Herman e Isidro: dois gigantes à conversa

Entrevista Alexandra Tavares Teles | Fotografias Gonçalo Villaverde/Global Imagens

Um é espartano, o outro sofisticado. Júlio Isidro, 72 anos, é cristão, Herman José, 63, é ateu. Apreciador de antiguidades e amante de estreias. Ingenuidade assumida versus cinismo estratégico. O prazer de ser pai versus a opção da solitude.

A formiga com 58 anos de carreira e a cigarra que já anda nisto há 42. Dois homens muito diferentes, com vidas distintas mas a mesma exigência ética e profissional, igual desprezo pela hipocrisia. Ambos generosos, com infâncias solitárias e percursos muitas vezes cruzados. Conheceram-se em 1972 e nunca mais deixaram de se gostar e admirar.

Sentámos à mesa o maior humorista português e um dos mais respeitados comunicadores da televisão nacional. Fica o resultado.

Como se conheceram?
Herman José (HJ): A minha primeira impressão do Júlio é fortíssima, fiquei fascinado. Em 1972, tinha eu 18 anos, gravei um disco estranhíssimo que passou despercebido a todos menos ao Júlio Isidro e à sua imbatível curiosidade intelectual. Convidou-me então para ir ao seu programa, Clube das Donas de Casa [Rádio Comercial] e saí de lá a pensar que se um dia tivesse algum poder seria aquela a minha atitude. Nunca dizer a um neófito ou a um sonhador «chega-te para lá que eu sou um grande artista». Isto é tão bom, tão gratificante, faz tão bem às pessoas.

Júlio Isidro (JI): Apareceste-me com o cabelo pelos ombros e com o disco. Lembro-me bem. Passaste depois, em 1980, pela Febre de Sábado de Manhã, ao vivo na Rádio Comercial. Graças a Deus, de cada vez que ias ao Nimas insubordinavas aquilo tudo. Seguiu-se o O Passeio dos Alegres, onde foste o Super Homem a atirar-se do telhado da RTP, com um chroma key a servir de cenário ao salto. Foi um sucesso.

«O Herman perguntou-me se o queria acompanhar pela província, numa dupla do género da Abbott & Costello. Eu, estúpido como um porta, recusei. Ele comprou a casa, o Rolls-Royce e eu coisa nenhuma.»

Depois desse episódio, o Herman passou a integrar o programa. Nasce aí uma personagem icónica: Tony Silva, o criador de toda a música ró.
HJ:
Foi um programa precursor na avaliação de talentos. Dessa parceria, o Júlio consubstanciou popularidade e eu ganhei, pela primeira vez, verdadeira importância. Comecei a fazer espetáculos à séria e foi com o dinheiro desses anos que comprei a minha casa.

JI: No Passeio deu-se a comunhão perfeita entre duas pessoas com muitas diferenças. A certa altura, já com o êxito do Tony Silva, o Herman perguntou-me se o queria acompanhar pela província, numa dupla do género da Abbott & Costello. Eu, estúpido como um porta, recusei. Ele comprou a casa, o Rolls-Royce e eu coisa nenhuma. O Nelito vem também dessa altura, nasceu a meu pedido, inspirado no menino que eu fui, com fatinho à marujo.

Contem-me então um episódio da vossa infância que ajude a conhecer-vos.
HJ: Filho único num oitavo andar que tem como melhores amigos e colegas do Colégio Alemão gente extraordinariamente rica. Tens de reunir imensos talentos, de te distrair a ti próprio, de fingir que és classe média, de compensar aquilo que não tens com capacidade de entreter, divertir, de aglutinar atenções. Esses anos de grande dificuldade misturada com solidão espevitaram o melhor que havia em mim.

O humor nasce da dor…
HJ: Sem dúvida. E depois dá-se este momento incrível: quando aos 18 anos todos os meus colegas receberam dos pais os seus carros maravilhosos, Porshes 911, por exemplo, eu, sem essas possibilidades, fui dar explicações. Trabalhei tanto que passado um ano pude comprar um Alfa Romeo de rico. Percebi aí que trabalhar podia resolver alguns problemas e que trabalhar muito ainda mais.

