Os meninos perdidos de Myanmar

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Texto Isabel Nery, em Myanmar | Fotografias João Carvalho Pina, em Myanmar

Ko Min Min ri-se e aponta para as pegadas deixadas pelos pés descalços no lodaçal. Para chegar a casa com a filha de 3 anos tem de remar pelas artérias do rio Irawadi, aquele que na época das monções faz o nível da água subir até às casas da aldeia, Kyon Pati, e atravessa Myanmar de uma ponta à outra.

O povo dos rios que trespassam os arrozais conhece a natureza que os inunda. Mas mais do que raios (fala-se de uma menina fulminada por um trovão, nos arrozais), febres hemorrágicas (espera-se um surto de dengue), ataques de crocodilo (incluem-se na demografia local) ou dentes de cobra venenosa, o que nos traz aos campos de Myanmar é esta criança birmanesa obrigada a viajar nove horas depois de ter sido sujeita a tratamentos de quimioterapia – redutores das defesas – no Hospital Pediátrico de Yangon.

Thiri Win representa apenas uma das mais de setecentas famílias birmanesas apoiadas pela Please Take Me There, idealizada pelo português Fernando Pinho.

Viajar é fraco eufemismo quando se trata de sentar-se num táxi durante uma hora (do hospital para a estação central de Haing Thor Yar), seguida de outras três num autocarro razoável, mas apinhado de gente – e o mesmo é dizer de germes.

Somado a um veículo tão viajado no tempo como na estrada. E ainda uma embarcação de madeira saída de Einme, que transporta fruta, tabaco, canalizações e pessoas. Entre elas, uma menina com um tipo raro de cancro, que ainda no dia anterior recebia uma transfusão de sangue e fazia quimioterapia. Depois de oito horas de solavancos, apertos e alívio fisiológico em buracos, falta ainda a canoa.

 

Percorremos uma autoestrada aquática entre a vegetação gigante e o verde geométrico dos arrozais, com direito ao quase medo de sair borda fora à passagem de outra canoa. A menina débil viaja pendurada no pescoço do pai, viúvo a expensas do quarto parto. Mesmo só com um braço livre para a aconchegar, oferece-lhe a confiança nos adultos, perdida em meses de hospital.

O tumor a afetar-lhe o fígado tingiu-lhe os olhos de um amarelo-acastanhado. Thiri Win representa apenas uma das mais de setecentas famílias birmanesas a quem foram pagas 1300 viagens pela Please Take Me There, organização apoiada pela World Child Cancer (WCC) e idealizada por um português, Fernando Pinho, que decidiu fazer do auxílio a crianças com cancro a sua missão depois de o irmão ter sobrevivido à doença. Fernando, 41 anos, sabe-o: seria improvável ter ainda a quem chamar irmão se tivesse nascido em Myanmar e não em Portugal.

Em Myanmar, uma criança com cancro precisa de uma média de 12 horas – e algumas até dias – para chegar ao hospital da antiga capital, o único com tratamento oncológico eficaz.

Neste país do Sudeste Asiático, uma criança com cancro precisa de uma média de 12 horas – e algumas até dias – para chegar ao hospital da antiga capital, o único com tratamento oncológico eficaz. Tratável em mais de oitenta por cento dos casos nos países desenvolvidos e em apenas dez por cento em locais como Myanmar. Irónico foi concluir, como Fernando Pinho, que bastaria algo tão singelo como um táxi para conseguir sobrevivências menos sovinas.

Acedemos à habitação com teto de palmeira da Índia – única propriedade da família, a somar à metade do porco partilhado com um dos trinta vizinhos da aldeia – por uma escada vacilante. Os pés devem assentar delicadamente no chão de finas canas de bambu, impreparado para corpos alimentados no Ocidente.

A junção descompacta deixa antever a água barrenta a correr debaixo dos nossos pés. Assim que aportamos, a avó Daw Htay, 61 anos, viúva há 11, puxa-me o braço para me convidar a sentar na esteira, próxima do altar do buda decorado com fitas de Natal, o lugar mais honrado da casa.

A casa da família da pequena Thiri Win, na aldeia de Kyon Pati.

Quer contar-me como os olhos de Thiri Win levaram a família a procurar ajuda. Primeiro em curandeiros, depois no Hospital de Yangon, a cidade mais populosa do país. É a terceira vez que recorrem aos serviços médicos com o apoio da Please Take Me There, que suporta os custos de transporte, o principal problema do cancro infantil identificado pela WCC no país.

