Porto: cinco mercearias à moda antiga que alimentam a tradição do natal

Textos Filomena Abreu | Fotografias Pedro Correia/Global Imagens

Os peixes que deram nome à casa estão por todo o lado. Logo à entrada, perto da fachada do vizinho Pretinho do Japão, mesmo pendurados no teto, exibidos nas paredes. Estão, sobretudo, na história e no cheiro do espaço, que após 92 anos já ninguém tenta disfarçar.

E porque o fariam? Esta é a Feira do Bacalhau, que desde 1925 já passou por três proprietários e continua a honrar o propósito para o qual abriu portas: servir bem todos os clientes.

Fernando Carvalho comanda, há vários anos, o leme deste barco. É ele que conhece, melhor do que ninguém, os produtos e os nomes daqueles que os procuram. Quando o Natal se aproxima há uma frase que ouve com frequência. «Sr. Fernando arranje-me um bom bacalhau.» A resposta não varia: «Arranjo sempre». Para qualquer carteira, garante.

Fernando Carvalho está há anos à frente da Feira do Bacalhau, na Rua do Bonjardim, 498A. De portas abertas desde 1925, já passou por três proprietários.

A qualidade dos frutos secos há muito que dá nome à casa. «Só tenho nesta altura. São secos mas fresquinhos.» Depois há as latas de conserva e os vinhos que dão o toque final à decoração organizada das prateleiras. «O do Douro sai bem.» Mas o bacalhau é que é. E os derivados também.

«É por isso que os nossos clientes mais nos procuram.» Nos últimos anos, as «caras», as «línguas» e os «sames» (ou «semos») têm cada vez mais saída. Servem para fazer «uma feijoada do outro mundo», um «belo arroz» ou «panados deliciosos». Os cereais de primeira vão dando corpo à fama, bem como os amendoins de Israel. «São produtos como estes que as pessoas oferecerem umas às outras, nesta altura. E que acabam por ser úteis todo o ano.»

Pretinho do Japão

Fica mesmo junto à Feira do Bacalhau, não há o que enganar. No Pretinho do Japão, que acabou de comemorar setenta anos, uma cliente vinda de Gaia examina o rigor com que o funcionário corta o bacalhau que ela irá servir na ceia de Natal. José Manuel vai fazendo postas finas e reúne toda a certeza do mundo no tom de voz. «A senhora vai ver que passará a comprar sempre aqui. Já viu o cheirinho dele?»

No final do processo, os pedaços são encastelados dentro de um embrulho de papel de cartão, atado com corda. «Já ninguém faz isso.» Enquanto a cliente se espanta com o estilo, José vai explicando que o segredo está nos detalhes. «Eu sou dos merceeiros mais novos da velha geração, aprendi com os antigos e continuo a fazer como eles.»

José Manuel, 60 anos, trabalha na Pretinho do Japão, Rua do Bonjardim 496A, desde miúdo.

Não é por acaso que é conhecido por «mestre do bacalhau». Tem 60 anos de vida e quase tanto de funcionário. «Costumo dizer que isto foi o meu ATL. Antes de ir para a escola já brincava às mercearias.» Está-lhe no sangue. «É a alma da casa», garante um dos sócios do Pretinho. «Está a começar a época em que as pessoas fazem fila para serem atendidas por ele.»

José domina esta e as outras artes. Da lista de especialidades do lugar fazem parte o café moído na hora, os frutos secos e as ameixas d’Elvas em calda. Os figos secos recheados com noz também saltam à vista. E das conservas destacam-se o mexilhão e as enguias em molho de escabeche.

Para este Natal já têm os tradicionais cabazes preparados. Podem levar chocolates, bolachas, mel e vinho. E é melhor tratar da encomenda com antecedência. É que o senhor José já não consegue sozinho dar conta de toda a loja.

Casa Lourenço

Na mercearia da esquina há uma árvore de Natal diferente, montada com garrafas de vinho. O cheirinho dos fumeiros e dos queijos deixa adivinhar a especialidade da Casa Lourenço.

Não cabe mais nada nas prateleiras desta loja que já ultrapassou os 110 anos. Há todo o tipo de vinho de mesa. E as caves do Douro estão quase todas representadas. Na primeira fila estão ainda os exóticos licores madeirenses. De banana e de maracujá. No prolongamento do balcão os frasquinhos de geleia e de compota. São eles que mostram que é possível fazer magia com os sabores. A oferta vai desde o espumante ao de vinho do Porto. Ao lado, as geleias de Alvarinho e de piri-piri aguçam o paladar.

A Casa Lourenço, na Rua do Bonjardim, 417, já ultrapassou os 110 anos e João Cunha já leva 49 atrás do balcão.

Resistir-lhes não é tarefa fácil e João Cunha conhece o que a casa gasta. É isso que o leva a encolher os ombros e a confirmar o que já se sabe: «São tudo coisas boas. De que os clientes gostam.» Os que são fiéis confiam nisso. Os que lá entram pela primeira vez nunca mais duvidam.

Muitos vêm de longe, de propósito, para levar os produtos regionais para a ceia de Natal. O proprietário há-de vender, à semelhança dos anos anteriores, centenas de quilos de queijo da Serra, dezenas de litros de azeite, e muitos cabazes de Natal.

