Dentro da loucura do futebol cabe tudo

Notícias Magazine

Ensaio de Luís Freitas Lobo

Chamam-lhe o «mundo do futebol» como se fosse um «mundo paralelo». E, na prática, tem mesmo um universo próprio. O adepto (e quem o instrumentaliza) é o grande cúmplice de toda essa realidade construída porque lhe falta visão periférica. Quando se trata de ganhar e ver o adversário perder (as duas coisas têm igual importância e a ordem correta talvez seja a inversa) passa por cima de todos, da forma, do estilo, da memória, da ética. O sentimento que faz a primeira aproximação ao futebol, a noção ancestral dos «onze da tribo» como escreveu em crónicas o mexicano Juan Villoro, faz do clube um território ideal de partida para as emoções e ações mais primárias, selvagens e excessivas. Instrumentalizar esta essência de comportamento é levar o futebol para um «local estranho», o território da loucura em que parece que os jogos e os clubes nascem do tal «mundo paralelo», sem entender que todos que o rodeiam (jogadores e treinadores, dirigentes e jornalistas) até o jogo em si mesmo, vêm de um local muito próximo (a importância das emoções) e vão terminar noutro mais eterno (a importância da memória). Tudo, portanto, demasiado humano.

Dentro da loucura do futebol cabe tudo: paixões, emoções, sonhos, pesadelos, ódios, revoltas, opiniões, polémicas.

Não existem, em absoluto, vencedores e derrotados no futebol. Através das décadas, todos, cada qual no seu tempo, conheceram a glória ou o fracasso. Quando cada uma dessas sensações acontece, parece sempre a primeira vez. O adepto, mesmo que tenha perdido e desesperado no jogo anterior, quando entra no estádio tem sempre uma sensação de «renascimento da ilusão». Pode estar nervoso mas uma indescritível sensação de esperança e coragem volta a entrar dentro dele para vencer o adversário, mesmo que seja o grande rival. O seu objetivo é, no fim do jogo, voltar a ter a sensação de poder. Não existe nada humanamente mais apelativo ou afrodisíaco do que isso. E o futebol dá a qualquer pessoa essa possibilidade todas as semanas. Como se pode combater isso? Não pode.

Dentro da loucura do futebol cabe tudo: paixões, emoções, sonhos, pesadelos, ódios, revoltas, opiniões, polémicas. Tudo pode ser usado para sentir e falar de futebol (mesmo que em alguns casos a bola e os jogadores já tenham, há muito, desaparecido do debate). Porque todos aqueles sentimentos como que renascem todas as semanas. De forma diferente ou no local oposto em que estavam na semana anterior. Porque, a cada semana (ou três dias) há um novo jogo, um novo desafio, um fenómeno de conflito social-pessoal contínuo e em permanente mutação. Sempre foi assim. Ou seja, dentro do campo, o futebol não mudou (tirando, claro, questões táctico-técnicas do jogo que não cabem nesta fotografia emocional para além do relvado). Os meios ao seu dispor é que mudaram e os amplificaram.

Em Portugal, o berço da ideologia portista nascida nos finais dos anos 1970 teve uma estratégia de revolta contra o inimigo sulista e seu centralismo. Na história ibérica, como se fosse uma espécie de sósia ideológico do Barcelona, a sublimação épica do povo catalão num campo de futebol como um dia lhe chamaram e que sempre lutou contra a que foi considerada equipa do regime, o Real Madrid. Não é possível, no entanto, fazer esse transplante de «duas nações» para a nossa realidade.

Falar sobre futebol é falar sobre paixões e as paixões são sempre arrebatadoras. Exageradas.

Em Espanha, a Catalunha difere claramente do resto da Espanha. Os movimentos independentistas continuam latentes até na forma como Piqué levanta a sua voz catalã em defesa dos seus direitos antes dos clássicos com o Real e até se debate, nesse contexto, a legitimidade da sua continuidade na seleção espanhola. Em Portugal não é possível, hoje ou historicamente, falar em povos distintos no Norte e no Sul, nem isso parece importante tal a forma como todas essas teorias estão, no nosso microcosmos futebolístico, ultrapassadas por outras sucessivas polémicas e debates diários sem, no entanto, nunca ter deixado de existir a luta pela chave do centro do poder. O adepto segue tudo isso com emoções intencionalmente descoordenadas.

Falar sobre futebol é falar sobre paixões e as paixões são sempre arrebatadoras. Exageradas. Cada país tem as suas tais «especificidades emocionais» e forma de as exteriorizar conforme a estratégia de comunicação dos clubes e quem os segue mas, num tempo de «globalização», essas diferenças de identidade esbatem-se. Diria até que não existe atividade que se tenha integrado e adaptado melhor à «globalização» do que o futebol (para o bem e para o mal). Os heróis saltam hoje fronteiras com uma facilidade imediata. A informação tornou-se uma «metralhadora» de sensações e não de notícias. Até confundir a mente. Alucinando-a. A «clubite» é como uma obsessão que enjaula o terreno mental. Esconde (no sentido literal) a civilização.

Há algo que o futebol atual consagrou através do impacto da internet e das redes
sociais: a verdade vende menos.

Não procurem racionalizar as emoções. Dessa forma, nunca entenderão a loucura do futebol. O adepto não vai ao futebol para pensar. O adepto vai ao futebol para atirar de dentro dele para fora os seus sentimentos mais primários. Podem estranhar que o diga, mas nada disso nos deve preocupar. O mais grave é quando vemos que essa falta de visão civilizada tem como origem as direções dos clubes que os instrumentalizam (e impulsionam constantemente). O facto de este ensaio chegar até ao leitor na forma de papel – e só depois disso estará online – já o torna quase num objeto raro e exótico. Dizem que vai acabar.

Há algo que o futebol atual consagrou através do impacto da internet e das redes
sociais: a verdade vende menos. A mentira é um produto lucrativo. E assim se constrói em torno do futebol e da loucura (genuína, fabricada ou impulsionada) do adepto a sua nova empresa produtiva. Sem olhar a meios. Passamos, num ápice, do mundo a preto-e-branco para o mundo da alta definição, mas, irónica e paradoxalmente, passamos a ver pior as coisas. E a contá-las com maior deturpação e poder de convencimento. O adepto como «ser não pensante» encontra neste contexto o habitat ideal para crescer.

Em suma, o futebol (o jogo e como ele se vive durante a semana) tem muitas formas de ser visto e sentido. Gosto de resgatar sempre a teoria de Javier Marias, escritor espanhol, autor do profundo Selvagens e Sentimentais, para quem «o futebol é a recuperação semanal da infância». Esse lado romântico é, porém, para quem o vive de perto, cada vez mais uma «guerra perdida». Não há nada, porém, de que eu goste mais do que «causas impossíveis». E é assim que vou continuar a lutar por o sentir. Até chegar ao local em que o meu «sistema emocional» se restabeleça. Ou seja, «noutra vida».

LUÍS FREITAS LOBO

(Foto de Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Começou n’ O JOGO, passou pela Revista Mundial, Público, Expresso e A Bola. Na rádio, foi comentador na Antena 1, na televisão esteve na Sic-Notícias e RTP. Atualmente escreve para O JOGO, é comentador da Sport TV e da TSF. É autor de Os Magos do Futebol (ed. Bertrand, 2002) e O Planeta do Futebol (ed. Prime Books, 2009).