Homenagem a Rosa Lobato de Faria

Notícias Magazine

Entrevista de Catarina Pires
Fotografia de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Podia ser a personagem de um dos seus romances. Menina de boas famílias, muito bonita e bem comportada, teve uma infância feliz no Alentejo e passou a adolescência no Colégio de Odivelas, onde estudou, interna. Casou «em branco» aos 19 anos e aos 25, com três filhos, decidiu fazer uma revolução e escrever ela a sua vida, mesmo que direito, por linhas tortas. Vendeu enciclopédias, televisões, comida para fora, foi locutora, declamadora, atriz, poetisa, letrista, guionista. Voltou a ser mãe, voltou a casar, é avó de onze netos. Despertou paixões, apaixonou-se, sofreu, chorou, sabe o que é a vida. E um dia, aos 63 anos, descobriu-se escritora, com O Pranto de Lúcifer. Doze anos depois, já escreveu dez romances e um livro de contos para adultos, além dos livros infantis. Alma Trocada é o seu mais recente romance e vai ser lançado no fim de setembro. [Rosa Lobato de Faria morreu a 2 fevereiro de 2010, aos 77 anos, e publicou mais dois romances: A Estrela de Gonçalo Enes (2007) e As Esquinas do Tempo (2008)]

«Tenho impressão que sei até onde posso ir, e não é muito longe», dizia aos 40 anos, em 1973, ao Diário de Lisboa, na altura locutora e declamadora, ainda sem qualquer escrito publicado. Foi mais longe do que pensava ou estava só a ser modesta?
Não, não estava a ser modesta, não sou modesta. O que me aconteceu, e isso não podia prever, foi que ganhei uma nova vida quando descobri que era capaz de escrever romances. Isso só aconteceu em 1994, com o Pranto de Lucífer. Foi um presente que a vida me deu, completamente inesperado, e que me cumulou de felicidade. Em 1973, pensaria eu que os dados já tinham sido todos lançados, mas não, e é isso que a vida tem de surpreendente e de maravilhoso. De repente, vinte anos depois descubro em mim uma capacidade ignorada. Embora tivesse escrito toda a vida, não me achava capaz deste complicado exercício de pesquisa e análise, que é um romance. Como escrevia poesia, considerava que era essa a minha forma de expressão, uma coisa que não requer o mais pequeno trabalho, o poema vem ter com a pessoa, a pessoa diz «Olá, poema, ‘tás bom?, como és?, és assim?, o.k., escrevo-te aqui num papel e adeus, não se pensa mais nisso».

Para a maioria dos escritores, a poesia é o mais difícil.
Também não sou uma grande poetisa, não é? Mas é assim que se passa, o poema vem pronto ter comigo, toda a vida veio. Escrevi quilos e quilos de poemas, e portanto ganhei uma intimidade e uma cumplicidade com a língua que me permitia escrever qualquer coisa rapidamente, sem ser preciso aprofundar nada. Um dia, milagrosamente, porque isto tudo é um mistério extraordinário, dou comigo a escrever um romance. Primeiro não sabia de que se tratava, escrevi, escrevi, e quando cheguei às 240 páginas A4 pensei: «Isto se calhar não é bem um conto, nem uma crónica, nem um poema». Pois, afinal, era um romance, o Pranto de Lucífer, no qual pensei que tinha posto tudo o que sabia e tinha aprendido naqueles meus 63 anos de vida. Mas entretanto não sei o que me deu, dá impressão que havia um botão no meu computador no qual nunca tinha carregado e um belo dia veio o anjo que me assiste, premiu o botão e desataram a sair romances. Doze anos depois, já escrevi dez romances e um livro de contos para adultos. Não contando com as histórias infantis, que isso é outra área. Estranho, no mínimo. É estranho, mas é tão consolador, tão fantástico… e olhe, afinal, sabia mais coisas do que pus no primeiro romance, fui escrevendo, fui aprendendo, fui descobrindo dentro e fora de mim imensas coisas interessantes.

Consegue explicar como?
Fiz questão de nunca parar de pensar. Esta coisa de as pessoas aos setenta anos já estarem velhas e sentarem-se numa cadeira à espera de morrer não faz bem o meu género. Por isso, toca a fazer o que vim cá fazer, que foi escrever. E é isso que tenho feito, com muito entusiasmo e alegria.

