O cientista do Porto que se tornou político em Lisboa

Texto de Sara Dias Oliveira
Fotografia de Leonardo Negrão/Global Imagens

Alexandre Quintanilha, de 71 anos, um dos mais respeitados cientistas do país, está no Parlamento como deputado independente eleito como cabeça de lista do PS pelo círculo do Porto. É presidente da Comissão de Educação e Ciência, professor jubilado, presidente do conselho consultivo do Hospital Magalhães Lemos, presidente do Conselho de Escola da Escola Nacional de Saúde Pública, presidente da Comissão de Ética para a Investigação Clínica, que analisa todos os pedidos de ensaios clínicos e medicamentos no país. Move-se à vontade por diferentes ambientes.

Como é que um cientista entra na política? Nas autárquicas de 2009, Quintanilha estava na lista de Elisa Ferreira à Câmara do Porto. O independente Rui Rio venceu as eleições, a candidata socialista não assumiu o lugar na vereação, o cientista ficou três meses. «A minha experiência na Câmara do Porto foi dececionante, pois apesar de estar na oposição, pensei, ingenuamente, que me seriam entregues algumas responsabilidades no domínio da Ciência e ou Ensino Superior. Foram três meses de inatividade quase total e bastante frustrantes.»

Seis anos depois, um outro convite, rosa também. Desta vez pelo candidato do PS a primeiro-ministro. Um dia depois da última aula no ICBAS (Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar), no início de julho de 2015, Alexandre Quintanilha encontrou-se com António Costa no jardim de Serralves, num final de tarde de sábado. O convite para encabeçar a lista do PS no Porto nas legislativas fê-lo rir. Quis saber os motivos. Costa argumentou que a política precisava de gente sem raízes partidárias, que o povo estava descrente dos políticos.

Quintanilha adora a palavra «gerigonça» e usa-a sem reserva. «É uma história de sucesso em qualquer parte do mundo.» Se o convite viesse de outro partido não sabe o que responderia à esquerda, mas sabe que diria não à direita.

Quintanilha pediu uma semana para pensar, conversou com o marido, o escritor norte-americano Richard Zimler, aceitou com uma condição: manter a independência. E disse que ficaria um ano e logo se veria. Esse ano já passou e vai ficar até ao final da legislatura. E se o convite fosse feito por outro partido? Ao Bloco de Esquerda e ao PCP não sabe o que responderia.

Tem bastante consideração por Francisco Louçã e pelo já desaparecido Miguel Portas e o vigoroso aperto de mão que deu a Jerónimo de Sousa no início da legislatura ficou registado pelas câmaras fotográficas. Não sabe o que responderia à esquerda, mas sabe o que diria à direita. «Passos Coelho e Paulo Portas não me inspiram confiança.»

A vida de deputado obrigou a novas rotinas. E a grandes mudanças. Depois das eleições legislativas de outubro de 2015, alugou um apartamento cheio de luz perto da Avenida de Roma, em Lisboa, num bairro sossegado, sem muitos turistas, com mercearias de fruta à porta e o clássico bar Cockpit, que voltou a estar na moda mas onde foi poucas vezes, a dois passos. As senhoras da padaria pedem-lhe, com graça, a ele e a Zimler que lhes ensinem algumas palavras em inglês. Já conhece o casal que tem uma loja de acessórios de moda artesanais feitos mesmo ali, malas, bolsas, cintos, roupas.

O Campo Pequeno fica ali perto e a Leitaria da Quinta do Paço, na Avenida João XXI, com os famosos éclairs recheados, é habitualmente um ponto de paragem. O serviço é simpático, os bolos deliciosos. A leitaria é um clássico do Porto que chegou a Lisboa no ano passado. Tal como Alexandre Quintanilha, que também teve de tratar de mudanças e ao pé de casa tem outra referência do Porto, a loja dos tradicionais chocolates Arcádia. Em Lisboa, com o Porto ao pé.

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Alexandre Quintanilha gosta de andar a pé por Lisboa e de ir descobrindo a cidade aos poucos.

A facilidade de se movimentar na capital sem carro é das coisas que mais aprecia em Lisboa. De metro ou de táxi, chega à Assembleia da República sem muitas complicações em trinta ou quarenta minutos. E gosta também dos dias em que, sem horários para cumprir, se mete no metro, sai numa qualquer estação e vai à descoberta a pé. «Estou a dar-lhe oportunidade de me seduzir.» Parece que Lisboa está a conseguir. E não tem paciência para essa conversa do Porto é que é, que Lisboa é que é. «Essas peneiras parecem-me infantis.»

