Portugal está nas cabeças do mundo

Texto de Ricardo J. Rodrigues
Fotografia de Pedro Granadeiro/Global Imagens

Para os Estados Unidos seguem os modelos de cowboy, para a Bolívia os chapéus de coco, para Israel os quipás que os judeus ortodoxos usam. Depois há as casas de alta-costura – como a Armani, a Prada ou a Hermès – a distribuí-los com design de vanguarda pelo mundo inteiro. E há Hollywood a tornar em ícones os modelos que marcaram a tela, como o que Harrison Ford usou em Indiana Jones, ou Johnny Depp em Public Enemy. Metade dos chapéus de feltro que o mundo usa, sejam de abas largas ou curtas, copa alta ou baixa, são fabricados em Portugal – no vale de Entre o Douro e Vouga, em São João da Madeira.

O fenómeno explica-se em grande medida por uma empresa, a FEPSA, acrónimo de Feltros Portugueses, SA. Todos os anos nascem aqui novecentos mil chapéus, metade da produção mundial. «Noventa e oito por cento do que produzimos é para exportação», diz Margarida Figueiredo, CEO da empresa e chapeleira de quarta geração. «Quarenta por cento do nosso mercado é europeu – sobretudo França, Itália e Inglaterra, que são países onde o uso de chapéu é um sinal de diferenciação. Depois abastecemos o resto do mundo, com grande incidência no mercado americano, australiano e japonês.» São os líderes mundiais em feltros de pelo de coelho, o vetor mais nobre da indústria chapeleira. Mas também os fazem em lã e pelo de castor.

O mundo na cabeça

A companhia nasceu em 1969, quando seis industriais da chapelaria resolveram unir esforços e criar uma empresa com competitividade à escala global. A FEPSA não faz chapéus acabados, antes fornece feltros de alta qualidade para o seu fabrico, cortados à medida e segundo as especificidades dos clientes. Fatura 15,5 milhões de euros anuais e, na última década, a taxa de crescimento anual tem sido em média de dez por cento. «Depois de cair em desuso e da crise que levou muita gente à falência, verificamos que há hoje uma nítida retoma de mercado. Basta vermos desfiles como o Portugal Fashion, ou qualquer outra semana de moda mundial, para percebermos que os designers estão cada vez mais interessados em criar chapéus.» O segmento da moda, no entanto, não representa mais de 15 por cento da produção da empresa. Os chapéus étnicos, religiosos ou os uniformes são ainda o grosso do que se faz em São João da Madeira.

«Se formos a ver bem as coisas, esta cidade nasceu por causa da chapelaria», diz Ricardo Oliveira Figueiredo, presidente da autarquia e, curiosamente, irmão da diretora da FEPSA. A sua história não é muito diferente da maioria da dos seus conterrâneos: toda a gente aqui parece ter um passado ligado ao setor industrial dos chapéus. «Na segunda metade do século XIX, esta terra estava apetrechada de pequenas unidades industriais, que foram crescendo de forma consistente. Com a mecanização do início do século XX, atingiram-se grandes produções e às tantas esta pequena freguesia garantia mais impostos ao erário público do que todo o concelho de Oliveira de Azeméis, onde estava inserida. Isso deu argumentos às gentes da terra para reivindicarem a autonomia municipal em 1926». Hoje, é o mais pequeno concelho do país em área (tem oito quilómetros quadrados), mas um dos mais ativos economicamente. A cidade tem 20 mil habitantes, mas dá emprego a 40 mil almas.

Nos anos 1960, quando a indústria chapeleira entrou em colapso – porque o chapéu tinha caído em desuso – aconteceram duas coisas curiosas em São João da Madeira. «A primeira foi uma enorme reconversão dos pequenos industriais para o fabrico de sapatos, o que acabou por fazer da cidade a capital nacional do calçado. Depois, quando veio a crise dos sapatos, o povo virou-se para os colchões. E quando a colchoaria entrou em recessão, a opção seguinte foram os interiores dos automóveis. Há uma relação entre cada setor.» O trabalho com o feltro, diz, facilitou a vida a quem começou a fabricar sapatos, a experiência com tecidos simplificou a construção de colchões, as molas e os têxteis da colchoaria foram aplicados diretamente nos assentos dos carros. «É como se cada solução nascesse da aprendizagem anterior. E, no início de tudo estão os chapéus.»

