Os portugueses da América perderam finalmente a vergonha

Texto de Ricardo J. Rodrigues

É uma das maiores investigações à comunidade portuguesa nos EUA de sempre. Dulce Maria Scott, professora de sociologia na universidade de Anderson – localizada no estado norte-americano do Indiana e apontada como uma das melhores instituições do centro-oeste dos Estados Unidos – é responsável pelo primeiro Portuguese-American Community Survey da PALCUS (o Conselho de Liderança dos Portugueses-Americanos nos Estados Unidos). Esta entrevista foi feita ao longo de duas semanas, sempre por e-mail, à medida que os dados se tornavam mais e mais claros. Há algumas surpresas, mas talvez nenhuma seja mais importante do que esta: ser português na América tornou-se definitivamente um motivo de orgulho.

Até que ponto a comunidade portuguesa nos Estados Unidos ainda vive fechada sobre si mesma?
Para as gerações mais velhas de emigrantes portugueses era natural formar enclaves dentro das cidades que ocupavam. Isto não é um exclusivo português, é comum a várias comunidades imigrantes nos Estados Unidos. Estes primeiros grupos, que chegaram com baixos níveis de educação e de capacidades ocupacionais, ficaram caracterizados por uma grande concentração espacial e homogeneidade económica, viviam todos nos mesmos sítios e pertenciam às mesmas classes trabalhadoras. Mas, à medida que as gerações se sucedem, a integração socioeconómica dos portugueses permite que haja uma mobilidade espacial e uma divisão de classes similar à restante população americana. Em 2010-11 conduzi um estudo que mostrava que 65 por cento dos lusodescendentes tinham abandonado os bairros portugueses para morar nos subúrbios ou outras partes das cidades. Isso não quer no entanto dizer que tenham rompido com as raízes. Em comunidades como New Bedford ou Fall River, onde 40 por cento da população tem origem portuguesa, é impossível não conviver com pessoas da mesma origem. Ainda assim, a integração está a acontecer. Uma boa maneira de vermos isso é pelos níveis de heterogamia. Neste estudo que estou agora a fazer para a PALCUS, podemos concluir que 55 por cento dos lusodescendentes estão casados com pessoas de outros grupos étnicos. É uma grande mudança.

Também há uma grande mudança no nível de educação da comunidade portuguesa?
Há uma melhoria inegável do nível educacional, mas ainda é relativamente lenta. Tradicionalmente, os portugueses que emigraram, seja para os EUA ou para qualquer outro país, são maioritariamente trabalhadores manuais sem competências específicas. Mas, na última década, a transformação tem-se acentuado de forma muito expressiva. A cada ano que avança vemos a taxa de população com ensino superior a crescer. Hoje, 28,3 por cento da população portuguesa nos Estados Unidos tem educação universitária, apenas uns pontos abaixo da média do país – que é de 30,6. Um facto curioso é que, se excluirmos os lusodescendentes e pensarmos apenas nos que chegam diretamente de Portugal, há uma subida relevante no nível de formação. Em 2007 9,1 tinham educação universitária. Hoje são 13 por cento. Isto explica-se por dois fatores: os mais velhos vão morrendo e têm chegado aos EUA novos portugueses com maiores competências.

A maioria dos lusodescendentes têm empregos naquilo a que chamamos profissões de colarinho branco. Num estudo que fiz em 2011, as profissões mais representativas dos que já nasceram nos Estados Unidos eram médicos, advogados e engenheiros.

Esse aumento tem de ter impacto no mercado de trabalho. Se temos portugueses em profissões mais qualificadas a influência da comunidade também aumenta, certo?
A maioria dos lusodescendentes, as chamadas segundas e terceiras gerações, têm empregos naquilo a que chamamos profissões de colarinho branco. Num estudo que fiz em 2011 as profissões mais representativas dos que já nasceram nos Estados Unidos eram médicos, advogados e engenheiros. No entanto, os seus pais eram sobretudo trabalhadores de fábrica, operários de construção civil e trabalhavam na agricultura e pescas, enquanto as mães eram maioritariamente trabalhadoras de fábrica, domésticas e empregadas de limpeza. Este estudo permite ver bem as mudanças. Hoje, 38,3 por cento dos portugueses-americanos trabalham nas áreas de gestão, comércio, ciência e artes, enquanto os que têm empregos na construção e manufatura são apenas 16,7 por cento. É uma taxa de qualificação ligeiramente superior à média dos Estados Unidos, o que se torna bastante revelador sobre como a influência portuguesa na sociedade americana cresceu nos últimos anos.

