O martelo, o pé de ferro, a cola, a escova

Notícias Magazine

O meu avô paterno chamava-se oficialmente Ricardo Alegria Marmelo. Quase toda a gente, porém, lhe chamava Zé. Lembro-me de que, quando ainda trabalhava, usava um fato-macaco azul-escuro com nódoas de tinta e de cola.

Conheci-o baixinho e careca, mas sei, por uma ou duas fotografias antigas, que chegou a ter pinta de galã de cinema americano. Não fosse assim e dificilmente teria sido bem-sucedido no cerco à minha avó Maria Henriqueta, que era uma moça bonita e muitos anos mais nova do que ele (era também menor de idade quando casaram, mas não houve nenhum drama por causa disso).

O meu avô Zé era órfão e talvez por isso nunca tenha chegado a andar na escola. Só conseguia escrever as letras do seu nome oficial, desenhando-as muito devagarinho para não se enganar. Também era capaz de ler os títulos grandes do jornal A Bola. Apesar disso, dedicava um labor rústico a todos os lápis que encontrava, aguçando-os meticulosamente com o gume de uma faca. Usava o lápis atrás da orelha enquanto andava entretido com certos trabalhos manuais domésticos e avulsos, especialmente quando se ocupava do conserto dos nossos sapatos.

Lembrei-me deste afazer do meu avô por causa da oficina napolitana de Fernando Cerullo, o pai de Lila Cerullo, personagens dos livros de Elena Ferrante. Elena Greco descreve-a breve e vagamente: «O martelo, o pé de ferro, o cheiro bom da cola misturado com o dos sapatos velhos.» Foi o suficiente para me recordar do frasco da cola amarelada e espessa que servia para juntar as solas e os sapatos, da navalha cujo cabo estava enrolado numa espécie de fita gomada enegrecida pelo uso, da antiquíssima caixa de madeira onde o meu avô guardava os pregos, do pequeno martelo, das escovas de cerdas muitos gastas pela graxa e do sólido instrumento de ferro fundido que era composto por um pé completo, uma meia-sola e uma extremidade mais pequena, adequada, creio, para tratar dos saltos altos dos sapatos das senhoras.

Usei algumas vezes os utensílios do meu avô para tentar colar também os meus sapatos, martelando a sola no pé de ferro, conforme o vira fazer. Ser seu neto é talvez a mais amável das heranças que carrego e é possível que ter podido aprender a ler e a escrever não me tenha instruído mais do que as nódoas de tinta do fato-macaco dele.