Marina Silva: «A floresta até poderá recompor-se, mas a vida das pessoas não»

Entrevista Sara Dias Oliveira

Tem afirmado que vivemos uma crise ambiental global. Sempre ouvimos dizer que a Terra é de todos, mas não continuará ela subjugada a interesses, sobretudo económicos?
Isso tem que ver com a crise, civilizacional, porque a natureza da crise não é apenas ambiental: é económica, é social, é política, e sobretudo é uma crise de valores. Que leva ao uso insustentável dos recursos naturais porque o modelo de desenvolvimento que temos sacrifica os recursos de milhares de anos pelo lucro de apenas algumas décadas, quando, na verdade, o desafio do desenvolvimento sustentável é que possamos ser economicamente prósperos, mas de forma sustentável.

Em termos ambientais, quais os assuntos que devem preocupar o mundo?
Um é o problema das mudanças climáticas em função da emissão de combustíveis fósseis que precisam de ser reduzidos. Mas temos outros. A perda de biodiversidade é uma preocupação que precisa de ser enfrentada assim como o problema dos recursos hídricos, que tem como consequência a destruição de florestas e faz que as regiões que vão ficar sob pressão hídrica aumentem assustadoramente.

Este ano, arderam quase 450 mil hectares em Portugal, morreram mais de cem pessoas. Como se explica uma tragédia destas num país que todos os anos combate incêndios?
Na agenda e no debate ambiental, trabalha-se com a ideia do princípio da precaução porque quando há situações que trarão danos irreversíveis é preciso redobrar os esforços para prevenir.

Estamos a falar de mortes… a prevenção chega?
A floresta até poderá se recompor, mas a vida das pessoas não tem como. É preciso trabalhar com o princípio da precaução. O que aconteceu é que esse princípio provavelmente não foi levado em conta, tanto não foi que aconteceu um desastre irreversível.

«Gosto do provérbio que diz que sábios são os que aprendem com os erros dos outros, mas seremos estúpidos se não aprendermos com os nossos.»

O que deve um país fazer perante tragédias como estas, sem precedentes?
Dizem que o correto é fazer as coisas com base em atos de amor à vida, para evitar problemas. Mas uma boa parte das pes­soas move-se pela dor. Espero que essa dor, não apenas das pessoas e dos municípios em que a tragédia aconteceu – a perda dessas vidas é uma dor da humanida­de –, ensine que devemos promover a sustentabilidade ambiental, económica e social. Sem isso essas tragédias continuarão a repetir-se. Gosto muito do provérbio que diz que sábios são os que aprendem com os erros dos outros, mas seremos estúpidos se não aprendermos com os nossos próprios erros. Se não conseguimos ser sábios, pelo menos não sejamos estúpidos.

O avanço do mar é um fenómeno que preocupa Portugal. No entanto, ninguém assume a evacuação de populações e a proibição de construir em cima de dunas é um assunto recente.
Não conheço com profundidade essa realidade, mas todos os estudos dão conta de que, com o aumento da temperatura da Terra, isso é algo que vai acontecer. Além das ações de mitigação que precisam de ser feitas, hoje já temos de conviver com os esforços de adaptação. Cada país, cada realidade, terá de fazer as duas coisas, tanto a mitigação como a adaptação a essas realidades que já estão acontecendo como fenómenos extremos, atingindo a vida de cidades, contingentes, que ficam muito próximas do mar.

O poder político e público tem de começar a pensar na retirada de populações e na proibição de construções em cima das praias?
O manejo de populações é sempre algo difícil e complicado porque envolve aspetos de natureza cultural. As pessoas vivem numa região, criam identidade social, cultural, o lugar de sentido das suas narrativas de vida. É preciso sensibilidade, mas obviamente que existem casos em que não há ações que possam mitigar e que possam levar a alguma agenda de adaptação. São processos irreversíveis, mas o poder público tem de fazer isso de forma transparente, participativa.

«Gilberto Gil tem uma música que diz que o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe. O povo sabe do que precisa: comida, casa, emprego, educação, saúde, segurança.»

