Conheci Gopal há um ano, dois ou três dias depois de ele chegar a Portugal. Era o tipo afável que preparava sushi num restaurante do meu bairro. Achava fascinante a maneira como ele se dedicava ao corte preciso do sashimi e o rigor que aplicava nos nigiri. Mas o que achava mais fascinante de tudo era o facto de Gopal ser nepalês. Uma pessoa não pensa encontrar tanto afinco marítimo a quem nasceu na montanha.
Eu costumava bater-lhe à porta bem depois de a cozinha estar encerrada e ele deixava-me entrar sempre – e com o mesmo comentário solidário: «Os jornalistas trabalham até muito tarde, têm de dar no duro. É como se fossem emigrantes no vosso próprio país.» Enquanto ele me preparava a ceia eu argumentava que não era bem assim. Quando se faz o que se gosta, replicava eu, o esforço é menor. Ele ria-se e algumas vezes, poucas, vinha sentar-se à minha mesa. Com o tempo, tornámo-nos amigos.
Gopal nasceu há 30 anos numa pequena cidade junto à fronteira com o Tibete. É filho único de dois camponeses que juntaram todas as poupanças que tinham para que ele pudesse estudar Teoria Política na Universidade de Kathmandu. Emigrou para a Suíça assim que terminou os estudos – e na noite em que chegou a Genebra provou sushi pela primeira vez. Foi uma revelação. Para desconsolo dos pais encontrou trabalho a lavar pratos num dos melhores japoneses da cidade e, um ano depois, passou para a cozinha. Era um talento natural a trabalhar o peixe cru.
Um dia, um amigo com quem tinha estudado telefonou-lhe com um convite de sociedade num restaurante de sushi de Lisboa. Era oportunidade de ter um negócio próprio. Decidiu arriscar e chegou há um ano, com a impressão ganha nos restaurantes portugueses de Genebra de que aqui havia bom peixe. Conheci-o pouco depois da aterragem e, no sábado passado, convidou-me para almoçar com a sua família. A meio do banquete, percebi que algo tinha mudado. Gopal, agora, tinha um plano.
Em janeiro, a sociedade lisboeta havia-se desfeito. Podia voltar para a Suíça, sabia que o lugar continuava à disposição. Mas Gopal tinha-se apaixonado pelo peixe desta costa. E explicou-me o seu arrebatamento assim: «Os portugueses são os únicos que atiram o peixe para a grelha sem qualquer tempero. E têm razão: não é preciso inventar muito quando a qualidade é tão boa.»
Para ser feliz, Gopal quer apenas isto: abrir o seu próprio espaço e vender sushi de peixe português. Mas precisa de um visto de residência e, para isso, tem de estar empregado. Tentou trabalhar em cozinhas, demitiu-se quando viu arroz carregado de vinagre, peixe cortado por carniceiros. Há dias esteve na Trafaria e considerou seriamente a hipótese de se tornar pescador – e assim perceber o seu amor na origem. Mas tem um problema: não sabe nadar. Então, pela primeira vez desde que chegou a Portugal, o meu amigo nepalês vai ter de tornar-se emigrante, trabalhar com sacrifício, em algo que não goste, para depois poder continuar a cantar a sua paixão.
Um dia, disse-me, há de trazer os pais a Portugal, dar-lhes a provar o robalo selvagem da costa, e tem a certeza de que aí eles vão perceber porque trocou a vontade de querer ser político pela de cozinheiro. Quando, no sábado passado, saí da casa de Gopal, dei por mim a pensar que a dança de zelo e espera que existe entre um homem e um peixe pode, em boa verdade, explicar o universo inteiro. É nos episódios pequeníssimos, até nas escamas de um robalo, que se encontra o amor total.
[Publicado originalmente na edição de 26 de fevereiro de 2017]