O que lhe tinge os olhos já alastrou a todas as células. Os médicos têm palavras complicadas como leukocytosis e admitem que nem as famílias percebem nem eles sabem como explicar melhor. O pai e a avó de Thiri Win confiam que a doença é tratável. Bastaria um transplante, realidade em países como Portugal, impossibilidade em Myanmar.

Apesar do medo da neta, Daw Htay acredita que o hospital foi a decisão certa. «Estamos a fazer tudo o que podemos. Se não ficar boa, é o carma. O destino tem a última palavra», diz, sem tirar os olhos da faca que miga espinafres aquáticos para alimentar os porcos.

Depois do diagnóstico, 44 por cento dos pais deixam de conseguir trabalhar regularmente. Levar uma criança ao tratamento custa em média 18 euros por mês – e a maioria das famílias vivem com menos de dois euros por dia.

Não consigo abstrair-me das declarações recolhidas à especialista em oncologia pediátrica do IPO de Lisboa, Ana Lacerda: «Um doente em quimioterapia é sempre imunodeprimido. Não deve usar transportes públicos. O Estado português paga essas deslocações em ambulância. Nem à praia deve ir. Até a areia tem germes.»

Recomendações que parecem de outro mundo depois de ver esta família viajar desde que o dia ainda é noite, beber água de uma caneca comunitária e fintar escarradelas do betel (folha mascada com noz de areca), que dá energia e engana a fome mas pinta a boca de vermelho-sangue.

Depois do diagnóstico, 44 por cento dos pais deixam de conseguir trabalhar regularmente. Transportar uma criança ao tratamento custa uma média de 18 euros por mês – e a maioria das famílias vivem com menos de dois euros por dia. Muitas desistem.

Há pais que dormem ao relento (mais de sessenta por cento, de acordo com o levantamento da Please Take Me There), a partilhar dormida com lixo e ratazanas.

De regresso às instalações hospitalares estou mais tolerante ao cheiro das jacas (fruto proibido em muitos locais devido ao odor pestilento) e disponível para os sorrisos gentis que nos esperam em cada corredor.

A viagem à míngua do Sudeste Asiático deu-me outros olhos para ver o Hospital Pediátrico de Yangon. Se viesse agora pela primeira vez, talvez não tivesse notado as paredes cuspidas de vermelho, apesar dos sinais de proibição de mascar betel. Ou talvez me tivesse impressionado menos com os pais que dormem ao relento (mais de sessenta por cento, de acordo com o levantamento da Please Take Me There), a partilhar dormida com lixo e ratazanas. Ou nem reparasse nas compressas esterilizadas cortadas com facas de cozinha e nas consultas dadas na sala de espera, onde chegam diariamente quarenta crianças.

Saw Kaung Maing, 11 anos, quer ser piloto. Um cancro nos ossos fê-lo perder uma perna. Saw Min Htet OO, 10 anos, tem diagnóstico idêntico. Nenhum deles perdeu a vontade de brincar.

Já tinha parado o olhar no menino de 11 anos festejados no hospital, ao colo da mãe por não conseguir aguentar muito tempo a pose de flamingo. Um tumor nos ossos diagnosticado demasiado tarde – como acontece quase sempre no país – espoliou-o de uma perna. Ficou o sorriso tranquilo. E o sonho de ser piloto, confessa Saw Kaung Maing, fingindo fazer voar o comando da televisão. «Não posso brincar porque já não tenho perna. Mas vou ser piloto de aviões, com ou sem perna.»

A certeza serena, comovente, faz soltar uma gargalhada (talvez nervosa) na cama em frente. Bochechas decoradas pelo pó amarelo retirado da raiz que protege a pele do sol (tanaca), olhos sorridentes e expressivos, Saw Min Htet Oo, 10 anos, vê-se ao espelho no amigo conquistado no hospital.

«Na outra vida devemos ter partido as pernas a alguém e foi por isso que viemos aqui parar. Já devíamos ser amigos. Ou irmãos», diz Saw Min Htet Oo.

Perna engessada, diagnóstico idêntico, embora menos avançado, já tem data marcada para a amputação. Refugia-se nas anedotas. E na amizade: «Na outra vida devemos ter partido as pernas a alguém e foi por isso que viemos aqui parar. Já devíamos ser amigos. Ou irmãos.»