A segunda circunstância que o autarca aponta é o facto de, quando os pequenos industriais perceberam que sozinhos acabariam por sucumbir, terem decidido unir esforços e transformar as suas unidades numa grande empresa. «Este fenómeno de fusão dos industriais de chapelaria é único no mundo. Nos outros países as empresas foram fechando. Aqui a FEPSA cresceu ao ponto de se tornar líder global. E de continuar, passados todos estes anos, a crescer.» O setor, condenado à morte, acabou assim por sobreviver. Em vez dos mestres chapeleiros que enchiam as ruas da cidade há hoje um gigante a exportar para o mundo inteiro.

«A personagem do Chapeleiro Maluco em Alice no País das Maravilhas não é mera coincidência», diz Margarida Figueiredo. «É um retrato da época. Muitos chapeleiros enlouqueciam nos últimos anos de vida por causa do mercúrio.»

O exemplo de que o trabalho em grande escala teria melhores possibilidades de sucesso já tinha, em boa verdade, sido demonstrado em 1943. Foi nesse ano que Salazar decretou o estabelecimento em São João da Madeira de uma Cortadoria Nacional de Pêlo, que hoje está nas mãos da família Figueiredo. Fatura, anualmente, 7,5 milhões de euros com a produção de 136 toneladas de pelo de ovelha, castor e sobretudo coelho para a indústria chapeleira. Tem cinquenta funcionários, um sexto dos que emprega a empresa irmã FEPSA e, tal como esta, vende para o mundo todo.

A primeira imagem que uma pessoa vê quando ali entra é a de sacas e sacas com peles de animais. Nenhum animal, garante a administração, é abatido por causa do valor do seu pelo. O que chega de coelhos e lebres são os despojos da indústria alimentar. E a pele de castor vem do Canadá, onde a caça é legal para controlo da espécie. O edifício onde a Cortadoria opera não é só uma fábrica, é um monumento industrial. A maioria dos funcionários são mulheres – e dedicam-se a cortar o pelo, separá-lo da pele e mergulhá-lo numa solução que o torna apto para feltragem. Até 1960, usava-se mercúrio neste processo, o que causava lesões permanentes no sistema nervoso central. «A personagem do Chapeleiro Maluco em Alice no País das Maravilhas não é mera coincidência», diz Margarida Figueiredo. «É um retrato da época. Muitos chapeleiros enlouqueciam nos últimos anos de vida por causa do mercúrio. Lewis Caroll acabou por apropriar-se de uma figura comum e criou um ícone para dureza de um ofício.»

A Cortadoria não abastece apenas a FEPSA, como já se viu. Tem clientes no mundo inteiro, ainda que o grosso das vendas não precise de viajar mais de um quilómetro, até à fábrica de feltros. Quando ali chega, vem em grandes sacas. Se a ideia é fazer chapéus de cores claras usa-se a pelagem branca, para os mais escuros o pelo é castanho e cinzento. E o processo inicial é a suflagem. A matéria-prima é introduzida numa máquina que separa o pelo que feltra do que não presta – e o desperdício está sempre na casa dos dez por cento. Depois a arcagem, onde se estabelece a gramagem que cada chapéu vai ter. Há produtos mais densos que outros e aqui trata-se precisamente da consistência. O pelo passa por um processo mecânico que forma um cone húmido – será desse formato que nascerão os feltros.

No princípio era o chapéu

Há uma lenda que diz que a chapelaria nasceu quando São Tiago, ao caminhar para Compostela, decidiu colocar pelo de coelho nos sapatos para aliviar as dores da caminhada. O processo de feltragem obedece a três processos que se podem explicar pela sua rota. Há o trabalho mecânico, o pelo pisado a cada passo, há o calor que os pés libertam e ajuda a cimentar o composto, e há a acidez do suor que uniformizava o produto. Os 300 trabalhadores da FEPSA não colocam pelo nas botas nem andam a caminhar pela fábrica para criar o feltro, mas o processo mecânico continua a cumprir os mesmos cânones: mecanização, calor e acidez.