Ainda acha que está a cair na armadilha da sua enorme facilidade de escrever, como disse numa entrevista ao DN?
Isso disse-me uma vez o Saramago, disse que eu era vítima da minha facilidade.

Em que sentido?
Talvez ele achasse – embora não seja um leitor das minhas obras, mas conhece, sobretudo a poesia – que eu devia aprofundar, fazer um exercício de análise. Penso que era uma advertência: «Rosinha, tem cuidado, não escrevas a primeira coisa que te vem à cabeça». Só que a minha maneira de escrever é assim, entro numa espécie de transe e tudo o que acontece naquela plataforma meio onírica é de outro mundo, rege-se por outras regras. A Irene Lisboa dizia: «a minha mão direita sabe muito mais do que eu», comigo acontece um pouco isso, escrevo coisas que nem sei onde vou buscar, nem o que me motiva a escrevê-las. O livro nasce na minha cabeça a partir de uma pequenina ideia que me visita, não sou eu que a procuro. Não devemos procurar os livros, temos que esperar que eles nos procurem. Assim como não é bom falar do livro que estamos a escrever, porque ele não gosta, é um segredo entre ele e eu, não deixo ninguém lê-lo enquanto não o acabo. É uma coisa um pouco culpada, como se o livro fosse um amante que quero esconder de todos.

É esse estado de transe, quase onírico, como descreveu, que a faz escrever o sexo com mestria?
Não sei. O que lhe posso dizer é que em cada livro sou cada uma das personagens. Limito-me a contar as suas sensações, as suas emoções, as suas intenções. E nunca as julgo, elas são o que são.

Este mês vai lançar o seu mais recente romance, A Alma Trocada, sobre os amores e desamores de Teófilo. Como é que foi então entrar na pele de um homossexual?
É muito fácil, ele gosta de homens e eu também.

Não seria preciso gostar antes de mulheres para perceber o que ele sente?
De maneira nenhuma. Acho que é muito mais parecida a relação de uma mulher com um homem com a relação de um homem com um homem do que a de uma mulher com uma mulher.

Este livro apareceu-lhe como?
Exatamente como os outros. Foi como se uma voz, lá nessa tal plataforma, me dissesse: «dá voz aos homossexuais, fala por eles». O Teófilo precisava de voz, era preciso percebê-lo e deixá-lo falar e foi isso que fiz. Era uma história que me apetecia contar.

Porque é que no fim obrigou o Teófilo a ir para a cama com uma mulher?
Não obriguei, ele é que quis ir, para grande surpresa minha, devo dizer-lhe. Mas ele quis ir, começaram a dizer-lhe que não podia morrer sem experimentar e a Dêdê convenceu-o, foi mérito dela. Ela era um bocado andrógina, diga-se de passagem.

Os seus romances são atravessados pela paixão. Os seus personagens amam desesperadamente. A Rosa é uma apaixonada?
Percebi que todos os meus livros são sobre a paixão quando escrevi A Trança de Inês. Não queria escrever aquele livro, contar outra vez a história dos amores de Pedro e Inês, que é deslumbrante, mas que outros escritores, melhores que eu, já contaram. Então, dizia assim: «Ò livro (sim, eu falo com os livros), vai ter com um escritor que seja historiador», e o livro: «escreve-me, escreve-me, escreve-me», que tempos nesta teima, até que eu: «que chato, pronto, está bem, escrevo». Pus-me a pensar de que maneira havia de pegar na história, andei ali um mês a meditar, todos os dias, todas as horas, sem fazer mais nada, até que conclui: esta é a história de uma paixão e por mais que tudo mude, os tempos, as circunstâncias, a sociedade, os interesses, a paixão nunca muda, mantém-se intacta. E de repente percebi: só escrevo sobre a paixão.

Mas é uma apaixonada ou não?
A paixão é uma doença, e tenho pena das pessoas que nunca a tiveram, porque é bom tê-la, mas hoje em dia seria uma desgraça apaixonar-me. Aos 20 não se ama como aos 45 ou aos 75, que tenho hoje. Já não tinha estrutura para aguentar essa doença, morria. Dói muito, é violento, mas aos vinte anos é extraordinário, é redentor. E o que se aprende… Outro dia, num programa de televisão em que participei, ligou para lá uma senhora que dizia que nunca tinha tido uma paixão assolapada por ninguém, toda a vida tinha sido felicíssima com o marido, só tinha conhecido aquele homem, e eu tive imensa pena dela porque se não sofreu, não se apaixonou, não chorou de raiva, nem de ciúmes, nem de insegurança, nem de abandono, sabe lá o que é a vida! Isto tudo para dizer que sim, conheci a paixão, e escrevo muito sobre ela. Que diabo, parece que não sei escrever sobre mais nada, mas não me importo.