Saw Kaung e Saw Min não são os únicos amigos improváveis neste hospital. Ao contrário dos outros meninos, Ne Ne, 5 anos, filha da contabilista da Please Take Me There, corre pelos corredores sem adereços hospitalares. Conhece melhor o mundo das crianças que sofrem e morrem do que o outro, onde sobrevivem aos pais como mandam as leis da boa natureza.

Até importou o vocabulário: «Quando expiram [termo usado pelos profissionais], fico triste», diz, com os olhos colados ao chão. Habituada a acompanhar a mãe desde que tinha pouco mais de 1 ano, garante que tem mais amigos no hospital do que na escola.

As três crianças conheceram-se aqui, entre gritos de dor, camas vazias de alguém que ainda ontem queria brincar, meninos de olhos vazados por tumores (geralmente, retinoblastomas, curáveis no Ocidente, enquanto aqui matam e cegam) e membros amputados. Não sabem de locais improváveis para a amizade. «Quando sairmos vamos brincar pelo telefone.»

«Temos de fazer tudo. Mesmo que não sobrevivam, vivem mais tempo. Não podemos desistir destas crianças. O principal objetivo é que vão a casa e voltem», diz a médica Aye Aye Khaing.

Amputar uma perna a quem tem ainda todo o caminho para andar é negar o próprio direito à infância. O sacrifício dá que pensar num cenário de cinquenta por cento de sobrevivência, na melhor das hipóteses. Mas não faz vacilar a responsável pelo serviço, Aye Aye Khaing. Até porque quem nunca chega aqui, a maioria, é sumariamente extorquido em probabilidades.

«Temos de fazer tudo. Mesmo que não sobrevivam, vivem mais tempo. Não podemos desistir destas crianças. O principal objetivo é que vão a casa e voltem. Se não desistissem, conseguíamos salvar mais 12 por cento.» Ir e voltar pode ser a diferença entre morrer antes ou depois. Entre ter cuidados paliativos ou partir em sofrimento.

A parceria entre a WCC e a Please Take Me There quer mitigar desistências. «Sabemos que 25 por cento das famílias deixam os tratamentos por falta de dinheiro para o transporte. O mais frustrante é não voltarem. Com a ajuda das ONG reduzimos a desistência para 11 por cento», explica a especialista em oncologia pediátrica.

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Depois da penosa travessia em autocarros desconchavados e canoas periclitantes, sabemos que não desistir do tratamento é um objetivo ousado. Mais ainda no maior país do Sudeste da Ásia continental, onde o acesso a eletricidade só chega a metade da população e a maioria admite que desconhecia a existência de tumores pediátricos.

«Quando me disseram que a minha filha tinha cancro, não acreditei», diz a mãe de Ma Thiri San. «Vim toda a viagem a chorar porque pensei que era a única criança com a doença. No hospital percebi que não. Fiquei mais aliviada.» A filha tem 6 anos, é seguida nos serviços há três e considerada um caso de sucesso.

Tanto que a família se mudou da aldeia onde vivia, a mais de um dia de distância, para Yangon. Mesmo assim, precisa de três horas para chegar aos tratamentos. Dedinhos sempre a tamborilar nas pernas magras, Ma Thiri San já decidiu: quer ser médica. «Para espetar agulhas a outros meninos.»

Até lá, o sonho, em tom de vingança perdoável, é treinado em pais e amigos. Portugal contabiliza cerca de trezentos novos casos de cancro infantil por ano. Em Myanmar não há registo oncológico pediátrico. Pode apenas estimar-se, de acordo com o South Asian Journal of Cancer, entre 1500 e 2800, para uma população de 53 milhões. O cancro infantil é semelhante em todas as coordenadas do planeta (ver caixa). O que varia são as armas disponíveis para o combater.

De acordo com o Banco Mundial, Myanmar gastou em 2014 apenas 2,3 por cento do PIB em saúde (9,5 por cento em Portugal). Estamos no melhor hospital pediátrico do país, que conta apenas com dois centros de oncologia infantil, em Mandalay e Yangon.