Fala-se tanto de desenvolvimento sustentável, mas não será uma expressão bonitinha que, no fundo, não passa de uma mão-cheia de generalidades que poucos percebem?
Temos de separar o joio do trigo. O conceito foi pensado de forma consistente. O problema é que os setores que são contrários a essas mudanças resistem, combatem, e depois vendo que não têm como suplantar, vão-se apropriando do discurso sem que isso tenha um correspondente na prática. O que temos de fazer não é abrir mão do conceito, da visão e das novas estruturas que podem ser criadas. O que temos de fazer é evitar que se tenha um discurso vazio, um consenso oco em torno da proposta, e cobrar consistência.

Como se fala numa sociedade ambientalmente sustentável a comunidades pobres? Como se fala, por exemplo, de reciclagem, de alterações climáticas, do buraco do ozono, a pessoas que não têm comida na mesa?
Gilberto Gil tem uma música que diz que o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe. E o povo sabe do que precisa. Precisa de comida, casa, emprego, educação, saúde, segurança. Mas também quer o que, às vezes, não acha que precisa. Caberá ao poder público, prover os meios necessários para que essas populações não paguem o preço de não se proteger o meio ambiente, de não se mudar o modelo insustentável para o modelo sustentável. Porque essas populações são as que pagam o preço mais alto. Tive experiências muito interessantes no Brasil. Depois de grandes deslizamentos, as pessoas começaram a entender rapidinho o problema das mudanças climáticas. Quem não entende é uma parte dos políticos, uma parte das empresas. Mas temos de falar para as populações vulneráveis, são elas que mais precisam de justiça ambiental porque serão elas as maiores injustiçadas com os efeitos indesejáveis das mudanças climáticas, da perda da biodiversidade, da escassez de chuvas, da desertificação.

Teme que o governo de Michel Temer deite por terra o trabalho que fez na Amazónia?
Temer anda a tentar extinguir uma reserva natural, abrindo portas à livre exploração da extração mineira. A presidente Dilma, com uma medida provisória, reduziu 86 mil hectares de sete zonas de conservação para favorecer a instalação de grandes hidroelétricas. Depois o presidente Temer seguiu, aprofundou, e já fez outros decretos de redução, em que 4,7 milhões de hectares de área protegida foram extintas para favorecer a mineração. Desde 2014, o desmatamento voltou a crescer na Amazónia. Agora temos uma situação dramática. Os governos de Dilma e Temer pararam praticamente de criar zonas de conservação, de homologar terras indígenas, e ainda promoveram mudanças muito graves no código florestal que reduziram a reserva legal e, ao mesmo, tempo, favoreceram a legalização de terras ocupadas ilegalmente.

Como vive o Brasil com tamanha instabilidade? Dilma e Lula da Silva estão formalmente acusados de associação criminosa. Há suspeitas que Temer esteja envolvido no Lava-Jato. Como vive o país com estas suspeitas?
Temos uma grave crise política, uma grave crise económica e uma crise social. Temos mais de 14 milhões de pessoas desempregadas. Os grandes partidos estão envolvidos em casos graves de corrupção, tanto o PT como o PMDB e o PSDB, e os seus satélites, e a Operação Lava-Jato está fazendo um esforço muito grande de investigação e de punição desses criminosos, tanto políticos como empresários. Mas há uma pressão muito grande em cima do Ministério Público, da Polícia Federal, e do juiz Sérgio Moro, e tentativas de mudar a legislação para favorecer os corruptos. Estes grandes partidos estão fazendo uma reforma política em que serão favorecidos nas próximas eleições porque estão criando um megafundo eleitoral, em que cada um terá cerca de 400 milhões para as campanhas, obviamente em prejuízo de outras forças políticas que terão recursos mínimos. Eles terão um espaço significativo para propaganda eleitoral gratuita nos meios de comunicação. Eles poderão ter entre cinco e sete minutos e o partido ao qual eu pertenço terá 12 segundos. Em termos do fundo eleitoral, terão 96% a mais de recursos. É um desequilíbrio muito grande e isso é uma forma de se perpetuarem no poder.

«O povo brasileiro é sempre maior do que os erros dos que supostamente deveriam representá-lo. A sociedade brasileira tem uma capacidade incrível de surpreender.»