Terça-feira à tarde é dia de reunião da Comissão de Educação e Ciência, presidida por Alexandre Quintanilha. Cumprimenta os colegas, senta-se no seu lugar, inicia a sessão e os 12 pontos da ordem de trabalhos são resolvidos em 45 minutos. Os deputados analisam o teor de quatro petições – numa delas a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) pede respeito pelos docentes e que se melhorem condições de trabalho – para verificarem se cumprem as regras para serem discutidas no Parlamento.

Fala-se no projeto de resolução sobre o uso de animais para fins científicos e PCP e Os Verdes concordam em unir esforços e apresentar um único projeto. A reunião foi tranquila. Mas nem sempre é assim. Quintanilha já teve de moderar ânimos mais exaltados. «A oposição ainda está muito crispada», comenta. Parece-lhe que ainda não digeriu o acordo parlamentar feito pela esquerda, que suporta o governo.

No dia seguinte, o professor deputado ocupa o seu lugar na bancada «rosa» do Parlamento, ao lado das colegas Elza Pais e Maria Augusta Santos. Dia agitado, sem António Costa e ministros nas suas cadeiras, um entra-e-sai de deputados, a comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos concentra todas as atenções e o rebuliço passa-se fora da sala do plenário. O deputado raramente se levanta do lugar, bate palmas quando concorda com o que é dito, seja de que partido for, e quando fala é aplaudido da esquerda à direita, em todas as bancadas – mesmo as que não apoiam o governo.

Até hoje fê-lo quatro vezes: no início da sessão legislativa, na apresentação da proposta
para comemorar o Dia dos Cientistas em homenagem ao antigo ministro Mariano Gago, sobre a experimentação animal e a propósito da comissão a que preside. Mantém uma postura discreta, sabe que não precisa de se colocar em bicos de pés para provar o que quer que seja, ouve calmamente e não gosta de gritos. Na casa da democracia, vê «jovens com uma agressividade» que, em seu entender, se transforma em espetáculo no mau sentido.

“Vale a pena andar por aí, mudar de carreira… aprendemos sempre muito.” Quintanilha tem muito medo das pessoas que só têm certezas.

«Ouço e tento perceber e, às vezes, há argumentos sólidos e robustos que nunca ouvi antes.» Não tem pressas. «Construir confiança leva mais tempo. Não sou agressivo, sou ingénuo, acredito nas pessoas e não quero mudar.» Nas últimas legislativas, o PSD ganhou as eleições, mas o acordo à esquerda deu a António Costa, que o convidou a entrar nesta história política, o lugar de primeiro-ministro. PS, BE e PCP passaram da oposição para um acordo de governo que Paulo Portas batizou. Quintanilha adora a palavra «geringonça», retira-lhe a carga intencionalmente negativa e usa-a sem qualquer reserva.

«É muito expressiva. A “geringonça” é uma história de sucesso em qualquer parte do mundo.» Sente que o país está diferente, menos cabisbaixo, mais alegre, que o atual governo fechou um ciclo e criou uma autoconfiança que permite acreditar. «Portugal passou quatro anos sob pressão, as pessoas deixaram de acreditar que os seus filhos teriam futuro. Mas, neste momento, Portugal está a viver uma nova renascença, um período um bocadinho difícil de acreditar.»

Mais do que a descida da dívida, «algo absolutamente extraordinário, quando toda a gente dizia que era impossível», é a sensação de esperança que destaca com uma das maiores conquistas da «geringonça». «As pessoas estão novamente a voltar a acreditar.» O deputado está satisfeito. «Gostava que a “geringonça” percebesse que além de estarmos no bom caminho, temos de ser realistas no tempo que nos foi dado. Tenho muito orgulho de fazer parte da “geringonça” que está a funcionar bem.»

Acredita que a sua função política passa também por equilibrar posições. «Tento fazer pressão para que as decisões sejam o mais possível baseadas no conhecimento e na ignorância atuais, este balanço entre o que se sabe e o que não se sabe.» Quintanilha tem muito medo das pessoas que só têm certezas. Anda a tentar criar um mecanismo que avalie a inovação tecnológica, social, cultural, que sirva de apoio às decisões dos deputados na formulação de políticas públicas que assentem «no conhecimento mais robusto que existe» a cada momento. Pode ser um gabinete, uma unidade, um grupo de trabalho.

