O fim da privacidade

Vivemos tempos acelerados. E estranhos. Numa era em que é comum partilhar na internet praticamente tudo o que pensamos e fazemos, se calhar já não faz sentido falar em esfera privada. Pelo menos para a maioria dos utilizadores das redes sociais. Quando os nossos rendimentos, propriedades, compras, relações, deslocações e até fichas médicas ficam registados e são tratados digitalmente em arquivos públicos e privados, ainda é possível manter algum anonimato?
A Via Verde e os chips antirroubo registam viagens, os cartões de crédito e de fidelização cadastram compras, os servidores de correio eletrónico, os motores de busca e as redes sociais monitorizam comunicações, páginas visitadas, preferências e contactos. E os smartphones, além de assinalarem chamadas de voz e mensagens escritas, dão a nossa localização exata em tempo real.

Portanto, para assegurar totalmente a privacidade teríamos de, no mínimo, evi­tar as estradas SCUT, fazer compras apenas em dinheiro, desligar a internet e usar um telemóvel obsoleto e com um cartão pré‑pago. Mas, mesmo assim, não escapa­ríamos à monitorização estatal dos rendi­mentos, compras, propriedades e até da­dos médicos e medicações prescritas pelo Serviço Nacional de Saúde.

Por isso, a resposta simples e imedia­ta à pergunta da entrada parece ser só uma: não. A não ser que tenhamos conhecimentos próximos do nível de um pirata informático ou estejamos dispostos a abdicar de várias comodidades do sécu­lo XXI, já não é possível manter o ano­nimato. Navegando um pouco mais longe, será então correto dizer que a privacida­de morreu, definitivamente? Aí, a respos­ta já é diferente: não necessariamente. Na verdade até existe privacidade neste nem sempre admirável novo mundo digital. Só que, na aldeia global onde agora vivemos, o conceito já não é o que era. Mas a culpa é mais das pessoas do que da tecnologia.

«Não há como negar que o conceito de privacidade está em mutação», diz Fátima Abreu Ferreira, psicóloga e investigado­ra da Universidade do Minho. «O desenvolvimento das novas tecnologias trouxe imensos benefícios, mas, para nos inscre­vermos nesses serviços, temos de abdicar de certos dados como o nome, o telefone ou a nossa localização geográfica.» É o preço que pagamos para usar as inovado­ras aplicações cibernéticas.

Além desses dados, há todo um outro conjunto de informações que, voluntá­ria ou involuntariamente, cedemos. Por exemplo, se enviarmos alguns e­-mails ­com a palavra «Amesterdão» ou pesqui­sarmos por esta cidade num motor de bus­ca, é quase certo que veremos nas nossas navegações posteriores cada vez mais anúncios relacionados com a cidade ho­landesa. Isto acontece porque, ao criar contas de e­-mail ou numa rede social, au­torizamos os prestadores desses serviços a recolherem todas as informações que julguem relevantes, incluindo as comunica­ções privadas. Estes dados são depois pro­cessados por algoritmos que encaminham anúncios específicos para os destinatários que revelaram potencial de ser seduzidos por eles.

ESTE É O VERDADEIRO E GRANDE negócio dos motores de busca: o armazenamento online de ficheiros, servidores de correio eletrónico e redes sociais. «Os serviços são grátis, mas as empresas não são beneméritas. Ganham milhões com as informações que as pessoas colocam nas suas redes», diz Clara Guerra, porta‑voz da Comissão Nacional de Proteção dos Dados (CNPD).

No mundo digital também não há al­moços grátis e as nossas informações são a contrapartida. Porém, a conta final não parece assustar os utilizadores. «Quando aderem, as pessoas dão um consentimen­to. Consideram que não estar numa rede social tem consequências negativas superiores do que ceder alguma da sua privacidade», diz Paulo Mota Pinto. Para o ex-juiz conselheiro do Tribunal Constitucional, esta cedência é «mais um fenómeno sociológico do que uma questão de Direito».

Todavia, nem sempre esse consentimento é feito como manda a lei. «Em alguns casos, as empresas não pedem autorização e dão informação pouco transparente», diz Clara Guerra. «Além disso, há termos e condições que não respeitam a legislação porque incluem cláusulas abusivas e são feitos para desincentivar a leitura.» A lei diz ainda que os dados devem ser recolhidos para fins específicos e legítimos e que as empresas devem reter apenas as informações adequadas e pertinentes para esse fim e não as ceder a terceiros sem consentimento. Mas, na prática, «muitas empresas não são completamente transparentes nem dizem o que fazem com os dados a que têm acesso»

MESMO ASSIM, para a maioria das pessoas, especialmente para os mais jovens, estar fora do mundo digital não é uma hipótese. «Para eles, as redes sociais e a disponibilização de conteúdos são ferramentas quotidianas, naturais. Tudo acontece online e o importante é fazer parte do grupo, mesmo correndo alguns riscos», explica Fátima Abreu Ferreira, que está a terminar um doutoramento em Psicologia da Justiça na Universidade do Minho com o tema «Vitimização online: os riscos de viver na era digital».