O que é que isso significa na maneira como os portugueses nos Estados Unidos se veem a si próprios? Estamos mais ou menos orgulhosos de sermos quem somos?
É um mito essa ideia de que os portugueses na América desvalorizam as suas origens étnicas. Ao longo das investigações que fui fazendo ao longo destes últimos anos tornou-se bastante claro para mim que já na primeira metade do século XX os portugueses mantiveram-se fiéis ao seu país de origem, ao mesmo tempo que incorporavam um sentido de pertença com o país de acolhimento, os Estados Unidos da América.

Mas sentiam-se aceites pelos Estados Unidos? Até que ponto o isolamento da comunidade portuguesa não se explica por um sentimento de rejeição, venha ele de fora ou seja autoinfligido?
É verdade que uma boa parte da população portuguesa sentiu níveis elevados de rejeição pela comunidade já estabelecida nos Estados Unidos. Sobretudo quando o assunto era competir por um emprego. Por causa disso muita gente foi incorporando o espírito de que a cultura americana era superior à portuguesa. Os primeiros sinais de mudança começam nos anos setenta e oitenta. Foi o tempo da criação de uma consciência multiétnica da América e, muita gente não sabe disto, mas nesses anos sucederam-se manifestações e protestos dos portugueses da costa leste. O facto é que 80 por cento da emigração portuguesa ocorreu antes de 2000 e isso permitiu cimentar a confiança das populações em si mesmas. Os últimos anos mostram este fenómeno surpreendente: ser português deixou de ser uma questão para os americanos, mas tornou-se uma questão muito maior para os lusodescendentes.

Como assim?
Um lusodescendente de segunda ou terceira geração pode hoje identificar-se apenas como americano, mas este estudo da PALCUS revela que são menos de 10 por cento os que se preferem definir-se simplesmente americanos, todos os outros fazem questão de ser identificados como portugueses. Em poucos anos ser português tornou-se um motivo de orgulho.

A representação dessa portugalidade é a mesma das gerações anteriores?
Aí é que está. Os portugueses que emigraram originalmente para a América cimentaram a sua identidade replicando as festividades tradicionais, e tornando-as mais e mais elaboradas. Para os seus filhos, ser português manifesta-se de forma bem mais complexa. Apesar de os lusodescendentes continuarem a participar nessas festas, o seu espaço de identificação com as raízes está a deixar de ser aquilo que a comunidade organiza e passa a ser o país em si. A origem. Portugal, a terra portuguesa, está a tornar-se no espaço identitário dos lusodescendentes.

A identidade dos lusodescendentes não é com a comunidade portuguesa nos EUA, é com Portugal, o país. Os estudos mostram uma tendência de ligação com as raízes através das redes sociais e das viagens.

Isso quer dizer que os lusodescendentes estão a criar mais laços com Portugal do que os seus pais, portugueses que emigraram para a América?
Precisamente. Tanto nos estudos que conduzi em 2010-2011 como neste trabalho da PALCUS há uma coisa que se torna muito óbvia. A identidade dos lusodescendentes não é com a comunidade portuguesa nos EUA, é com Portugal, o país. Os estudos mostram uma tendência de ligação com as raízes através das redes sociais e das viagens. Ir a Portugal tornou-se no grande veículo de preservação da identidade portuguesa. No inquérito que estou a conduzir, 45 por cento dos lusodescendentes dizem ter visitado o país mais de 10 vezes. Quase todos manifestam um interesse renovado na gastronomia e no futebol, por exemplo. As pesquisas genealógicas dispararam, há gente a ir a Lisboa propositadamente para perceber de onde vem. E mais de 35 por cento afirma querer comprar propriedades no país, apesar de apenas 11 por cento ter vontade de abrir ali um negócio. Acredito que esta tendência cresça nos próximos anos: os portugueses da América vão deixar de estar tão importadas com a comunidade e muito mais com o país.