Onde vai buscar a matéria de que são feitos os seus romances? Depois daquele estado de quase transe que lhe traz a ideia como é o processo de criação? Como é que enche a ideia?
Escrevo à mão, tenho o título, tenho o final do livro, e ali pelo meio há-de acontecer a história, da qual tenho uma vaga ideia. Ao começar a escrever, é como se estivesse a ver um filme, tudo aquilo começa a aparecer, e eu chego a sentar-me a escrever para ver o que é que vai acontecer hoje.

Como nós quando o lemos…
Sim, faço a leitura da minha própria criação. Quase não emendo, é raro emendar. Às vezes até tenho uma certa vaidade em mostrar os meus manuscritos, sem emendas. Perguntam-me «então, e o rascunho, deitaste fora?» E aí tem, passei a vida a escrever poesia sem saber que era para escrever os meus romances. Costumo dizer que a poesia foi o meu T.P.C. [trabalhos de casa].

A infância é determinante no destino de todos os seus personagens. A sua infância foi determinante para o seu destino?
A infância é a única coisa autobiográfica nos meus livros. Tive uma infância muito feliz e isso é um privilégio. Era outro tempo, sabe? Passei um ano no Alentejo, com os meus tios, e aqueles cheiros, aqueles lugares, aqueles silêncios, tudo isso enriqueceu-me muito, trago sempre a minha infância comigo.

No tacanho Portugal dos anos sessenta, casada e mãe de três filhos, decide sair de Évora e ir tirar um curso de guia intérprete em Lisboa e começar a trabalhar. Um escândalo a que se seguiria outro, o da separação.
Eu lia muito e fui percebendo que era uma estupidez aquele tipo de vida, «agora casas-te com este e tens que o gramar para o resto da vida». Tinha três crianças, mas achei que isso não devia ser um obstáculo a que eu vivesse a minha vida, até porque os meus filhos seriam mais inteligentes e menos preconceituosos se rompesse com aquelas regras sem sentido. Tinha que experimentar as minhas próprias asas e saber quem era e foi o que fiz. Não foi fácil.

Descobriu quem era?
Levei tempo… mas hoje sei quem sou.

E até então quem foi?
Era uma pessoa à procura, não era conformada, nem feliz, nem contentinha, nada disso. E hoje tenho uma serenidade muito grande por já saber quem sou e o que quero.

Veio com os seus filhos para Lisboa, sozinha, vendeu enciclopédias, televisões, comida para fora, foi locutora, declamadora, procurou emprego como empregada de balcão. Virou a vida do avesso. Onde foi buscar a força?
Tinha três filhos, tinha de lhes dar de comer, e portanto não havia cá esquisitices, desde que fosse trabalho honesto, estava disposta a fazer. Sempre tive muita energia. Mas foi difícil. E depois havia uma coisa que jogava contra mim, que era o facto de ser muito bonita. As pessoas pensavam: se é bonita não pode ser inteligente, ou competente – hoje já não é tanto assim – e eu via-me muito aflita para arranjar trabalho. Mas, enfim, as coisas lá foram acontecendo e essa luta também foi muito importante. Aprende-se imenso com as vitórias e com as derrotas.

Foram mais as vitórias ou as derrotas?
Cinquenta, cinquenta. Mas isso já esqueci.