Antes da modelagem propriamente dita, são definidas as cores – e os produtos ganham-nas na tinturaria, onde são mergulhadas durante horas e depois secas em estufas frias e quentes. Mas é no processo de enformação que os chapéus ganham a sua forma final. Hoje estão a ser preparados vários modelos para a Hermès. Uma máquina acerta a copa e um funcionário vai medindo o diâmetro das abas, para perceber se ele corresponde às instruções rigorosas da casa de moda. «Se não estiver não tem salvação, vai para o lixo», diz o homem, que tem décadas de ofício. «Mas raramente acontece, as máquinas vieram reduzir muito a margem de erro.» No fim de tudo, os produtos são lixados e é-lhes adicionada goma. Estão prontos para ser expedidos para o mundo todo, onde cada cliente lhe dará os toques finais e a etiquetagem. O sucesso da FEPSA explica porque a fábrica trabalha 24 horas por dia, cinco dias por semana.

Um dos edifícios mais emblemáticos de São João da Madeira é a antiga fábrica da Oliva, onde hoje funciona uma Creative Factory. Reúnem-se ali vários criadores que apostam em novos conceitos empresariais.

Há uma questão, porém, que se coloca nos chapéus como um dia se colocou no calçado e nos têxteis portugueses. É que de Portugal saem produtos de alta qualidade, mas as marcas que beneficiam dessa fama quase nunca são portuguesas. «Esse é o paradigma que agora queremos mudar», diz o presidente da Câmara. «Hoje, estamos a criar laboratórios de criatividade que estimulem o aparecimento de novos criadores fortes na região. Alguns estão a virar-se para a chapelaria, com grande sucesso. E é nesse valor acrescentado que queremos precisamente apostar.»

Um dos edifícios mais emblemáticos de São João da Madeira é a antiga fábrica da Oliva, onde hoje funciona uma Creative Factory. Reúnem-se ali vários criadores que apostam em novos conceitos empresariais, e um dos maiores casos de sucesso é a Feltrando, a companhia de design que a escultora Filomena Almeida criou em 2014 para requalificar os restos de feltro que sobravam como desperdício na fábrica. «Compro os materiais a baixo custo e transformo-os em novos produtos», explica. Há bolsas para senhora, cadeira com um entrelaçado de feltro, há chapéus que tinham defeitos e foram transformados em candeeiros. «Também faço modelos de chapéus com um design próprio, onde acrescento joias ou elementos diferenciadores.» As vendas são animadoras: meia centena de chapéus vendidos no ano em que os lançou para o mercado.

O Feltrando é também um projeto de empreendedorismo social. Alguns dos trabalhadores são pessoas em processo de recuperação tóxica na Santa Casa da Misericórdia de São João da Madeira. «Trabalhamos com pessoas que tiveram problemas de dependência e agora estão a tentar reestruturar a sua vida, a ganhar competências que as qualifiquem para um emprego.» E o futuro, garante a escultora, está precisamente na tradição. Aqui não se inventou nada de novo, pegaram-se em métodos antigos e inventou-se uma receita nova. «É isso o design, afinal de contas. E é isso que a chapelaria precisa.»

Não é só feltro

Um quilómetro adiante, numa das zonas industriais da cidade, fica a EPA, Eduardo Pereira Almeida, SA. É uma fábrica de chapéus que nasceu em 1975 e se desenvolveu a vender bonés de caça com padrões ingleses, sob uma marca que os anos tornaram forte: a Galgo. Em 1999, Marco e Cristina Santos compraram a companhia e operaram uma pequena revolução. «Quando aqui chegámos trabalhávamos essencialmente para Portugal e Espanha, hoje estamos em cinquenta países. Não havia mais de dez produtos no catálogo, agora são pelo menos uma centena», explica a mulher.

A grande mudança, dizem, foi o marketing. Se antigamente a empresa trabalhava apenas por encomenda, agora é proativa, tenta introduzir conceitos novos. Padrões modernos, corres garridas, formatos que ainda não tinham experimentado. Têm representantes nas feiras a vender as novidades, mas também aceitam encomendas especializadas, à medida do freguês. «Estamos a trabalhar em feltro e tecido e estamos a produzir quinhentas unidades por dia. Reforçámos o quadro de trabalhadores e hoje temos trinta funcionários.» Conseguiram revitalizar uma indústria em crise e hoje estão em crescimento.

