Não à violência contra as mulheres: um testemunho e a força da lei (que tem que deixar de falhar)

Texto NM | Fotografia de Shutterstock

O marido tornou-se violento, começou a bater-lhe, a agredi-la física e verbalmente. Chegou a partir a porta da cozinha. Um dia, depois de mais uma tareia, arrastou-se até à polícia para apresentar queixa, tiraram-lhe fotos aos hematomas, às nódoas negras. Teve de ir ao hospital e de responder a um formulário exaustivo sobre o que se tinha passado. Foram momentos duros, com dois filhos menores em casa. Havia que pôr um ponto final àquela situação. E não se arrepende.

O processo seguiu para tribunal. Teve de recorrer à teleassistência, informar cada passo que dava. O marido agressor foi condenado, ficou com pena suspensa. Não pode aproximar-se dela, mas continua a enviar-lhe mensagens que a desestabilizam e que não foram consideradas como novas provas relevantes no processo.

Neste percurso sentiu-se, por várias vezes, desamparada em termos de apoio jurídico. Nada que a demovesse. Apresentou queixa e nunca desistiu. Hoje segue com a sua vida convicta de que aquela vida não era vida. A história é real, contada de peito aberto, como uma espécie de libertação.

A partir da denúncia, a vítima é sempre encaminhada para estruturas locais de apoio com vista à elaboração de um plano de segurança.

«As mulheres não têm dúvidas de que a violência doméstica é crime», diz Daniel Cotrim, psicólogo e assessor técnico da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), responsável pelas áreas de género e igualdade. O problema é a que porta bater, quem procurar, o que fazer. «Não sabem a quem podem recorrer, quem as pode ajudar a sair de relações abusivas», acrescenta.

A APAV presta ajuda nestes casos ao nível da informação, sensibilização, e até mesmo no acompanhamento na apresentação da queixa, no momento dos depoimentos, na ida ao hospital ou ao gabinete de Medicina Legal.

Para Daniel Cotrim, é preciso articulação, coordenação, entre organizações da comunidade para que as vítimas percebam o que está a acontecer, o que devem fazer. Para evitar repetições, para evitar dizer sempre a mesma coisa, para evitar remoer e remoer episódios traumáticos.

«Há mulheres que sentem que nunca foram levadas a sério. É preciso que saibam com quem estão a falar, para que serve o que estão a fazer». Saber tudo. E como fazer. Apesar de tudo, na perspetiva do psicólogo, as campanhas de sensibilização têm surtido efeito. Têm espalhado a mensagem do que é preciso fazer para por termo à violência.

Este ano, 83% dos crimes fatais aconteceram na residência e em quatro dos homicídios já existia uma denúncia e em dois havia medidas de coação decretadas ao agressor.

O relatório preliminar do OMA – Observatório de Mulheres Assassinadas, apresentado pela UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, dá conta de 18 mulheres assassinadas, vítimas de violência em situações de intimidade e familiares, e 23 tentativas de homicídio durante este ano, de janeiro até este momento.

Quase metade das vítimas tinha idades entre os 51 e os 64 anos e 50% estavam a trabalhar. E 83% desses crimes fatais aconteceram na residência e em quatro dos homicídios já existia uma denúncia e em dois havia medidas de coação decretadas ao agressor. Seis dos homicídios foram praticados com arma de fogo e com arma branca.

Cruzando-se a incidência de femicídio com a presença de violência doméstica nas relações de intimidade, e em relações familiares privilegiadas, verifica-se que 56% das mulheres assassinadas este ano foi vítima de violência nesse contexto relacional. Todos os meses, há uma média de duas tentativas de homicídio de mulheres em contextos de violência.

A lei portuguesa de prevenção de violência doméstica e proteção e assistência às vítimas é considerada progressista.

A lei portuguesa de prevenção de violência doméstica e proteção e assistência às vítimas é considerada progressista. Direitos que muitas vítimas desconhecem. O respeito pela vida privada e a garantia de sigilo nas informações prestadas são direitos básicos.

A partir do primeiro contacto com as autoridades, a vítima deve ser informada de todos os passos a dar, nomeadamente como e em que termos pode receber proteção, quais os requisitos que regem o seu direito a uma indemnização.

Sempre que existam filhos menores, o regime de visitas do agressor deve ser avaliado, podendo ser suspenso ou condicionado. E com a denúncia, a vítima é sempre encaminhada para estruturas locais de apoio com vista à elaboração de um plano de segurança. Por comprovada insuficiência de meios económicos, o apoio jurídico prestado é gratuito.