A sua atitude perante a vida influencia a forma como a crítica a trata e à sua obra?
Claro que sim, mas não me importo nada. Quero lá saber, não escrevo para os críticos, escrevo para os leitores. Até porque, quando se dá o caso – raríssimo – de um crítico, em vez de pegar num livro meu com uma pinça e o meter no lixo sem o ler, resolver lê-lo, então percebe que sei escrever, que não sou estúpida e que escrevo livros interessantes. As poucas críticas que tenho são magníficas e isso chega-me. Deu brado quando o Luís Sepúlveda disse que eu era uma ótima escritora, alguns devem ter pensado: «espera lá, se calhar a mulher sabe escrever, vais ver na volta até sabe português» [gargalhadas]…

O que é que isso diz da crítica literária portuguesa?
É um bocadinho pobre, não é? Porque não me importava nada que alguém pegasse num livro meu e o lesse de ponta a ponta, o esmiuçasse e apontasse o que está bem e o que está mal. De certeza que os meus livros têm muitos defeitos. Mas ninguém faz isso, e sobretudo não fazem nada. O que me irrita são críticas, como tive uma vez, de um tipo que não tinha lido um único livro meu, mas resolveu dizer que eu encabeçava o grupo das escritoras light e que as minhas personagens tinham o cartão de crédito no lugar do coração. Quem leu os meus livros, sabe o disparate que isto é. Mandei-lhe uma carta divertidíssima, mas ele não me respondeu.

Não se leva demasiado a sério?
Não, em nada.

«Bom é ser escritor. Ler fundo na alma de todas as personagens, antecipar os seus atos e as suas palavras. Escolher-lhes o destino.», a frase é de uma personagem sua, a Camilla S. É mesmo o escritor que escolhe os destinos das personagens?
Não, elas fazem o seu próprio destino. Não se esqueça que a Camilla não é escritora.

Como é que as personagens lhe dizem que destino dar-lhes?
Fazem coisas de que eu não estou à espera, às vezes fico um bocadinho escandalizada. Por exemplo, quando a Filomena, do Prenúncio das Águas, gostava de dois homens ao mesmo tempo, um para a cama e outro para conversar, levou-me a pensar «olha, não está nada mal visto, esta Filomena não é parva de todo.» (ri). Confesso que também eu me apaixonei um bocadinho pelo Zé Nunes, que era um bronco horroroso…

Há sempre um «filho da mãe» nos seus livros.
São todos o mesmo, não é? O Zé Nunes, o Chico Russo, o Pedro, até certo ponto, na sua relação com a Inês de Castro, mas enfim, o Pedro tem outro estatuto, é rei… Acho que as mulheres gostam desse tipo de homens, não que me acontecesse, mas tenho verificado isso, as mulheres às vezes gostam de uns broncos, mas que são bons na cama, caraças (ri).

As mulheres e os homens. Neste seu último livro, A Alma Trocada, há o Tinito…
É, mas é melhor pessoa, apesar de tudo. No fim, revela-se um homem sério, capaz, tem mais qualidades do que os outros, que só tinham defeitos

Começou a escrever poemas com seis anos, mas durante muito tempo teve relutância em publicar a sua poesia. O que a fez publicar?
Considerava que publicar um livro era uma coisa transcendente, não podia de modo algum pôr-me ao nível dos grandes poetas e pensar que tinha o direito de publicar, não tinha uma obra-prima… nem tia, nem parente afastada. Mas o meu atual marido, que foi um dos mais importantes editores portugueses do século XX, fez-me ver que eu tinha de ter a humildade de publicar os meus poemas, mesmo sem serem uma obra-prima, porque tinham qualidade. Então, resolvi: «está bem, mas só publico o que escrever de hoje em diante, o que está para trás deito fora». E deitei.

Irremediavelmente?
Irremediavelmente para o lixo. Aquilo era tudo uma porcaria.

E não tem pena?
Nenhuma. Sabe que acredito muito em forças ocultas e elas não me deixavam deitar fora se aquilo fosse uma obra-prima.

O Anjo, último conto d’Os Linhos da Avó, é de alguma forma autobiográfico?
É. E ele alguma vez me deixava deitar fora se eu tivesse ali Os Lusíadas, dizia-me logo «Ó filha, olha que isso é Os Lusíadas, não me deites isso fora» [gargalhadas]

A sua filha Teresa [Sacchetti] disse numa entrevista que a mãe não tinha defeitos, era linda e perfeita, só talvez por vezes estivesse demasiado fora do mundo real. Concorda? Porquê?
Tem toda a razão. Vou lá para o meu sítio e interesso-me muito pouco pela realidade quotidiana. Tenho uma empregada extraordinária, que adoro, que quando estou a escrever põe-se ao meu lado e diz-me assim, quase ao ouvido: «Sô dona Rosinha, Sô dona Rosinha», como se me estivesse a acordar, «desça lá que eu tenho de ir à mercearia».