JI: Bem, se não vivi a fazer de conta que era rico, vivi pelo menos a fazer de conta que não era pobre, ainda por cima porque já tinha saboreado um certo bem estar. Nasci rico e aristocrata, mas aos 10 anos até o anel do brasão já estava no prego. A minha avó tinha umas roças em África, mas nunca foi a África nem nunca deixou que o meu pai fosse. Ora nada melhor que ser dono de uma coisa que não se conhece. Portanto, a certa altura, lá em casa comia-se com alguma dificuldade e as pratas e os cristais desapareciam. Esse miúdo, não tendo os brinquedos dos outros, à falta da bicicleta, na impossibilidade de sair ao domingo porque o único par de sapatos estava no sapateiro, inventava máquinas de projetar, desenhava os próprios filmes, fazia peças da teatro para as avós assistirem. Ia para o quintal brincar com o enorme comboio fantasma que construíra.

«Tenho um fascínio por tudo o que é muito bom. Por tudo, não só pelas coisas materiais. Ao contrário do Júlio, acabo em mim próprio, e a minha mãe não precisa de mim para nada.»

Júlio, o que achava da TV?
JI: Aos 12 anos punha-me à porta da bilheteira da Feira Popular e pedia aos casais que iam entrando que me dessem a mão. Assim entrava à borla. Na Feira, via televisão num stand mas sem me passar pela cabeça que um dia iria estar ali.

Duas infâncias com alguns pontos em comum que resultaram de maneira diferente: a um espartano contrapõe-se um apaixonado pelo luxo.
JI: Nesta idade já devia estar a gastar algum dinheiro mas continuo a pensar: «E se não chega para as minhas filhas?» Quando digo isso, a minha mulher fica muito ofendida. Sou espartano, nada dado a luxos, completamente. É extraordinário mas acho que vou morrer com dinheiro no banco.

HJ: Tenho um fascínio por tudo o que é muito bom. Por tudo, não só pelas coisas materiais. Por um maravilhoso filme ou por um maravilhoso romance. Ao contrário do Júlio, acabo em mim próprio, e a minha mãe não precisa de mim para nada.

JI: O Herman nunca fez nada de mau gosto, é um homem requintado. Sabe destas coisas de comidas, de coisas de que eu, presença assídua no refeitório da RTP onde se come por 3,5 euros, nem desconfio. Uma vez, na sala de maquilhagem, atirou-me para as mãos com um relógio «não sei quê» que custava «não sei quanto». Desconhecia. Pareceu-me apenas tratar-se de uma arma de arremesso perigosa.

HJ: É verdade, nos anos 1990 tive a minha fase futebolista. Quando vejo o Cristiano Ronaldo a mostrar o Bugatti, lembro-me de mim, nos anos 90, a dizer «olhem aqui o meu Bentley». E não tem nada de perverso nem de mau.

«Vou dizer aqui e já escrevi várias vezes no Facebook, a ver se alguém me faz desconto, que adorava ter um Jaguar. Ou um Aston Martin. Também tenho os meus sonhos», Júlio Isidro.

É apenas infantil?
HJ: É apenas infantil. Há uns anos, um artista de que não vou dizer o nome, viu-me no meu carro. «Andas nisso? Já viste o carro que eu tenho?» Tinha um Porche 928, um carro deslumbrante. A atitude dele foi tão sobranceira que quando comprei o meu primeiro Rolls-Royce «atirei-lho» à cara. Ora isto é muito infantil.

JI: Vou dizer aqui e já escrevi várias vezes no Facebook, a ver se alguém me faz desconto, que adorava ter um Jaguar. Ou um Aston Martin. Também tenho os meus sonhos.

HJ: E podias ter. Era só quereres.

JI: Ontem vesti a camisa mais feia que tenho. Diz a minha filha: «Papá, porque foi vestir essa camisa?» Digo eu: «porque me apeteceu». Responde a Sandra: «O pai vestiu esta camisa para poupar as bonitas, não vá um dia ser pobre.» Estiveram todo o jantar a gozar comigo.

HJ: Eu preciso de uma cenoura para correr atrás. Tenho com o dinheiro uma relação muito desprendida e também a capacidade de transformar um momento banal num momento de grande qualidade. Uma lata de atum e uns ovos e faço uma salada deliciosa. Tenho uma vida extraordinariamente complicada, resultado de muitos desaires. Tive um desfalque gigantesco de quase dois milhões de euros, meti-me em negócios complicadíssimos, não sou propriamente o artista rico que está à-vontade e faz o que quer e vivo sempre numa tensão. Mas não me lamento nem deixo que a conjuntura inquine cada momento do dia a dia.