O bom destas mercearias antigas, garante, «é a proximidade que se cria com as pessoas», diz João Cunha.

«As pessoas escolhem o que querem e nós pomos tudo dentro de um cestinho. Há quem prefira presuntos inteiros, mas queijo é que nunca falha.» O da Serra é o favorito. Mas a oferta estende-se a Trás-os-Montes. As alheiras de Vinhais, as enguias da Murtosa, as conservas de peixe-espada de Sesimbra e o presunto fazem o pleno da escolha.

O azeite transmontano está no topo da procura. Um pouco como estes negócios, ultimamente. O bom destas mercearias antigas, garante, «é a proximidade que se cria com as pessoas». E João já leva 49 anos atrás daquele balcão. «Sempre com um gosto desmedido» pelo que faz.

Casa Januário

Foi preciso que o pai de Nuno usasse de artimanhas para que a Casa Januário fosse como hoje a conhecemos. Quando o fundador ia de férias para a Barroca do Zêzere, no Fundão, o filho ficava a tomar conta da mercearia.

Era nessas alturas que aproveitava para fazer pequenas obras e introduzir novos produtos. Januário era homem trabalhador, mas com alguma resistência à mudança. Um dia, num dos regressos ao Porto, lá acabou por aceitar que as florzinhas de açúcar que as senhoras compravam para decorar os bolos tinham sucesso. E, por muito estranho que pudesse parecer, passou a haver espaço para a doçaria e para a confeitaria nesta mercearia.

Teresa Torjal é a gerente da Casa Januário, na Rua do Bonjardim, 352, uma mercearia onde a doçaria e a confeitaria ganharam espaço.

Os sócios, que acabaram por recuperar nas últimas obras a traça antiga do espaço, investiram ainda mais nos produtos que continuam a distinguir esta casa de todas as outras. «Temos de tudo para que as pessoas possam confecionar, por exemplo, bolo rei, dos ingredientes até às formas», diz a gerente Teresa Torjal.

E a verdade é que os pinheirinhos em alumínio, de vários tamanhos, sobressaem do alto das prateleiras. Mais em baixo, alinhados em sacos de serapilheira, estão os frutos secos e a fruta cristalizada.

O tempo forjou a cumplicidade entre cliente e funcionárias. «E é esse o grande segredo destas casas», garante Nuno, proprietário da Casa Januário.

Foi neles que o olhar de Luís Guerra se prendeu. É de Vila Real e há 16 anos que vai ao Porto encomendar na Januário tudo o que precisa para a ceia de Natal. «Se não tiverem o que eu preciso, fazem de tudo para arranjar.» O tempo forjou a cumplicidade entre cliente e funcionárias.

«E é esse o grande segredo destas casas», garante Nuno. O resto está à vista. Os cabazes, já preparados, combinam bem com a decoração natalícia do espaço. Na oferta há bacalhau, compotas, bolachas, queijos, vinhos de mesa e espumantes, conservas, chocolates, café e chás. Tudo junto faz com que seja muito difícil não levar nada depois de entrar na Januário. Principalmente nesta época.

Pérola do Bolhão

À entrada, pintadas nos azulejos de Arte Nova, duas clientes chinesas carregam nos braços plantas orientais. Lá dentro, outras duas chinesas riem maravilhadas com a quantidade de produtos portugueses que vão levar no regresso da viagem. Compram o que é nacional, e não só, num dos bastiões da cidade.

A Pérola do Bolhão é também a pérola do Porto e, cada vez mais, dos estrangeiros que não arredam pé da cidade sem lá ir comprar qualquer coisinha. António Almeida Reis herdou do pai o nome e o amor à velha mercearia. Tem 85 anos e sempre foi um visionário.

António Almeida herdou do pai o nome e o amor à velha mercearia, a Pérola do Bolhão, na Rua da Formosa, 279, um dos bastiões da cidade do Porto.

«Aqui dentro todos os funcionários falam outros idiomas. Eu próprio falo dois.» Habilidades que puseram esta casa à frente do seu tempo. Nunca está vazia. Nem de gente, nem de produtos. Há, por exemplo, leitão assado, que vem todos os dias da Mealhada.

O estimado bacalhau pendurado é uma imagem que se mantém desde a fundação da mercearia. Tem mais de cinquenta variedades de frutos secos. Tâmaras da Argélia, nozes, figos e ameixas do Chile. Uvas-passas de Espanha. E o pinhão, o principal, que vem de Alcácer do Sal.

«É um orgulho ter uma casa destas, que já faz parte do património da cidade», diz António com um sorriso rasgado.

Aqui ninguém leva nada sem provar primeiro. E falamos de fruta cristalizada mas também de queijos e dos fumados. Sendo a orelheira de porco uma das grandes marcas da Pérola. O paté de bacalhau tem andado na moda. Assim como as alheiras de Mirandela.

«É um orgulho ter uma casa destas, que já faz parte do património da cidade», diz António com um sorriso rasgado. Os cem anos de vida significam que a tradição ainda é o que era. E que veio para ficar. Provavelmente é uma das lojas mais fotografadas do Porto.