E quando desce, como vê a situação atual do país?
Com um enorme sentido de humor. Ou a gente se suicida ou vê com humor. Não há alternativa.

Rir tem sido para si um bom remédio ao longo da vida?
Sabe como é que se chamam os colaboradores do Sócrates? Socretinos! [gargalhada geral]. Mas veja lá, não ponha isso, que agora não se pode dizer piadas sobre o Sócrates, que vamos todos presos. [José Sócrates era em 2007, o primeiro ministro]

Ai, que a editora nunca mais lhe publica um livro…
Ninguém mais me aceita em lado nenhum. Não é engraçada? Não fui eu que inventei, mas podia ter sido. Adoro!

Escreveu o hino do CDS, escreveria o de outro partido qualquer? Do MRPP, por exemplo?
Isso também já era de mais [confunde com o PNR]: «mata-os, mata-os, que são pretos» Também não exageremos.

Não, referia-me ao MRPP, aquele do Garcia Pereira.
Ah, do MRPP, sim, até do PCP. É trabalho, encomendam-me e eu faço. Todos os partidos são bem intencionados, à exceção desses horrorosos da extrema-direita. Prometem todos liberdade, democracia, vira o disco e toca o mesmo, portanto no plano dos princípios são bons e é isso que se põe no hino. Não me custa nada fazer, quero lá saber, não sou de partido nenhum.

Escreve por encomenda?
Claro que sim. Poemas, faço imensos, nem calcula quantos… pedem-me um texto sobre o silêncio e eu: «pode ser um poema?» Se puder ser, melhor para mim, mais depressa despacho. Faço imensa coisa por encomenda, se me perguntar se é a mesma coisa que um poema que vem ter comigo, não é, é bem feitinho, mas não é a mesma coisa.

E os livros infantis como é que apareceram na sua vida?
Também foi por encomenda. Um deles escrevi-o porque uma vez fui a uma biblioteca e a bibliotecária disse-me: «Sabe que não existe nenhum livro infantil português sobre as quatro estações?» Cheguei a casa e escrevi logo As Quatro Portas do Céu, que é um sucesso. O último, Os melhores Poemas para Crescer, foi a Oficina do Livro que me pediu – normalmente escrevo para a Asa – «Oh Rosinha, escreve-nos um livrinho» [em voz de súplica], e eu escrevi. Eles são uns amores.

Tem consciência da leveza com que fala dos livros?
Nada é muito importante, para dizer a verdade. Nem a morte, exceto talvez a morte dos outros, mas a própria morte não tem importância nenhuma.

Não tem medo da morte?
Nenhum.

Já disse que era uma mulher muito bonita e despertou muitas paixões. Como tem lidado com o envelhecimento?
Muito bem. Tenho muitas teorias (ri), para tudo tenho teoria, e uma delas é que a mulher e o homem têm de ser lindos é na idade fértil porque faz tudo parte de um plano universal para a reprodução da espécie. Claro que disfarçamos com um jantar à luz das velas, etc., mas no fim vai tudo dar ao mesmo: os homens – por isso é que não acredito muito na monogamia – têm de espalhar o seu sémen no máximo de fêmeas possível – coitados, uns lá se contêm, outros não – e as mulheres a mesma coisa, no tal plano universal a mulher gostaria de ser fecundada pelos melhores machos para ter os melhores filhos. A sociedade é que não permite nada disso. Portanto, quando acaba a idade fértil, para quê fazer operações para fingir que se é nova? É ridículo. Fisicamente, cai tudo um bocado, mas em compensação ganha-se serenidade, inteligência, humor, e uma tranquilidade perante a morte que não tínhamos quando éramos novas.

Acha que a sua vida teria sido diferente se fosse feia?
Provavelmente. Não era pior, mas era diferente. O ser bonita facilitou-me algumas coisas e dificultou-me outras.

É crente. Como é a sua relação com Deus?
Olhe, é um bocado tu cá, tu lá. Acredito tanto e confio tanto n’Ele, tenho um amor tão grande por Ele, que tenho a certeza que não me abandona nunca e tudo o que me manda de bom e de mau é para o meu bem.