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Junto ao seu gabinete no ICBAS, no Porto, onde continua a regressar sempre que pode. Figura maior da ciência em Portugal, é também um nome grande da cidade.

Anda em reuniões pela Europa para entender melhor como poderá funcionar esse instrumento. Conhece o que se passa em Inglaterra, Áustria, Holanda e, para si, é fundamental perceber as consequências da inovação em vários setores da sociedade. «Como conversar uns com os outros quando falam linguagens diferentes?», questiona.
É um homem tranquilo. Não tem perfil no Facebook, usa o computador apenas para ir ao e-mail ou para pesquisar alguma informação. Acha que as pessoas passam demasiado tempo agarradas às máquinas.

Anda há uns tempos com a Nova Zelândia na ideia, gostava de passar dois ou três meses por ano no deserto quando se reformar e não tira da cabeça a ideia de estudar Arquitetura – tem jeito para o desenho e para essa coisa da perspetiva e da profundidade.

Já viveu em três continentes. Nasceu em Moçambique, estudou em Joanesburgo, deu aulas em São Francisco. E foi do outro lado do Atlântico que conheceu Richard Zimler que surge regularmente nas conversas como grande companheiro de vida. Em 2010 casaram numa cerimónia no bar da Casa Agrícola, no Porto, mas a homossexualidade nunca foi um assunto.

É como ter olhos castanhos ou azuis, cabelos louros ou ruivos. Como deputado, não sente o dever de levantar a voz para falar desse tema. «Não, não me sinto nada como uma bandeira da comunidade LGBTI no Parlamento», refere. «Considero que um dos meus objetivos mais importantes é defender e promover a educação e o conhecimento como base fundamental da democracia e da construção de legislação robusta, mais baseada no conhecimento do que em ideologias ou crenças. «Gostava de viver num mundo pós-género em que as pessoas não fossem classificadas com rótulos.»

Quintanilha não tem paciência para
as rivalidades entre Lisboa e Porto.
“Essas peneiras parecem-me infantis.”

O desejo sai-lhe naturalmente durante a conversa no bar dos deputados na Assembleia da República, depois da curta reunião da Comissão de Educação e Ciência. Aterrou no Porto há 26 anos. Já conhecia a cidade – no início dos anos 1980 foi ao ICBAS dar umas aulas, ainda no antigo edifício, em frente ao Hospital de Santo António, e regressava depois a Berkeley, na Califórnia – mas naquele final de 1990 foi diferente.

Voltou com malas e bagagens para ficar. Os bustos dos responsáveis pela sua vinda estão à entrada do edifício atual: Corino de Andrade e Nuno Grande, os dois vultos da ciência que o convenceram a mudar-se para Portugal (ver caixa). Chegou a um Porto muito diferente e viu-o mudar. «Vi o Porto crescer, tem o melhor aeroporto da Europa, tem uma qualidade de vida muito boa.» Neste momento, vive na Foz, de vez em quando dá uma saltada à casa em Moledo onde se dedica à jardinagem. Gosta de andar a pé, desenhar, cozinhar, ler.

Esse tema, das viagens, das cidades onde podemos viver e das coisas que podemos fazer, foi um dos temas de que falou a alunos no antigo liceu. «Vale a pena andar por aí fora, mudar de carreira porque aprendemos sempre muito». A frase sai-lhe no início de uma palestra no Pedro Nunes, em Lisboa, em jeito de conselho à vasta plateia de alunos do secundário.

Os convites para conferências abundam, mas a agenda não estica, apesar de se deitar cedo, pelas dez da noite, e se levantar pelas 5h30 da manhã. De vez em quando, consegue encaixar uma palestra numa escola, agora apenas três ou quatro por ano. Hoje é o orador convidado para falar sobre os desafios atuais da biomedicina no Pedro Nunes.

É um regresso ao passado. Foi ali, naquela escola, que aos 12 anos fez o terceiro ano do liceu, durante o ano que viveu com os pais em casa de uma tia, não muito longe dali. Ficou-lhe na memória uma casa fria, distante do calor de Moçambique. Hoje a escola está diferente. Pergunta a alguns professores se se lembram de um professor de Matemática muito exigente, que lhe deu aulas. Não são desse tempo.

Entra no pavilhão transformado em auditório, pede ajuda para passar o que gravou na pen para o computador, e os alunos entram. Mais de duzentos, da área de Biologia, que agarra no primeiro instante. Primeiro as inovações, depois as surpresas. O bebé que esteve no útero da mãe em morte cerebral durante três meses.