Íamos na segunda semana de oncologia pediátrica em Yangon. Calculava que a reportagem tivesse de chegar aos gritos do quarto andar. Todos os repórteres têm os seus limites, e o meu, ao que parece, é ver um menino de 3 anos a ser perfurado por uma agulha de seis centímetros na espinal medula, procedimento que pode matar em caso de erro, para fazer uma punção lombar. Sem anestesia.

Não foi tanto o ato médico – enquanto jornalista de saúde já vi muita coisa –, mas a súplica a que ninguém naquela sala apertada e envidraçada podia ceder. «Abraça-me, pai! Abraça-me!», era tudo o que Kaung Sithu Tun pedia enquanto três adultos, incluindo o pai, o forçavam contra a marquesa.

Naquele momento, naquela hora, ser bom pai implicava negar o abraço. E não deve haver nada mais doloroso do que negar um abraço a um filho aterrorizado. Aproveito o momento em que a enfermeira abre a porta da sala para me escapulir.

«Começámos com três camas e hoje temos 75, sessenta das quais são de oncologia pediátrica. Mas precisávamos de cem. E mais médicos», diz Aye Aye Khaing.

Lá fora, o céu cinzento das monções asiáticas está salpicado de corvos. Chegara a duvidar se eram mesmo gritos de criança que ouvia ou apenas o corvejar destes pássaros negros, agoirentos noutros reinos. Símbolo de morte e azar para os ocidentais, a ave é mensageira de bom presságio na Ásia. Altura ideal para convocar a bendita perspetiva.

De acordo com o Banco Mundial, Myanmar gastou em 2014 apenas 2,3 por cento do PIB em saúde (9,5 por cento em Portugal). Estamos no melhor hospital pediátrico do país, que conta apenas com dois centros de oncologia infantil, em Mandalay e Yangon.

Este é o eleito por toda aquela maioria que não consegue pagar serviços de saúde na vizinha Tailândia, a contar com duzentos oncologistas pediátricos, enquanto todo o Myanmar tem apenas sete. «Começámos com três camas e hoje temos 75, sessenta das quais são de oncologia pediátrica. Mas precisávamos de cem. E mais médicos.»

A falta de recursos humanos é, para Aye Aye Khaing, criadora desta unidade, em 2002, o maior problema. O parco salário de menos de trezentos euros mensais leva 15 por cento dos clínicos formados no estrangeiro a ficar por lá. «Só voltei porque o meu mentor me disse que fazia mais falta aqui», confessa a médica que trabalhou três anos no Reino Unido e fez formação em Singapura.

A diretora de programa da WCC, Piera Freccero, reconhece que muito foi feito desde que Fernando Pinho se empenhou nesta causa. «Sentimos a diferença poucos meses depois do projeto do Fernando.»

Ainda assim, aqui os doentes não se deitam aos pares, como no edifício em frente, com 750 internados e 550 camas. Há já doentes que regressam para mostrar os filhos ou os que estão a estudar para ser médicos. Salva-se e reduz-se o sofrimento, mesmo que em doses diferentes das ocidentais. Embora admita que as punções podem ser traumatizantes – «na escala de dor de 1 a 6, uma punção é nível 4» – Aye Aye Khaing não tem como ajudar mais. Para todo o hospital de Yangon há apenas uma anestesista.

Em Portugal, não há extração pediátrica de líquido cefalorraquidiano sem anestesia, garante Ana Lacerda. «O tratamento da doença oncológica deixa sequelas semelhantes ao stress pós-traumático de guerra. Nas punções, as crianças são adormecidas com um fármaco que causa amnésia para não se lembrarem do procedimento.» Em Myanmar, as crianças com cancro não têm direito ao esquecimento.

Apesar da estranheza ocidental, o sofrimento relatado aqui é sinónimo de avanços. Sem longas e penosas viagens não haveria tratamento. Sem dores não haveria sequer probabilidade, quanto mais sobrevivência.

A diretora de programa da WCC, Piera Freccero, reconhece que muito foi feito desde que o português Fernando Pinho se empenhou nesta causa, salvando (apenas) por transportar e completar a equipa do hospital com mais três profissionais pagos pela ONG. «Começámos a sentir a diferença poucos meses depois do projeto do Fernando.» E não foram só as famílias que se tornaram menos desistentes.

«Os próprios profissionais, ao verem alguém a empenhar-se tanto, mudaram de atitude. Vamos levar a aplicação informática da gestão de casos e a solução do transporte que ele criou a mais países.»