Até há vinte anos, convivia-se a volta da mesa do café. Hoje, graças à internet e à revolução digital, a mesa alargou-se aos quatro cantos do mundo. No fundo, é a concretização prática da aldeia global prevista em 1963 pelo sociólogo canadiano Marshall McLuhan, no livro A Galáxia Gutenberg.

Como seria de esperar, este novo plano comunicacional levou a uma explosão da partilha, tanto em quantidade como em qualidade. Para se ter uma ideia, o Facebook tem atualmente 1,55 mil milhões de utilizadores ativos e a média de conexões diárias em setembro foi de 1,01 mil milhões\1 de utilizadores – ou seja, uma em cada sete pessoas de todo o mundo. Outro dado impressionante: diariamente são publicadas 80 milhões de fotografias no Instagram, a famosa rede de partilha de imagens, com 400 milhões de utilizadores ativos.

Para muitos, a começar nos gurus das redes sociais, a reserva da vida privada parece não ter lugar nesta aldeia global. «Se tem alguma coisa que não quer que se saiba, talvez não devesse estar a fazê-la», disse, em 2009, numa entrevista à CNBC, Eric Schmidt, atual presidente executivo da Alphabet Inc., a empresa-mãe da Google. O criador do Facebook também não parece valorizar a privacidade, pelo contrário. Mathias Dopfner, CEO do grupo alemão de media Alex Springer, escreveu numa carta aberta em abril de 2014 que «a única frase ainda mais preocupante que a de Shcmidt é uma de Mark Zuckerberg», dita numa conferência em que os três estiveram presentes. Segundo Dopfner, quando questionado sobre que garantias de confidencialidade e proteção dos dados podia oferecer aos utilizadores da sua rede social, o fundador do Facebook respondeu: «Não percebo a sua pergunta. Se não tem nada a esconder, não tem nada a temer.»

Nuno Ribeiro, diretor regional para Portugal do Institut Fabernovel, também não vê grande mal na partilha de dados com as empresas, desde que haja responsabilidade. «Acredito que cause alguma preocupação para quem tenha segredos. A mim não me choca. Esses dados são importantíssimos para a empresa conhecer ao máximo o cliente e desenhar ou melhorar os seus produtos, experiências e serviços.» Mas o especialista em cultura digital considera que as empresas deveriam sempre partilhar o que estão a guardar e sabem de cada consumidor. «E desejável que haja transparência e que eu saiba o que eles sabem de mim.»

Os jovens também encaram a partilha como normal. «Para a geração digital, as plataformas públicas são extensões de aspetos privados», diz Fátima Abreu Ferreira. Não se pense, no entanto, que os adolescentes não têm nenhuma noção de privacidade. Eles conhecem o conceito, mas orientam-no conforme as suas prioridades. «Sabem manobrar o perfil e criar páginas falsas para se protegerem. Mas fazem-no principalmente para garantir privacidade dos pais e dos educadores», explica a investigadora.

À medida que vamos navegando na internet vamos produzindo um enorme conjunto de conteúdos e deixamos, ativa ou passivamente, um rasto de informações. Graças à evolução tecnológica, esta «pegada digital» assume-se cada vez mais como ilimitada e eterna. Este potencial infinito parece escapar à maioria dos internautas. «Muitos não têm consciência da conservação da informação. A rede não esquece, mas muitos só o percebem a posteriori», diz Paulo Mota Pinto.

Normalmente, as redes sociais e prestadores de serviços permitem fazer um opt out, ou seja, apagar das bases de dados todos os registos de determinado utilizador. E existem mecanismos judiciais para reagir contra o uso indevido ou a publicação abusiva de fotografias e informações. Mas «as pessoas não dão muito valor a isso e só em casos extremos é que os utilizam», garante Paulo Mota Pinto.

«A maior parte dos jovens sabe que está a correr um risco antecipado ao efetuar uma partilha, mas não estão conscientes da sua grandeza», diz a investigadora Fátima Abreu Ferreira. E é mais grave quando ainda estão a construir-se como pessoas. Ou seja, podem estar a cristalizar na internet valores que, se calhar, vão rejeitar pouco tempo depois. Mas a pegada ficou e isso pode prejudicá-los, por exemplo, em termos de empregabilidade. Além disso, mesmo num grupo fechado de uma rede social, existe a hipótese de invasão, cópia e apropriação indevida. E, uma vez na rede, mesmo que sejam rapidamente apagados, «há sempre a possibilidade de os conteúdos voltarem a aparecer» diz Clara Guerra, da CNPD. «A internet tem memória de elefante.»

