O que acontece aos futebolistas depois de pendurarem as chuteiras?

Os jogadores de futebol podem ganhar muito dinheiro. Mas nem todos serão ricos. E mesmo os que conseguem, facilmente podem perder tudo se não gerirem bem as finanças. A pensar nisso, Tarantini, capitão do Rio Ave, equipa da primeira liga de futebol, criou um projeto para convencer jovens desportistas a estudar e fazer poupanças. E coordenou um estudo inédito em Portugal sobre a realidade dos nossos futebolistas. Os primeiros dados foram divulgados recentemente – a realidade é muito diferente do sonho.

Era à noite que custava mais. O jantar era animado. Um bando de rapazes pela primeira vez longe da casa dos pais, cheios de pica, com as hormonas a fervilhar. Falavam de miúdas, de futebol, das tricas do dia de aulas e, no final de tudo, louça lavada, saíam para se divertir nalgum bar da Covilhã ou em casa de amigos. Ricardo dizia que não. E ficava sozinho. Tinha treino no dia seguinte. Ou jogo. Ou tinha de estudar. Ou simplesmente precisava de descansar. «Era das coisas mais difíceis de suportar, ver a malta da faculdade ir para as noitadas e eu ter de ficar em casa», diz o jogador de futebol.

«No Sporting da Covilhã, onde jogava, davam-nos folga à segunda-feira. Em vez de ficar a descansar, ia para as aulas, logo de manhãzinha. Custou, prescindi de muita coisa, mas consegui fazer tudo. Quando acabei a universidade, candidatei-me para professor de Educação Física, cheguei a ser colocado, mas quando percebi que podia vestir a camisola de um clube da I Liga, optei pelo futebol.»

Ricardo Monteiro, atualmente com 33 anos, é conhecido no mundo do futebol por Tarantini (deve a alcunha às parecenças físicas com o antigo defesa esquerdo argentino, da década de 1970, com o mesmo nome) e está a cumprir a nona época ao serviço do Rio Ave, onde é capitão de equipa. Em setembro lançou o projeto A Minha Causa, com o objetivo de alertar os futebolistas e os desportistas em geral para a necessidade de assegurarem o futuro, em termos ocupacionais e financeiros, quando terminarem as carreiras. Mesmo sabendo, por experiência própria, que isso exige sacrifício.

«Quero dar o meu contributo, pois acho incrível a despreocupação dos jovens em relação ao seu futuro», diz o jogador, que se inspira na sua própria história para fazer passar a mensagem. «E tenho de começar a fazê-lo agora, enquanto apareço nos jornais e nas cadernetas de cromos. Quando deixar de jogar, vai perder muito impacto.»

Numa carreira que termina em média aos 30,9 anos, apenas 16% dos futebolistas portugueses chegam ao principal escalão do futebol nacional, a I Liga. E mais de 95 por cento nunca chegam a usar a camisola de qualquer clube grande ao longo da carreira.

Estes dados, divulgados em janeiro, fazem parte do primeiro trabalho de pesquisa feito a nível nacional sobre a carreira dos futebolistas portugueses, e foi impulsionado por Tarantini, no âmbito deste seu projeto.

A ideia é ter um mapa da realidade portuguesa que sirva de base e dê força à sensibilização dos desportistas – e, com eles, também dos seus pais e familiares – para uma realidade incontornável: são muito poucos os jogadores que alcançam um nível competitivo e financeiro elevado. «Nem todos os jogadores ganham milhões e podem dar-se ao luxo de não fazer mais nada o resto da vida. A maioria pensa que vai ser muito fácil, mas o cone é muito estreito. O sonho do futebol fica muitas vezes aquém do que se pensa ou deseja.»

Com duas licenciaturas – Ciências do Desporto e Educação Física e Desporto Escolar, pela Universidade da Beira Interior,
na Covilhã – e um mestrado no ramo do futebol, na mesma instituição, Tarantini optou pela via académica para criar o seu plano B para quando pendurar as chuteiras. «Nem todos têm de seguir essa via, o importante é que se qualifiquem para que, quando o percurso desportivo terminar, possam ser capazes de enfrentar o mercado de trabalho em igualdade com as outras pessoas. O futebol é uma bolha, e saindo fora dessa bolha, as coisas não são iguais.»

Além da qualificação, outra das preocupações de Tarantini prende-se com a gestão financeira, pois tendencialmente «os jogadores esbanjam muito dinheiro e derretem o que conseguem amealhar durante o período em que estão no ativo».

São, de resto, diversos os casos conhecidos de craques que subiram alto, representaram clubes grandes e acabaram caídos em desgraça, cheios de dívidas, desempregados e emocionalmente desestabilizados.

«As razões são variadas, mas o resultado é quase sempre o mesmo: lesões graves, doenças inesperadas, problemas de gestão financeira, maus investimentos, divórcios, fraudes, falta de pensamento pós-futebol, más opções de vida, uma lista sem fim de episódios que acabam por destruir o sonho e, muitas vezes, o próprio indivíduo.»