A campanha de angariação de fundos que levou Fernando Pinho a passar dias no aeroporto de Lisboa com figuras públicas, em 2016, comoveu Luísa Sobral. Tanto que a cantora quis viajar até Myanmar para ver com os próprios olhos.

A campanha de angariação de fundos que levou Fernando a passar dias no aeroporto de Lisboa com figuras públicas, em 2016, comoveu Luísa Sobral, que viajou até Myanmar para ver com os seus olhos. Na noite que passou no aeroporto de Lisboa, a irmã de Salvador Sobral criou a canção Please Take Me There («Por Favor Leva-me Lá»), que ofereceu à ONG de Fernando como hino.

É com ele que arranca o concerto improvisado no último piso do hospital birmanês, que foi ministério antes de a capital mudar de Yangon para Nepiedó, em 2006. Conquistada pela voz meiga da compositora vencedora do Festival Eurovisão da Canção, a plateia de cadeiras de rodas, muletas e cateteres entrapados rapidamente se desmancha em gargalhadas ao ouvir o som de trompete imitado por Luísa Sobral.

«É universal. As canções são como um diário. O hino que compus tem uma história, que posso relatar num concerto, e assim alertar para o problema», diz Luísa Sobral.

«Já tinha ido ao IPO. Mas aqui custa terem azar com o sítio onde nasceram. Quando passei as 24 horas no aeroporto, fiquei a pensar como poderia ajudar. Alguns casos tocaram-me mais por serem transplantes e o meu irmão estar à espera de um. Em Portugal, muitas destas crianças seriam salvas.» Sem certezas sobre o impacto da sua presença neste território, onde viajou até à casa das famílias, Luísa agarra-se ao poder da música.

«É universal. As canções são como um diário. O hino que compus tem uma história, que posso relatar num concerto, e assim alertar para o problema.» Fora de Yangon, as famílias saem de casa só para observar e apontar o dedo às criaturas estranhamente brancas e esticadas. Riem-se. E, claro, pedem selfies.

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Receber um estrangeiro é uma honra. Por razões culturais – quantos mais visitantes, mais sorte terá a família – mas também políticas – o país viveu sob uma das ditaduras mais fechadas das últimas décadas e o turismo ainda é uma novidade.

Em casa da família de Thiri Win somos convidados para jantar. Sentados no chão, perante uma mesa baixa de madeira, há taças de arroz branco, ovos mexidos, amendoim frito e chá (herança colonial dos britânicos, no país até 1948) preparados por Daw Htay, acocorada no fogo atiçado por casca de arroz.

A língua, com os seus quase cem dialetos, tem sonoridade vibrante, carateres gentis e arredondados como o povo. Falamos por gestos. Feliz com a presença de estrangeiros, presságio de abundância, a família de Thiri Win convida-nos a dormir na sua casa de canas, mas a lei não permite a pernoita de estrangeiros em casas particulares. Resta-nos curvar em agradecimento. Jesutimbaré. E repetir a despedida aprendida. Da Da.

Regressamos pela mesma Veneza de arrozais por onde tínhamos chegado. Agora sem cor, sob a noite intransigente, nem risos pelo estranho que somos. Perante o silêncio do rio Einme, reconciliamo-nos com o extremo acre e o extremo floral. O extremo doce e o extremo picante. Deixamos para trás os gritos das punções sem anestesia e o riso dobrado com brincadeiras de pais heróis.

Thiri Win, Kaung Sithu Tun, Saw Min Htet Oo, Saw Kaung Maing e Ma Thiri San são personagens de uma história verídica. A única coisa que pedem é outro final. E a verdade – inconveniente – é que poderiam tê-lo.

Fernando, o salvador

Deixou Portugal e o emprego para transportar crianças com cancro até aos locais onde podem receber tratamento, em países longínquos. Fernando Pinho faz a diferença na vida de muitas crianças.

Fernando Pinho nasceu em São João da Madeira há 41 anos. E para perceber bem o que faz e porque o faz é preciso recuar no tempo até ao sofrimento do irmão mais novo, então com 11 anos, obrigado ao combate desigual entre uma criança e um cancro. Vasco, hoje com 25 anos, sobreviveu graças aos tratamentos que recebeu no hospital e Fernando seguiu em frente. Para pagar os estudos, começou a trabalhar cedo. Primeiro em call centers, depois como coordenador de apoio a clientes, tinha apenas 22 anos. Pelo caminho, tirou «o brevet de avião antes da carta de condução». Era o sonho de miúdo, ser piloto. Mas o dinheiro não chegou para acabar a formação.