É precisamente esta memória ilimitada que tem levado ao crescimento e ao refinamento das bases de dados. Hoje, as empresas e os Estados já têm acesso a uma quantidade de informação que, caso fosse impressa em papel, daria para encher milhares e milhares de Torres do Tombo. São arquivos que não param de crescer porque a recolha de dados até pode estar a abrandar, mas não vai parar e está cada vez mais inteligente. «Estamos a passar da era de big data para a de smart data. Da recolha do máximo de informação para a recolha seletiva e a análise apenas das três ou quatro variáveis mais importantes para a tomada das decisões», explica Nuno Ribeiro. Mas, com aplicações cada vez mais inteligentes e diversificadas, «há cada vez mais dados e cada vez mais íntimos». E com consequências imprevistas. Por exemplo, se uma seguradora tiver acesso aos dados de uma aplicação de telemóvel que mede o batimento cardíaco do utilizador, pode calcular se ele é um potencial cliente de risco e recusá-lo. O mesmo sucederá caso inspecione o histórico da internet de um proponente e veja que ele consulta muitos sites sobre hipertensão ou outra doença grave.

Graças ao avanço vertiginoso da tecnologia, o tratamento dos dados assume uma dimensão que pensaríamos só ser possível no domínio da ficção científica. Antecipar padrões de consumo ou de comportamento perante a utilização de sites ou ferramentas pode já não ser uma realidade tão distante. E o mesmo se aplica aos softwares de reconhecimento facial que estão cada vez mais apurados. «Permitem correr toda a internet, numa procura transversal, e agregar as informações em torno de uma cara», diz a porta-voz da CNPD. Ou seja, basta alguém publicar uma fotografia onde apareçamos, mesmo que em segundo plano e sem o nosso consentimento, para as informações que ela traz ficarem agregadas a um único perfil, podendo ligar perfis profissionais, pessoais e anónimos. Ou seja, a partir daquela fotografia da festa de Natal da empresa que alguém publicará no Facebook por estes dias, é possível que outros fiquem a saber onde trabalhamos; se for num restaurante, onde vamos almoçar; se for em grupo, com quem nos damos e por aí em diante. «São uma mina para as empresas privadas e, mais ainda, para as autoridades policiais», diz Clara Guerra. É certo que estas ferramentas serão muito úteis para, por exemplo, apanhar um criminoso em fuga, mas, com a desculpa do combate ao terrorismo ou ao crime económico, também podem ser usadas para uma vigilância maciça dos cidadãos.

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QUASE TODOS OS ESPECIALISTAS e analistas concordam que a informação é a mercadoria mais valiosa do século XXI. Porém, mais importante ainda do que o seu potencial económico, esta capacidade de recolha e tratamento de dados confere aos Estados uma ascendência quase ilimitada sobre os cidadãos. Convém, por isso, questionar o que poderá acontecer caso ela caia nas mãos erradas. É que as bases médicas informatizadas teriam dado imenso jeito às teorias da pureza da raça e da eugenia nazis.

Paulo Mota Pinto reconhece que há Estados que «utilizam estas ferramentas, no limite da ilicitude, como meio de vigilância», mas prefere não comentar mais este tópico por ser membro do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa. Já Clara Guerra garante que, «em Portugal, não se verifica uma vigilância maciça por parte dos serviços secretos».

O problema é que vigora a globalização dos serviços, das comunicações e da economia. «Se uma empresa não está no nosso território, não podemos impedi-la de ceder as informações dos cidadãos», queixa-se a Porta-voz da CNPD. Por isso, Nuno Ribeiro crê que a grande responsabilidade está mais do lado das organizações e das empresas do que dos Estados. «Têm de ser elas próprias a ter bom senso e a garantir a privacidade da informação que lhes é confiada.» Com tudo o que isso implica.

Mas, em última análise, a derradeira palavra é sempre dos utilizadores. Nós, os utilizadores. E somos nós que optamos por disponibilizar, ou não, os nossos dados. «O que conta é o uso que fazemos da ferramenta», diz a investigadora Fátima Abreu Ferreira. «Por isso, tem de haver maior consciencialização do que pode advir de um mau uso.» Clara Guerra concorda. «A tecnologia, em si mesma, é neutra.» Por isso, e respondendo novamente à pergunta do início deste texto, sobre a possibilidade de manter algum anonimato: sim, é possível. Mas, se quisermos garantir o anonimato total, então é melhor desativarmos já o perfil do Facebook. Sem pensar duas vezes.

[Este artigo foi publicado em Dezembro de 2015 na edição em papel da Notícias Magazine]