tinha uma simpatia pelo MRPP. O diretor do JN propôs-me passar para a fotografia, que talvez assim me deixassem em paz. E assim fiquei.

Lisboa, Galeria 111, 1986. Numa exposição de Alfredo Cunha e de Luís Vasconcelos. Alfredo tinha 33 anos (1953) e Rui 38 ( 1948) Alfredo: «Oh pá, olha que éramos bem giros». «Eu sim, agora tu…», brinca Ochoa.

Que gostariam que um dia se dissesse de vós?
AC – Nunca fiz uma filha da putice a ninguém. Tratei bem os meus filhos, dei-lhes uma boa vida, fui um fotógrafo razoável. Gostava que se lembrassem de mim como uma boa pessoa.
RO – Que se lembrem do meu nome e do meu trabalho. E que o fazia com seriedade
AC – Calma, até lá vamos continuar a fazer muitas fotografias. Se pensam que se livram de nós, desenganem-se. Somos uns carrapatos, não desistimos
RO – É, a história ainda não acabou.

São sobretudo conhecidos como fotógrafos de política. Trabalharam com Eanes e Soares (Alfredo Cunha), com Cavaco e Marcelo Rebelo de Sousa (Rui Ochoa). É possível ser fotógrafo de política sem gostar de política?
RO – A política fascina-me mas não estabeleço muita diferença entre fotografar política ou, por exemplo, futebol. O que me move sobretudo é a paixão pela fotografia. A política é algo que segui também com paixão, sendo verdade também que permitia algum dinheiro extra.
AC – Tão simples quanto isto, tínhamos de faturar. Os fotógrafos ganhavam mal.
RO – Ser fotografo de políticos como eu e o Alfredo fomos tinha alguns riscos. Desde logo, o de sermos expulsos do sindicato dos jornalistas. Bem quiseram.

«Não [trabalharia com Álvaro Cunhal]. Porque me intimidava. Por razões diferentes, também não trabalhava com Cavaco Silva. Não gosto dele nem daquilo que representa», Alfredo Cunha.

Não eram funções incompatíveis com o exercício do jornalismo?
RO – Para mim, não.
AC – Nos Estados Unidos é normal. Há fotógrafos das agências a trabalhar com políticos. Eu não tinha vida para deixar o jornalismo e coloquei a questão quer à Lusa, onde ganhava 120 contos, quer ao Dr. Soares. O sindicato tirou-me a carteira mas não conseguiu impedir-me de trabalhar. Passei a usar a da FIJ ( Federação Internacional de Jornalismo).

Mas trabalhavam a imagem de Soares e Cavaco.
RO – Sempre fotografava Cavaco Silva como se fosse para o jornal. Exatamente a mesma coisa. É óbvio que havia uma certo cuidado, era suposto fazer uma imagem mais cuidada mas não era uma psicose. De resto não trabalhava em full time, não era funcionário nem tinha avença. Trabalhava à peça.

As convicções pessoais entraram na equação?
RO – Claro que tenho e tinha convicções políticas pessoais. E que eram compatíveis com ele. Era e sou votante do PSD. Aguardo apenas que o partido mude de líder.
AC – Antes do 25 de Abril tive ligações ao PCP, depois saí do partido. Mas nunca fui do partido socialista e Mário Soares sabia-o. Porém, trabalhei com ele mais de 10 anos.

Trabalharia com o Cunhal, Alfredo?
AC – Não. Porque me intimidava. Por razões diferentes, também não trabalhava com Cavaco Silva. Não gosto dele nem daquilo que representa.

Nunca pensaram escrever um livro com histórias desses tempos?
RO – Eu penso nisso todos os dias, seria para mim um ato conclusivo de todos estes anos. Mas há qualquer coisa que me diz que ainda não estão reunidas as condições.
AC – Esses tempos estão nos meus livros e nas coisas que publiquei, acho que não iria gostar de um livro escrito por mim.

A AMÉRICA DE DOIS FOTÓGRAFOS

A exposição AMÉRICA/AMÉRICA, de Alfredo Cunha e Rui Ochoa, convive com uma exposição sobre as Eleições Americanas de 2016, com materiais do Ephemera – Arquivo de José Pacheco Pereira.

Na galeria ao lado, a exposição dos Encontros da Imagem – FSA – Farm Security Administration, fotografias da autoria de Dorothea Lange, Walker Evans, Russel Lee, Jack Delano e Ben Shahn sobre a Grande Depressão Americana da década de 30.

As exposições estarão patentes até ao dia 24 de outubro, das 15:00-19:00 no MIRA FORUM (Rua de Miraflor, 155-147, Campanhã, Porto).

Dois dos onze armazéns da estreita Rua de Miraflores, datados início do século XX, 200 metros quadrados outrora dedicados a atividades comercias e industriais, com destaque para a Companhia Industrial de Portugal e das Colónias. As paredes de granitos escondidas por majestosas portas de madeira conquistaram Manuela Matos Ribeiro e João Lafuente, os dois fotógrafos que salvaram os edifícios cumprinco a traça original. E asim nasceram duas galerias de arte em Campanha, passo importante na reabilitação de uma das zonas mais abandonadas da cidade do Porto.

América/América mostra duas visões de dois nomes maiores da fotografia e do fotojornalismo. O desafio partiu de Ochoa.

Rui nasceu no Porto em 1948 e chegou à fotografia por acaso. Diretor de fotografia do Expresso entre 1989 e 2008 cobriu a queda do Muro de Berlim, a revolução de Bucareste e primeira guerra do golfo. Foi fotógrafo de Francisco Sá Carneiro, de Balsemão, de Cavaco Silva. Agora, de Marcelo Rebelo de Sousa.

Alfredo nasceu em 1953, em Celorico da Beira. Filho e neto de fotógrafos bem quis escapar à herança genética. Felizmente, não conseguiu. Destacou-se como fotógrafo da revolução de Abril, assinando algumas das imagens icónicas da revolução. São suas, também, as imagens marcantes da Descolonização, da chegada dos “retornados” a Lisboa, em 1975. Foi o fotógrafo oficial do Presidente da República, general António Ramalho Eanes, de 1976 a 1978, como seria depois de Mário Soares, de 1986 a 1996.