Partiu para Londres onde estudou para ser produtor de teatro. Chegou a trabalhar no conceituado Royal Albert Hall. E conheceu a mulher, Jane. Com o amor veio a descendência e aquele desassossego parental que nos faz pensar nos outros, na vida, na morte, no que deixamos. Percebeu que já não quer ser «apenas» um produtor de sucesso. Teria de haver alguma coisa mais. Um legado.

Ao princípio ninguém parecia precisar da boa vontade do português, que contactou inúmeras instituições. Mas um dia chegou a resposta da World Child Cancer (WCC). Como piloto, Fernando poderia ajudar a transportar crianças que vivem longe dos tratamentos. Foi fácil, garante, encontrar justificação para a necessidade detetada pela WCC: «Um relatório do Banco Mundial concluiu que o problema da falta de transporte afeta mil milhões de pessoas em todo o mundo».

Estava encontrado o plano de ação. E nascia então o Projeto Amelia, nome da filha de Fernando e Jane. Estávamos em dezembro de 2014. Mas continuava a faltar dinheiro. A experiência de produtor ajudava no contacto de caras conhecidas do grande público. O objetivo de transportar crianças doentes deu o mote para o local: o aeroporto.

A primeira campanha aconteceu nesse mesmo ano. «Propus-me viver sessenta dias em sessenta aeroportos diferentes para alertar para a causa e angariar fundos.» A ideia não correu como esperado – só conseguiu chegar a 11 aeroportos – e um esgotamento físico obrigou-o a internamentos hospitalares em Munique e Milão.

Mesmo assim, conseguiu juntar os 17 mil euros que custearam as primeiras viagens à antiga Birmânia, hoje Myanmar, país identificado pela WCC como um dos mais necessitados de apoio.

Em outubro de 2015, visitou pela primeira vez o Hospital Pediátrico de Myanmar. O que viu deixou-lhe a certeza de que, sim, poderia fazer a diferença. «Já pagámos 1300 viagens, o que abrange cerca de duzentas famílias.»

Apesar dos afetos que justificaram o nome Projeto Amelia, a Organização Não Governamental (ONG) criada pelo Português precisou de se internacionalizar e ir mais direta ao objetivo. Passou a chamar-se Please Take Me There. («Por Favor, Leva-me Lá»), dando o mote para o hino criado e cantado por Luísa Sobral.

Hoje não tem dúvidas: «Estamos a ajudar estas crianças. Dá-me uma lágrima no olho… Sinto-me orgulhoso. Vou dedicar a minha vida a isto.»

Entretanto, continua a viver no Reino Unido com a mulher e a filha, mas passa grande parte do tempo em viagens. E agora ainda mais: de Myanmar o fundador da Please Take Me There partiu para o continente africano, onde está já a montar, no Gana, um projeto semelhante ao idealizado para o país do sudeste asiático.

Fernando sonha com o dia em que consiga pagar o transporte a todos e, com isso, tornar os meninos do Myanmar tão sobreviventes como os dos países desenvolvidos. Ou seja, salvar milhares de crianças de uma morte que não tem de ser certa.

A doença invisível dos países pobres

A pobreza mascara o cancro. Pela falta de diagnóstico (oitenta a noventa por cento dos casos) e pela «concorrência» de outras enfermidades.

De acordo com a Lancet Oncology, 84 por cento dos cancros infantis «acontecem em países de baixos e médios rendimentos, onde vivem noventa por cento das crianças de todo o mundo».

Em Portugal, o cancro é a segunda causa de morte nos adultos e a primeira dos 5 aos 14 anos, mas a OMS lembra que no Sudeste Asiático há 18 vezes mais mortes por infeção e doenças transmissíveis do que por cancro.

Um cenário a complicar-se, como enfatiza o Journal of Clinical Oncology: «Nos países de baixos rendimentos o cancro pediátrico deverá crescer trinta por cento até ao final da década». E é nesses territórios que se somam «menos de cinco por cento dos recursos globais para o tratamento».

Por ser o continente mais populoso, os oitenta mil diagnósticos estimados para a região asiática anualmente representam cinquenta por cento dos casos de cancro infantil em todo o mundo.