Há um fator de mudança em que quase ninguém repara e se tornou determinante no setor. «É que as cabeças cresceram. Antigamente vendiam-se chapéus de tamanho 57 a 59, agora o que sai é de 59 a 61.»

Numa aldeia nos arredores de São João da Madeira, Macieira de Sarnes, Luís Pinho disserta sobre a inevitabilidade de renovação da indústria. Ele é dono, desde 2005, de uma fábrica que tem mais de seis décadas de produção. O seu mercado preferencial é o das encomendas. Faz bonés para grandes cadeias de restauração, abastece confrarias, ranchos folclóricos e estudantes universitários com chapéus para os seus trajos, cria modelos para cantores venderem nos concertos. «Os chapéus dos escuteiros de Portugal, Espanha e mais uma série de países são todos feitos aqui.» Desde que chegou, há uma dúzia de anos, as vendas aumentaram trezentos por cento, nas suas próprias palavras. E porquê? «Porque deixei de fazer produto indiferenciado e criei uma marca própria – a Chapéus Real – que oferece qualidade.»

O mundo mudou e precisa de marcas, diz o homem. Também precisou de reformular alguns aspetos da produção. «Trabalhamos em tecido, feltro e palha, usamos padrões inovadores, cores mais fortes.» Mas há um fator de mudança em que quase ninguém repara e se tornou determinante no setor. «É que as cabeças cresceram. Antigamente vendiam-se chapéus de tamanho 57 a 59, agora o que sai é de 59 a 61.» A melhoria da alimentação e a moda dos cabelos volumosos fizeram crescer o diâmetro da indústria chapeleira. «E, quem não percebe isto, quem não se adapta, morre.»

Foi o que aconteceu, em 1995, com a Empresa Industrial de Chapelaria. Foi em tempos o maior complexo fabril de São João da Madeira e chegou a empregar, na década de 1960, três mil trabalhadores. Apesar de as raízes da empresa datarem de 1891, a construção de uma fábrica em 1914 permitiu ao proprietário, Oliveira Júnior, montar toda uma cadeia de produção, desde a cortadoria ao chapéu acabado. Hoje, é sede do Museu da Chapelaria. Possui maquinaria antiga, uma notável coleção de chapéus, ateliês de fabrico para os mais novos. «Nunca quisemos ter aqui um lugar que se limitasse a fazer a ode da chapelaria, mas sim uma representação de um trabalho basilar desta terra, com toda a elegância que acarretava, mas também com toda a dureza do trabalho», diz Suzana Menezes, diretora do espaço.

O negócio na Empresa não resistiu à mudança dos tempos. «Ainda se fabricaram as sapatilhas Sanjo, mas depois as coisas foram sendo mal geridas e a golpada final deu-se com a queda do Muro de Berlim», explica a diretora do museu. Da República Checa chegavam produtos mais baratos, mercê da mão-de-obra mal paga. «Foi um golpe para uma indústria cujos primeiros relatos de estabelecimento datam do século XVII», diz Suzana Menezes. «Agora é impossível não pensar que, se tivesse aguentado uns anos, se tivesse aguentado a tempestade, hoje poderia respirar saúde.» É um símbolo aquela fábrica, um lembrete de que os chapéus quase morreram. Mas também que, no vale Entre Douro e Vouga, eles conseguiram renascer.

UNHAS NEGRAS

Na década de 1960, a Empresa Industrial de Chapelaria, onde hoje funciona o Museu da Chapelaria, empregava três mil pessoas. «Aqui não entrava ninguém sem chapéu», diz Deolinda Oliveira, de 63 anos, que ali começou a trabalhar com 9. «Se se esquecesse, voltava atrás e não ganhava a jorna.

Mesmo quando os funcionários saíam para o almoço, se algum deixava o chapéu esquecido, logo lhe gritavam Péu, Péu para que tornasse atrás. Era uma grande ofensa.» A fábrica tinha atividade contínua, nunca fechava, e trabalhar ali era sinal de prestígio. «Chamavam-nos os Unhas Negras, era a alcunha dos chapeleiros. Mas era mais bem pago que o resto dos ofícios, por isso toda a gente queria vir para aqui.»