Lisboa, hoje

Notícias Magazine

Ainda há pouco Lisboa só era grande pela memória difusa, ou era remexida pela revolta dos seus escritores contra o bocejo. Púnhamo-nos a adivinhar que havia algures nas costas da cidade um rio de onde se partiu mundo fora. Ou folheávamos Nuno Bragança (A Noite e o Riso) e nos convencíamos que Lisboa era «livre e solta como um coelho corre o mato ao cair da tarde.» Depois, abríamos os jornais e líamos as polémicas: «Os empregados do Nicola, no Rossio, recusam-se a trabalhar ao fim de semana.»

Bons tempos, dizem alguns (hoje o Nicola está sempre aberto), de quando Lisboa era um cemitério sem prazeres. Mas com as páginas iluminadas pelo grande Nuno Bragança podíamos ver os bordéis do Intendente onde a rapaziada ia «pescar pegas» e levá-las para os descampados do Cabo Ruivo. Ou divagarmos com o génio de José Cardoso Pires, que divagava com Pessoa ao balcão do Bar Americano, «às horas litúrgicas dos morning drinkers, alinhado ao balcão entre os clientes de pé» (Lisboa, Livro de Bordo).

E desse bar, no Cais do Sodré, sempre com livro do Cardoso Pires em punho, passávamos ao fronteiro, ao British Bar, onde os ponteiros do relógio de parede andam às arrecuas. Imaginativo até mais não, o escritor chama-lhe «relógio caranguejo», para despistar o seu real andar para trás, quando a marcha nem isso era, era para o lado, definindo a angústia dos seus cidadãos a viver na cidade paradinha de todo. Tão paradinha quanto, ainda hoje aos domingos, o Café Martinho que teve lá dentro Fernando Pessoa sentado.

Quem o quiser ver, abrigue-se sob as arcadas cheias de gente a passar, espreite pelos vidros das portas cerradas e adivinhe Pessoa, três dias antes de morrer, a tomar café com o Almada Negreiros que haveria de o pintar e voltar a pintar. No Martinho, que se chama assim por causa do Martinho Bartolomeu Rodrigues, o antigo dono que tinha cinco poços em Santo António da Neve, na Serra da Lousã, de onde os carros de bois traziam, chiando por 200 quilómetros, os blocos de gelo para os gelados do verão – há mais de século e meio. Hoje, numa manhã de domingo, depois de espreitar o café fechado, pode-se escolher uma dezena de gelatarias vizinhas. Lisboa, em cada esquina uma geladaria amiga.

Pelas portas fechadas (poucas) e as abertas (muitas ou, segundo alguns, demasiadas) dos seus cafés, podemos medir a discussão que vai para aí. Logo agora, chegados os santos de Junho que demoraram sempre a partir. É Lisboa mexida a mais? Demasiada gente? Muitos forasteiros para incómodo dos indígenas? «Arraial, arraial! Por El-Rei de Portugal», era o grito popular de entronização dos reis de Portugal, por vezes (por exemplo, com D. João I) contra a invasão dos estrangeiros. Hoje as hordas vindas de fora são pacíficas e proveitosas, e os arraiais e as marchas chamam por elas.

Lisboa discute-se e a discussão instala-se, impertinente, como o barulho das rodinhas de malas turistas sobre as pedras da calçada. «É demasiado!», diz-se como sempre pelo Natal, qualquer um, o comerciante, todos, se queixa à repórter da TV: «Este ano isto está muito malzinho…» É demasiado, diz-se dos turistas, ao mesmo tempo que se empocham as notas pelo aluguer dos quartos, pelo cone dos gelados (e bons como nunca foram, exceto no cantinho cascalense que era o Santini), pela cerveja a rodos, pela esperança de sairmos do «lixo» a que as agências de notação nos votaram. E, para já, um balanço: que bom Lisboa discutida! Que bem melhor do que antes, quando ela era só comentada pelos escritores.

De Lisboa requestada pelo mundo, tenho um sonho. Falta que o rio lhe (ao mundo) e nos (a Portugal) ensine aquele sermão do Padre António Vieira sobre o destino dos portugueses: «Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra.» Até lá, ninguém me convence que são demasiados os que nos visitam. Encha-se o Tejo de histórias.