O pontapé no cu

Notícias Magazine

Todos os dias depois da escola, e ainda mais ao fim de semana, o fundo do largo é território dele. Dele e daqueles pés-maravilha, dele e dos miúdos da Roménia, de Inglaterra e do Bangladesh que vêm jogar com ele. No empedrado do Largo Intendente Pina Manique, a novíssima centralidade da capital portuguesa, o Gabriel e os amigos cumprem em jogadas e fintas de antologia o sonho multicultural da cidade.

No fim de semana passado, a polícia veio protestar com a equipa. Não podiam jogar à bola, as esplanadas estavam cheias de gente e não podiam incomodar a multidão que as ocupava. Era também o dia do encerramento do festival Bairro Intendente, que ao longo de um mês tinha convocado música e teatro e debates para o centro da praça. Uma das organizadoras do evento era, aliás, a Marta, mãe do Gabriel, que vive e trabalha naquela zona desde que ele era pequenino. E o miúdo joga ali à bola desde que chegou.

Há três meses, existiam no Largo do Intendente três esplanadas, uma em cada ponta da praça e outra no meio. De repente, abriram mais quatro ou cinco, que ocuparam quase todo o espaço que havia livre. O campo de jogos do Gabriel foi completamente invadido e eu receio que estejamos a queimar as possibilidades de afirmação do talento do pequeno Messi do meu bairro. Mas o problema do Gabriel esconde outro que é mais grave.

Pela primeira vez na sua história, o Intendente tornou-se visível para o resto da cidade. Durante séculos, aquela foi uma Lisboa exclusiva, frequentada apenas pelos seus. Nos anos oitenta isolou-se mais do que nunca, invadida pelo tráfico de droga e pela prostituição de rua. Até que, em 2011, António Costa fez do bairro a aposta da autarquia. Prédios recuperados, polícia na rua, e a coisa funcionou.

Hoje, os edifícios devolutos e em ruína do largo apresentam grandes cartazes imobiliários, vão ser quase todos prédios de habitação. Mas os primeiros a aventurar-se foram as associações culturais, que tentaram criar um mundo novo integrando o antigo. Para quem sempre viveu ali e para quem chegou, o que aconteceu no Intendente não é nada menos do que um milagre.

Eu aprendi com uma indiana a dançar coreografias de Bollywood no Largo do Intendente. Vi um Paquistão-Bangladesh em críquete com uma plateia de todas as idades. Fiz uma homenagem a Lou Reed abraçado a um alfaiate guineense e depois aprendi uma canção em crioulo que era a versão africana de Take a Walk On The Wild Side. E vi, quase todos os dias, o Gabriel tornar-se Messi numa equipa de estrelas do mundo inteiro. Foi assim que o bairro invisível deixou de o ser. Pela mesclagem, pela diversidade, num largo que era de toda a gente.

As associações que promoveram toda esta mistura estão rapidamente a ser expulsas do Intendente. Algumas, as mais antigas, porque não podem pagar as rendas a que uma nova centralidade obriga. As mais recentes – que criaram espetáculos inclusivos e apaziguaram uma boa parte da fricção entre quem estava e quem chegava – até são autossustentáveis, mas os proprietários preferem negócios higiénicos ao ativismo que promove a mistura.

Por isso é que as esplanadas que tomaram o empedrado são um símbolo. De um bairro que durante séculos permaneceu escondido e de repente está a ser tomado de assalto, de uma autenticidade em risco e de um Messi que corre sérios riscos de nunca ser descoberto. Do abandono a que estão sempre condenados aqueles que abrem caminhos.