Lições de vida num bar americano

Notícias Magazine

Vou contar-vos uma história que parece um filme mas é verdadeira. Passa-se num pequeno bar, o Showtime em Washington D.C.. Daqueles a que os americanos chamam
«dive bars»: música demasiado alta para o espaço apertado, tudo um pouco sujo, cheiro azedo de bebida derramada, paredes encardidas, bebidas de nomes estranhos, escritas em ardósias, cervejas artesanais com rótulos coloridos, bourbon, preços baratos e sempre muito boa música. Um bar de bairro, onde chegam a pé os vizinhos do bohemian chique Bloomingdale, no norte da cidade que começa a gentrificar-se.

Ninguém espera surpresas, o quinteto residente toca um funky jazz clássico, despretensioso e alegre. Mas estamos na América, onde, lá está, os filmes acontecem – nunca percebi o que é causa e efeito, mas já me aconteceu tantas vezes que me resignei à dúvida. Viro-me, com o gin, e a palhinha do gin é substituída por um acrónimo: «Wtf?» nos meus lábios.

A banda tem cinco elementos e, nas teclas… uma velhinha. Velhinha mesmo. Rugas e cabelo branco que levou rolos, blusa de florzinhas abotoada até ao pescoço. Abana a cabeça, dedos esguios no piano, os olhos atentos a controlar o baixo. Uma verdadeira nota fora de tom.

Mas Alice Donahue tem 85 anos e é tantas lições de vida que nem sei por onde começar. Talvez pelo nome do grupo – Granny and the boys – no qual ela assume a sua idade, ao contrário do que a acusava a cunhada, que quando soube que ela ia tocar disse que estava a ter uma «adolescência» tardia. E isso foi quando ela tinha 62 anos, viúva, quatro filhos criados, e voltara a aprender música.

Foi na faculdade que começou a aceitar tomar com Richard Lynch os vários cafés que vieram a dar na banda actual, e numa relação que quebra fronteiras e muitas das regras da atual sociedade americana. Richard é negro, 20 anos mais novo, e uma vida de jazz – tocou com Aretha Franklin e Roberta Flack.

Alice é mulher, 20 anos mais velha, branca, e sempre se dedicou à música clássica. «Os músicos não reconhecem a cor da pele, isso não entra na música. Nem a idade», disse Alice numa entrevista, varrendo todos os preconceitos com que lhe chegam carregadas as perguntas que lhe fazem.

E eu, que não lhe fiz perguntas, enquanto colocava uma nota no frasco a que ela chama fundo de pensão, agradeci-lhe silenciosamente manter viva a minha América. A da união e da mistura. Da revolução que se faz na vida privada, mais através dos actos que das palavras. Ou na arte, através da música que quebra regras sem ferir ninguém. A da meritocracia, onde cada um pode ser o que quiser. E a da amizade franca, guiada por valores humanos. Ou por esta crónica onde cabem tantas destas coisas dentro.