Pessoas que odeiam o futebol

© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Quando eu tinha 12 anos houve uma guerra na minha rua. Começou tudo depois de eu ter marcado aquele golo à Chalana. O campo era de terra batida e, antes dos jogos, marcávamos os postes da baliza com pedras. A menos que a bola rolasse rente ao chão, o critério do que era golo (e do que era fora e do que era canto) era completamente subjetivo. Uns dias depois o Alexandre marcou um golo duvidoso. O Toninho, guarda-redes, gritou logo que a bola tinha ido fora, mas o outro não se compadeceu com o argumento e comemorou de braços abertos. Foi aí que começou a guerra.

Do alto da sua revolta, o Toninho decidiu pegar num dos calhaus que compunham o poste da baliza e atirá-lo ao Alexandre. Acertou-lhe em cheio na cabeça. O rapaz gritou e levou as mãos ao rosto, quando as baixou vinham cheias de sangue.

No dia seguinte, o irmão do Alexandre veio ao campo e dirigiu-se ao Toninho – assentou-lhe um par de lambadas. O nosso guarda-redes fugiu para casa e, daí a minutos, apareceu com a mãe e a avó. As mulheres puseram-se aos gritos. A vizinhança, agora, assomava à janela, havia pais que se juntavam ao tumulto e outros, como os meus, que convocavam a canalha para dentro de casa. Nunca soube muito bem como terminou a discussão, mas sei que nas semanas seguintes o campo tornou-se território interdito para toda a gente.

Hoje, no jogo Rio Tinto-Canelas, da Divisão Elite da Associação de Futebol do Porto, um jogador da equipa visitante, Marco Gonçalves, agrediu o árbitro com uma joelhada depois de ver um cartão vermelho. A partida durou dois minutos e o juiz José Rodrigues foi transportado para o hospital. Diagóstico: nariz partido.

Há poucas semanas, a SIC transmitiu uma reportagem sobre o facto de as agressões aos árbitros terem duplicado nos primeiros meses deste ano, sobretudo nas camadas infantis e nos campeonatos distritais. Houve, só em 2017, 37 autos levantados. Isto não é normal. Não é normal ver aquele vídeo de um adepto de Viseu a bloquear o carro de um árbitro para agredi-lo com um pau. Não é normal ver membros de uma claque irem a um centro de treinos de arbitragem na Maia pressionar os homens que apitam os jogos.

Nas competições europeias, falar de arbitragens dá multa. Aliás, a mim parece-me que os presidentes dos clubes, os treinadores e os adeptos portugueses que passam o tempo a acusar árbitros o fazem para desviar as atenções daquilo que realmente importa: o futebol. O pior é ver as televisões irem atrás da cantiga. Quando eu era miúdo, havia um programa que passava os jogos de futebol ao domingo à noite. Primeiro, os resumos da primeira liga, depois os resumos da segunda liga, depois os resumos dos campeonatos estrangeiros. Daí para cá a televisão mudou. E parece-me que deixou de amar o futebol.

Onde está a espetacularidade que existe nalguns jogos pequenos, o drama de subidas e descidas, a descoberta de talentos nos lugares improváveis? Agora temos horas sistemáticas de discussão entre comentadores, esmiúçam-se todos os lances duvidosos, todos os erros milimétricos. Faz-se até o impensável: sondagens telefónicas a perguntar aos cidadãos se concordam com a decisão de um juiz num lance determinado. Então e o futebol?

A arbitragem é tão humana quanto o resto do jogo. Alguém vê adeptos, presidentes, treinadores ou televisões fazerem este bullying a avançados que falham golos de baliza aberta? Então como raio toleramos que o façam sistematicamente aos homens que têm a missão de ajuizar o que foi ou não falta. Há de sempre haver falhas mas, se não protegermos a justiça nos jogos, não teremos mais futebol. E eu sei bem do que falo. Foi por não haver árbitro, há 28 anos, a ajuizar se a bola tinha ou não entrado na baliza do Toninho que a minha rua entrou em guerra. E depois aconteceu o que acontece em todas as guerras: perdemos todos.

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Editado a 2 de abril 2017.