Isso não é um pouco fatalista: o que vem, vem por bem, mesmo que seja mau?
Não, as coisas boas e más acontecem na mesma, é muito melhor você acreditar que é para o seu bem do que pensar que é para seu mal, ora bolas! Mas sim, sou um bocadinho fatalista. Costumo dizer que sou obscurantista militante. Acredito em tudo até prova em contrário. Acreditar enriquece imenso a vida.

O que não suporta nos outros?
A incompetência.

E o que não dispensa?
Depende da pessoa e da relação com ela, mas de um modo geral a inteligência e o sentido de humor são-me absolutamente indispensáveis.

Para quando o livro das receitas que tem dado ao longo dos seus romances?
Para breve. Porém, não me considero suficiente cozinheira para ensinar seja o que for a quem sabe cozinhar. O livro de receitas que estou a pensar fazer é para quem não sabe cozinhar ABSOLUTAMENTE nada. E onde ensino tudo, o que é um refogado, como é que se pica uma cebola, tudo, tudo, tudo.

Mas é uma boa cozinheira?
Tudo o que faço é bom, mas não sei fazer tudo. Adoro cozinhar por isso é sempre um sucesso. É como os livros, aquilo diverte-me tanto a fazer, que depois quem come adora. Ponho sempre uma nota de divertimento em tudo. Faço uns arrozes maravilhosos de tudo quanto há e o meu marido, que tem imenso humor, diz sempre: «não deixem cá os guarda-chuvas que a Rosinha põe no arroz.»

O que faz no intervalo da escrita, se é que o tem?
Leio, cozinho e gasto um bom bocado do dia a sonhar. E represento, quando tenho trabalho. É divertidíssimo, mas nem sempre há, porque os atores nunca têm férias, estão é desempregados. Sabe porque é que gosto muito de representar? É que escrever, por muito prazer que me dê, é uma atividade solitária e a mim, que tenho tendência para ser bicho-do-mato – há épocas em que nem ao patamar da escada me apetece ir –, faz-me bem representar, porque é a grande paródia com os colegas e eu também gosto imenso disso. Representar é um jogo, muito parecido com escrever porque é interiorizar personagens, quando escrevo é isso que faço, meto-me na pele das personagens, de todas elas… até daquelas mães horrorosas, as pessoas devem achar que tive uma mãe horrível

Pois.
Não, tive uma mãe maravilhosa, queridíssima, que é a minha grande paixão, mas escrevo mães horrorosas porque, pelo que tenho assistido, verifiquei que há mães que são capazes de dar cabo da vida dos filhos. Com 75 anos, imagina o que eu já vi, não é?

Teve quatro filhos. Como é que viveu a maternidade?
Acho que fui uma ótima mãe, mas isso se calhar é melhor serem eles a dizer. Não fui uma mãe muito presente porque trabalhava muito, tinha que os sustentar, não é? Mas penso que lhes dei os valores essenciais. Quando fiz a minha triagem de valores e deitei fora maior parte dos que me tinham enfiado na cabeça, fiquei com poucos, mas bons. E passei-os aos meus filhos.


 

 

 

 

 

 

Rosa Lobato de Faria
LeYa celebra a autora com novas edições e sessão de homenagem

Por ocasião da celebração da data (20 de abril) em que Rosa Lobato de Faria completaria 85 anos, a LeYa relança esta semana algumas das suas obras mais importantes: às livrarias chegam agora uma nova edição, com nova capa, do romance Os Pássaros de Seda (ASA) e uma nova edição, em novo formato e com nova capa de História de Muitas Cores, integrada na Biblioteca Infantil Rosa Lobato de Faria (ASA). Na BIS, coleção de pequeno formato da LeYa, haverá nova edição do romance O Pranto de Lúcifer e a reedição de Os Três Casamentos de Camila S., obra que este ano completa 20 anos de existência.

Para assinalar a data e as novas publicações, a LeYa e a ASA organizam, na quinta-feira, 20 de abril, às 21h, na livraria LeYa na Buchholz, em Lisboa, uma sessão para lembrar a autora, juntando os seus familiares, amigos e leitores. Este encontro terá momentos de leitura de poemas de Rosa Lobato de Faria, com Vitor de Sousa, uma apresentação sobre a sua vida e obra por parte do Professor Eugénio Lisboa e ainda um momento musical com a colaboração dos netos.