A criança que nasceu com material genético de três pessoas e, portanto, tem três pais. A mulher tetraplégica que tem um chip no cérebro e que consegue, através de um computador, levar uma bebida à boca com a mão biónica. A técnica para editar o ADN que pode dar resposta sobre doenças graves. Tudo em silêncio. O professor prossegue: 99,9 por cento das espécies já desapareceram, 99 por cento do material genético que transportamos não é humano.

«Somos uma espécie de ecossistema em que só um por cento do material genético é humano. Somos uma coleção fantástica de vírus.» As inovações trazem polémicas, questões fraturantes. «Toda a medicina é contra a natureza. O coração parou de funcionar, a que propósito vou comprar um ao Bangladesh porque é mais barato?»

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Numa palestra sobre biomedicina para alunos do secundário no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, onde estudou quando tinha 12 anos. Os convites são muitos, mas a disponibilidade é pouca.

No final, palmas de alunos e professores, fotografias para a prosperidade, uma ou outra pergunta. E uma disponibilidade generosa. Quintanilha aprecia perguntas fora da caixa e argumentos que nunca ouviu. Em seu entender, as escolas andam muito focadas em ensinar matéria atrás de matéria e esquecem-se de coisas importantes. «O ensino falha em transmitir a ideia de que a ousadia é uma coisa boa», diz durante a conversa no bar dos deputados.

A pele de professor agarra-se-lhe ao corpo, cola-se na alma. Ainda há dias reviu a última aula que deu no ICBAS e não tem dúvidas de que foi um belo momento. Mas acaba por confessar que, ano após ano, a sensação de nervosismo repetia-se. «No início do ano, andava sempre com dor de barriga.

Sabe o que é ter centenas de jovens com os olhos a brilhar?» Eram turmas de cem a duzentos alunos, dos cursos de medicina, veterinária, bioquímica e bioengenharia, que tinha perante ele nas aulas de biofísica. O bichinho académico nunca se enterra – continua a interagir com investigadores, ajuda a organizar conferências, debates. É um catalisador de iniciativas.

Naquela manhã de segunda-feira, Quintanilha está no Porto. Da varanda do seu gabinete envidraçado, no quinto andar do ICBAS, vê-se o Pavilhão Rosa Mota e sem neblina avista-se a foz do Douro. É um gabinete pequeno, simples, computador na secretária, estantes com livros, uma velha máquina de escrever que guardou quando uma funcionária lhe perguntou se a queria para não a colocar no lixo. Ficou com ela.

Alice Santos Silva, professora e investigadora da Faculdade de Farmácia, que manteve uma colaboração intensa com o professor de quem sente saudades, ficou satisfeita de o ver. «Faz-nos falta. É um líder agregador, consensual. Tem uma perspetiva abrangente, é uma pessoa que nos deixa voar, dá espaço para a nossa criatividade.» Quando saía das reuniões, sentia que o seu trabalho era o melhor do mundo, um reconhecimento que a fazia continuar. «O professor ajuda mas também dá espaço para as nossas ideias, os nossos projetos.»

E há uma pergunta que não esquece, constante nas conversas. «Ouvia-nos e depois perguntava “So what?”». «E então?» Era uma espécie de clique que a obrigava a refletir sobre o outro lado da questão. A ver o que ainda não tinha visto. Há dez anos, Maria Strecht Almeida e Alexandre Quintanilha criaram, no ICBAS, a cadeira opcional Ciência e Sociedade, unidade curricular procurada por alunos de diversos cursos. «Uma coisa inovadora», garante o professor. A interdisciplinaridade, esse interface com várias áreas do conhecimento, é quase uma imagem de marca, uma lufada de ar fresco, que semeou quando entrou na vida académica no Porto. Nada de capelinhas, misturar gente que pensa de vertentes diferentes é que era, troca de ideias sempre bem-vinda. «É um privilégio trabalhar com o professor, qualquer conversa abre muitos horizontes. Levanta questões, reflete sobre todos os assuntos, é uma pessoa singular», diz a professora no ICBAS.

Alice Santos Silva gosta do novo papel do professor. «Levar o seu testemunho para a Assembleia da República é importante e é preciso gente que não esteja contaminada com a politiquice», diz a investigadora. À saída do instituto, a pergunta: e o futuro, professor? Mais um mandato de deputado? «Pela nossa conversa, já terá percebido que não tenho resposta para isso.»