«Ó boa, fazia-te um filho», disse ele. Todos ouviram, mas ninguém fez nada.

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Trazia um top branco que deixava exibir os ombros nus bronzeados, livres do cabelo escuro preso num rabo de cavalo apertado. Era muito bonita. Mesmo. E alta. Um metro e setenta e cinco? A bater no metro e oitenta? Ajudada pelo saltos, verdade, mas se ela descesse dali continuaria acima das cabeças que se levantavam quando ela passava. E que se viravam para trás.

Foram seis. Seis homens viraram-se à passagem dela. Três não disseram nada. Dois falaram. Dirigiram-lhe palavras. Emitiram comentários na direção dela, para ela ouvir. Não disseram nada de jeito, na verdade, foram só ordinários, boçais, entre o reles e o rasteiro. Mas o outro… O outro fez mais do que isso.

Não foi apenas o que disse. Foi o que pensou enquanto disse. Naquelas palavras que aquele homem baixo de tshirt azul, calças de ganga e sapatos vela castanhos vomitou naquele momento estava todo um tratado de superioridade de quem acha que pode dizer o que quer e escapar ileso. De quem acha que, se calhar, até pode tocar, se para isso tiver oportunidade.

Aconteceu hoje de manhã. Eu estava a tomar um café no sítio do costume, por vezes passo antes de vir trabalhar. É suficientemente amplo para poder ver quem vai e quem vem. Suficientemente aberto para poder reparar numa mulher bonita que dá nas vistas, suficientemente espaçoso e sem obstáculos para conseguir ouvir os sons que saíram da boca daquele fulano.

Escrevo isto ao fim do dia e, durante estas nove horas, as palavras dele não me saem da cabeça. Imagino-o a enfiar as unhas grandes e sujas dentro dos meus ouvidos e a arranhar-me o cérebro com o que disse. Ela não. Ela não terá ouvido. Trazia uns pequenos headphones nos ouvidos que terão garantido, espero, o escudo necessário para aquele momento. Ou então ouviu e conseguiu ignorar olimpicamente.

Penso naquela mulher que vi de manhã, lembro-me do que ouvi e dou por mim a imaginar como será daqui a uns anos. Quando as minhas filhas tiverem idade para calças justas, sandálias de salto agulha e tops que exibem ombros bronzeados, vão estar sujeitas a isto também? Vão ter de pensar que, por usarem esta ou aquela roupa, por mostrarem este ou aquele pedaço de pele, vão ter de ouvir coisas daquelas? Dentro de dez, quinze, vinte anos, ainda será natural ouvir um filho da puta destes dirigir-se assim a uma mulher?

Eu não faço ideia o que seja ser assediado. Agredido verbalmente. Não sei o que isso é. Na rua nunca ouvi comentários ordinários dirigidos para mim, no trabalho nunca ninguém abusou de uma situação de poder para ter avanços de qualquer espécie. Suponho que o facto de ser uma fraca figura que ninguém quer assediar para coisa nenhuma contribua para isso, mas a verdade é que ser homem me protege desse tipo de situações. E não devia ser assim. Não devia ser essa a fronteira.

A igualdade de género que defendemos não serve para estabelecer pontes destes. Não vamos atingir um equilíbrio no dia em que os homens forem assediados da mesma forma. Mas talvez o façamos no dia em que sejam capazes de fazer o que eu não consegui esta manhã: responder na hora, reagir, criticar. Se somos capazes de correr para separar duas pessoas que estão aos sopapos um ao outro, porque não o fazemos para reclamar contra a agressão verbal? Fiquei o dia todo a pensar nisto.

No que devia ter dito quando ouvi aquilo à passagem de uma mulher que não tem de se sentir mal por ser bonita e ter ombros bronzeados. Ela não me sai da cabeça. O fulano também não. As palavras que ele vomitou, ainda menos.