Temer aguenta-se no poder até às próximas eleições?
Sempre defendi que o melhor caminho era a cassação da chapa [retirada de direitos políticos] porque havia uma farta comprovação de que houve uma fraude eleitoral em 2014. Infelizmente a justiça eleitoral não fez o mesmo que a justiça criminal está fazendo e absolveu Dilma e Temer, mesmo ficando comprovado nos autos que haviam usado recursos irregulares nas campanhas. Existem outras denúncias que estão sendo feitas, e muito graves, contra Temer, Dilma, e Lula. Temer não tem popularidade alguma, tem menos de 6% de apoio da opinião pública, sustenta-se única e exclusivamente no apoio do congresso que em troca de benefícios o mantém no poder.

Vai candidatar-se pela terceira vez à presidência do Brasil?
Estamos fazendo esse debate dentro do partido. Encaro esse momento com muito sentido de responsabilidade com o que o Brasil está vivendo, a importância de ter uma alternativa que tire o país desse poço sem fundo. O meu nome é um potencial nome em termos de candidatura, é óbvio.

Está disponível?
Estou a fazer o debate com responsabilidade. Mais importante do que isso, estamo-nos preparando através de uma ampla discussão com diferentes setores da sociedade para fazer um programa que dê conta da situação difícil que o país está vivendo. A primeira coisa que deve ser considerada é qual o propósito que queremos ter depois dessa catástrofe política, dessa catástrofe económica e social que estamos vivendo.

Acredita que há futuro político no Brasil?
Com certeza. O povo brasileiro é sempre maior do que os erros daqueles que supostamente deveriam representá-lo. A sociedade brasileira tem uma capacidade incrível de surpreender, inclusive de se surpreender a si mesma. O facto de agora estar recolhida não significa que esteja de acordo. Temos a Operação Lava-Jato que está sendo feita pela justiça, mas 2018 pode ser a oportunidade de uma espécie de operação Lava Voto, onde quem deve ganhar não devem ser as estruturas do dinheiro, do mar­keting, mas a postura do cidadão brasileiro. Só a sociedade brasileira pode melhorar a qualidade da política.

Uma mulher, muitas lutas

Marina Silva é o rosto do partido Rede Sustentabilidade. A sua história é feita de lutas. Nasceu nas matas do estado do Acre, em 1958, numa família de 11 filhos. Quis ser freira, só aos 16 anos aprendeu a ler, foi empregada doméstica para pagar os estudos. Formou-se em História, em Teoria Psicanalítica e Psicopedagogia. Conheceu o líder seringueiro Chico Mendes, que lutava com unhas e dentes contra o desmatamento da Amazónia, num curso de liderança sindical rural. Abandonou a vida religiosa para se dedicar à luta social e ajudou a fundar a Central Única dos Trabalhadores.

Filiou-se no PT, foi eleita vereadora em Rio Branco. Em 1994, com 36 anos, chegou a Brasília como a senadora mais jovem da história da República. Foi ministra do Meio Ambiente de Lula da Silva de 2003 a 2008, pediu a demissão alegando dificuldades dentro do governo para dar seguimento à agenda ambiental que tinha definido. Em 2009, deixou o PT e dias depois filiou-se no Partido Verde (PV), pelo qual se candidatou à presidência do Brasil em 2010. Conseguiu 19,6 milhões de votos, 20% da votação, mas não passou ao segundo turno. Em 2011, deixou o PV. Em 2014, foi candidata à presidência pela Coligação Unidos pelo Brasil. A campanha foi muito dura, mesmo assim, conseguiu 22,1 milhões de votos, 22%. Mais uma vez, não passou ao segundo turno da votação.

«Não existem salvadores da pátria»

O seu percurso tem-lhe valido reconhecimento internacional. Como ministra criou 25 milhões de hectares de novos parques naturais no Brasil. Em 2010, a revista Foreign Policy colocou-a na lista dos principais pensadores globais. Em 2014, o jornal inglês Financial Times elegeu-a como uma das mulheres do ano.

Em 2012, na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, carregou a bandeira juntamente com Ban Ki-moon, então secretário-geral da ONU, entre outras personalidades. Em 2007, a ONU declarou-a uma das embaixadoras da Terra. Nesse mesmo ano, o jornal britânico The Guardian elegeu-a como uma das 50 pessoas capazes de salvar o planeta.

Uma grande responsabilidade? «É uma escolha simbólica», responde com um sorriso. «A mudança que o mundo precisa terá de ser feita por todos, não existem salvadores da Pátria, é preciso que tenhamos uma ação integrada de governos, empresas, cidadãos, académicos, pessoas de todos os setores.»