Jorge Cadete, por exemplo, antigo internacional português, ex-avançado do Sporting e do Benfica, que chegou a ser também o melhor marcador português no estrangeiro, já contou publicamente como foi dos 25 mil euros que ganhava por mês no Celta de Vigo, nos finais da década de 1990, aos 189 euros do rendimento social de inserção e ao regresso, completamente falido e deprimido, a casa dos pais, em Santarém. António Veloso, Fernando Mendes ou Fábio Paím, só para citar alguns nomes mais conhecidos, também já deram a cara, para que outros não caiam nos mesmo erros.

«O Cristiano Ronaldo ganha muito, mas se gastar muito também vai ficar pobre. É uma questão de atitude, e é disso que falo nas palestras», diz o jogador que dedica parte do tempo livre – de forma gratuita – a tentar sensibilizar plateias de jovens em clubes, universidades, colégios e escolas como as UAARE. As Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola têm como objetivo ajudar os jovens a conciliar, com sucesso, os estudos com o desporto ao mais alto nível e são um projeto-piloto, iniciado neste ano letivo, do Ministério da Educação e do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Estão em teste na Escola Secundária Fontes Pereira de Melo, no Porto, na Escola Amélia Rey Colaço, em Oeiras, na Escola Augusto Silva Ferreira, em Rio Maior, e na Secundária de Montemor-o-Velho. «É importante o contributo de um jogador da I Liga de futebol como o Tarantini, para eles perceberem que têm de trabalhar no presente para construir o futuro», diz Vítor Pardal, coordenador das UAARE a nível nacional.

Uma das mensagens que Tarantini não se cansa de repetir é a de que um jogador que tenha feito cinco anos na I Liga – os dados agora revelados indicam que um futebolista, chegando ao escalão principal, fica aí uma média de 4,7 anos – tem de ter, no mínimo, a casa paga quando deixa de jogar.

«Estou a equacionar a questão por baixo, para valores médios, não estou a falar de grandes luxos. Mas muitos não têm nada, nem casa, nem dinheiro», diz Tarantini.

Segundo o capitão dos vila-condenses, um futebolista da I Liga, sem ser de um clube grande, ganhará em média entre quatro e dez mil euros por mês. «Tendo em conta que a carreira termina muito cedo, este valor não representa nada no total da vida de um jogador, este tem de o saber administrar bem.»

Hélder Postiga, o internacional português que passou por FC Porto, Sporting e Rio Ave e já andou a marcar golos por meio mundo, quer servir como exemplo de quem soube ter cabeça. Amigo pessoal de Tarantini, conversa muito sobre o tema com o capitão do Rio Ave. «Tenho 34 anos e tive a felicidade de ter um percurso que só um pequeno número de jogadores alcança. Mas sei que, quando deixar de jogar, a minha vida continua. Preparei-me nos últimos anos para o futuro, no ramo imobiliário. É importante as pessoas serem ponderadas e aconselharem-se bem. Muitos jogadores fazem investimentos que, depois, não são os melhores.»

«Em alguns países, os jogadores conseguem ir buscar uma pré-reforma aos 35 anos. Em Portugal, ou têm planos individuais ou nada.» Mas mesmo no estrangeiro há muitos exemplos de carreiras mal geridas, e não apenas no futebol. Na NBA, a principal liga de basquetebol dos Estados Unidos, sessenta por cento dos jogadores ficam falidos cinco anos após o fim das carreiras, segundo dados da Sports Illustrated. Na NFL, campeonato de futebol americano, ainda é pior: oitenta por cento entram na bancarrota nos primeiros três anos. Até há pouco tempo, Tarantini servia-se destas e outras estatísticas no estrangeiro para tentar pôr juízo na cabeça da rapaziada. Agora, com o trabalho de pesquisa que está a coordenar, começa a ter dados referente ao futebol português e a sua missão ganha nova força e – espera – também eficácia.

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O JOGADOR DE FUTEBOL EM PORTUGAL
O estudo foi impulsionado por Tarantini e realizado em parceria com a plataforma digital zerozero.pt, em colaboração com Miguel Seabra (Universidade do Porto) e Bruno Travassos (Universidade da Beira Interior, Covilhã e CIDESD, CreativeLab, Vila Real). A amostra foi de 16 470 jogadores portugueses de equipas de futebol de campeonatos profissionais e não profissionais em Portugal, entre as épocas 1980-1981 e 2016-2017. Este é o «retrato robô» do futebolista português:

» TERMINA A CARREIRA EM MÉDIA AOS 30,9 ANOS

» APENAS 16% CONSEGUE CHEGAR À I LIGA DE FUTEBOL PROFISSIONAL

» MAIS DE 95% NÃO CONSEGUE CHEGAR A UM GRANDE EM PORTUGAL

» APENAS 2% CONSEGUE CHEGAR ÀS SELEÇÕES NACIONAIS SENIORES

» 10% PARTE PARA O ESTRANGEIRO

» JOGA EM MÉDIA 4,7 ANOS NA I LIGA DE FUTEBOL PROFISSIONAL

» FAZ EM MÉDIA OITO ÉPOCAS EM ESCALÕES SENIORES, CINCO EM ESCALÕES DE FORMAÇÃO E TRÊS NO ESTRANGEIRO.