Je suis demissexual

Notícias Magazine

Bastaram meia dúzia de palavras em voz alta para de imediato se multiplicarem perguntas e comentários pela redação. Demissexual? Que é isso?

Eu explico. São pessoas que não sentem atração pelas curvas de Scarlett Johansson, pelo agitar de ancas de Beyoncé ou pela sensualidade de Sara Sampaio. Que não suspiram ao olhar para Ryan Gosling, não ligam aos bíceps de Cristiano Ronaldo nem querem saber do olhar penetrante de Idris Elba. A beleza física não lhes diz nada e nunca quererão beijar alguém num primeiro encontro. Sexo, só depois do amor. Ou, dito por palavras mais científicas, só depois e estabelecida uma ligação emocional.

Difícil é identificar um padrão no intervalo entre conhecer alguém e sentir desejo físico. Dizem os especialistas sobre o tema que o tempo dessa ativação é muito variável. Pode acontecer em dias, como pode demorar meses. Até aqui nada de novo, diria eu.

Assim não pensam os investigadores que têm vindo a desenvolver o conceito ou ativistas que promovem informação sobre ele, em blogues e sites especializados. E navegando pelo mar de explicações fica a perceber-se que obviamente a demissexualidade sempre existiu. Apenas não havia um termo para a descrever.

As questões da identidade de género e da identificação sexual estão na ordem do dia. E os termos multiplicam-se, numa fúria de encontrar classificações para tudo. Essa catalogação enriquece-nos? Aumenta a nossa capacidade de entender a pluralidade e a diversidade? Não sei se há resposta imediata, em matérias tão sensíveis. Mas desconfio sempre do excesso de gavetas e de nomes para as coisas. Porque as gavetas compartimentam e separam. Se estás nesta, não podes estar naquela. Ao classificar, excluo o que não se encaixa na definição.

Se há lição que temos aprendido (ou devíamos) é que a orientação sexual, a vivência da sexualidade e a noção de género são fluidas e há muitas pessoas que mudam ao longo da vida. Por vezes em processos complexos de autoconhecimento e de autoaceitação. Mas mais dinâmica ainda é a expressão do desejo. Acontece nem sequer nos determos sobre o que o faz mexer, variar e morrer. O que as relações nos ensinam e nos fazem aprender. O que muda quando também nós mudamos.

O que mais estranho, ao aprofundar a leitura sobre a demissexualidade, é a forma como quem assim se classifica fala da atração associada à vinculação afetiva como algo “fora do normal”. Desde logo porque norma é precisamente o que o apelo à inclusão vinca não existir. Mas porque, além disso, banaliza a ideia de que é normal sentir uma vibração perante um corpo desconhecido.

Vivemos rodeados de imagens e discursos que enfatizam o lugar da sexualidade. Dão-se receitas para ser melhor amante, publicam-se estudos sobre os países com maior atividade sexual, estuda-se a relação entre a alimentação e o sexo, a cor dos olhos e o sexo, o estado do tempo e o sexo. Mas mais do que nunca há uma enorme gama de perspetivas sobre a sexualidade e a forma de a viver. O que é normal? Desconheço. Uma coisa é a inclusão. Faz bem o Governo em promover, como acaba de anunciar, campanhas contra a discriminação no que diz respeito à identidade de género. Outra, bem diferente, é alimentar, numa atitude supostamente moderna, preconceitos quanto ao que é a norma. Eliminar estereótipos não é apenas aceitar diferenças, mas também deitar abaixo ideias feitas sobre o que é maioritário. Se ter na afetividade a chave maior para o sexo é ser demissexual, acho que somos muitos. Aumentem lá o tamanho da gaveta, se não se importam.

[Publicado originalmente na edição de 19 de fevereiro de 2017]