Mansinhos é que nos querem bem

Notícias Magazine

Reparei nisto no dia em que a SIC fez 25 anos. A primeira notícia do primeiro bloco noticioso da primeira televisão privada em Portugal foi sobre a luta contra as propinas. Estávamos em 1992, o ano de aurora das contestações estudantis da minha geração. A década de noventa ficou marcada pela voz estudantil nas ruas. Primeiro contra a PGA, depois contra as propinas, depois por mais bolsas para as famílias a quem não cabia no orçamento pôr um filho a estudar.

Aquela notícia da SIC falava de um plenário de alunos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, que foi precisamente onde estudei. Nesses anos, a secção da Avenida de Berna da Universidade Nova de Lisboa era o olho do furacão. Todos os dias entrávamos pelo portão e recebíamos uma série de panfletos. Boicota. Protesta. Recusa. Revolta‑te. Estudar ali, naquele tempo, fervia.

A maioria dos meus colegas eram os primeiros na família a poderem ir para a universidade – e eu também. A massificação do ensino superior em Portugal só tinha arrancado há um par de dias. Passávamos horas na esplanada a discutir o absurdo que havia naquelas limitações que os executivos de Cavaco Silva, primeiro, e de António Guterres, depois, queriam impor ao ensino em Portugal. O país precisava de quadros técnicos como de pão para a boca. Aqueles governos, dizíamos e gritávamos, não tinham educação.

Ganhámos o primeiro combate contra a PGA, o governo não teve outra hipótese senão ceder depois de ordenar uma carga policial brutal sobre os estudantes em frente à Assembleia da República. Mas havia as propinas, e contra elas uma Constituição que assegurava a gratuitidade do ensino. Essa guerra nós perdemos e lembro‑me perfeitamente de sentir que a estávamos a perder.

As televisões caçavam inevitavelmente os que de entre nós preferiam ir para as manifestações aviar litrosas de cerveja. Mostrámos os rabos à ministra para dizer que não pagávamos. Chamaram‑nos geração rasca. Se conseguimos ganhar a guerra da PGA pela opinião pública, também foi por perdermos a opinião pública que caímos nas propinas. As causas só vingam quando contagiam os que ficam em casa a ver o circo.

É certo que a austeridade trouxe o país de volta às ruas para protestar. A primeira manifestação de grande impacto, a da Geração à Rasca, a 12 de março de 2011, criou uma onda de indignação que se prolongaria pelo ano e pelo governo seguinte. A 14 de novembro do ano seguinte (e depois do maior protesto de sempre em Portugal, em setembro) a contestação esfumou‑se quando um grupo de protestantes de rosto tapado incendiaram caixotes de lixo e passaram horas a atirar pedras à polícia em frente ao Parlamento. Nesse momento, os indignados perderam a opinião pública. E a contestação parou.

Há dias, depois da manifestação contra os incêndios, um antigo colega de faculdade comentava que as pessoas que vira nas manifestações contra os incêndios lhe pareciam as mesmas que vira nos protestos de 2011 e 2012, que por sua vez são as mesmas que protestavam nos anos noventa contra as propinas. «Não vês quase ninguém entre os 18 e os 35 anos», dizia. Pus‑me a pensar e dei‑lhe razão. E é por isso que agora escrevo sobre isso.

A indignação das redes sociais, que é a que temos hoje, é furiosa e rápida, mas não é visível. Então passaram 25 anos e eu acho que está na hora de reparar uma injustiça histórica: a minha geração, ao contrário do que a história lhe chamou, foi tudo menos rasca. Rasca, verdadeiramente rasca, é não lutar.