E aproveita bem?
HJ: O ano passado fui fazer um espetáculo a Paris e transformei o cachet em três noites de Hotel Ritz, em viagens em executiva e em boas refeições. Não ganhei um tostão mas transformei o meu trabalho numa estadia inolvidável. Fizeram-me um triple upgrade, fiquei na suite Elton John, virada para a Place Vendôme e esses momentos ficam para sempre. Sou especialista nisso e vou ser assim até ao final da minha vida. Conhecem a história do senhor do castelo cercado pelos espanhóis? Mandou servir-lhes uma enorme empada de caça feita com os restos do trigo espalhado pelo chão e com uns pombos que mandara matar, convencendo o inimigo de que havia fartura. Sou assim e se um dia tiver de viver num sítio indigente depressa o transformarei num sítio lindíssimo. E darei um jantar fantástico, nem que tenha de ir matar pombos e apanhar farinha do chão. Falei bem, Júlio?

JI: Muito bem, Herman.

«Agora estou viciado na minha reconquista da pole position nos espetáculos ao vivo. um e-mail a dar conta da bilheteira esgotada um mês antes da atuação dá-me uma descarga de adrenalina incomparável», Herman José.

O que é hoje essencial para ambos?
HJ: Atrevo-me a responder pelo Júlio. Acordarmos com saúde e a cabeça a funcionar bem.

JI: O meu projeto da vida passa essencialmente pela família – e aqui há uma grande diferença entre nós. Vivo de uma maneira bem diferente da do Herman. Ele tem essa capacidade de reconstruir o bem estar; eu tenho a capacidade de não destruir o meu, que é circunscrito a outro tipo de coisas. O único dado que por vezes interfere com esse bem-estar é a minha enorme capacidade de indignação.

Quais os vossos pequenos prazeres diários?
HJ: Agora estou viciado na minha reconquista da pole position nos espetáculos ao vivo. Receber um e-mail a dar conta da bilheteira esgotada um mês antes da data de atuação dá-me uma descarga de adrenalina de prazer que não é comparável, hoje em dia, a nada.

JI: Tu voltaste a ganhar a pole position. E eu, nestes últimos anos, por razões que a razão desconhece, ou não, tenho estado, dizem alguns, no pico da fama – a que prefiro chamar pico da respeitabilidade. E tem sido de tal maneira que no espaço de pouco tempo fiz o Festival Lisboa Idade, um momento de prazer, e soube que a Voz do Operário, associação que me toca muito, vai aproveitar as comemorações do 135º aniversário para me homenagear. Como calculam, fiquei absolutamente fascinado.

Herman José e Júlio Isidro rendidos às selfies [Fotografia de Líbia Fiorentino].

O vosso mundo é também o da precariedade?
JI: Vivi sempre a 13 programas [número de episódios de um programa; no final ou acaba ou se faz nova temporada]. Sempre em precariedade, leia-se. Oferecia-me como voluntário para «fazer» as férias dos meus colegas, fazia o Natal dos que queriam ir para casa, trabalhava nas passagens de ano, em direto, dos hospitais de Lisboa, coisa tão agradável.

HJ: Em 1976, no início da carreira, tive a sorte de ter recebido de um senhor chamado Cipriano Costa, agente do Porto, uma carta escrita naquelas máquinas com letras encavalitadas a propor, em função do sucesso do Feliz e Contente, uma série de espetáculos no Norte. Contei ao Nicolau (Breyner): «Tenho aqui um romântico a perguntar se queremos fazer espetáculos de verão». No meio das minhas gargalhadas de desdém responde o Nicolau: «Olha, já agora pergunta lá quanto é que eles pagam». O Nicolau ganhava por mês um ordenado milionário: 50 contos. E eu, ator secundário, ganhava 9, que era um bom ordenado. Responde o Cipriano: «O maior cachet praticado neste momento é o da senhora D. Amália Rodrigues, 120 contos por mês. Mas estou convencido que convosco podemos chegar aos 100». Nem pestanejámos. Nesse verão corremos Portugal de lés-a-lés. Algum tempo depois, comprei o meu apartamento na Costa (da Caparica) e o meu Jaguar E V12 descapotável. Mais tarde, saiu-me nova sorte grande com uma coisa chamada Saca o Saca Rolhas. A estrada deu-me desde cedo alguma independência. A independência que recuperei agora. Tenho coisas marcadas até final de 2018. É um sossego.

JI: Pela primeira vez tenho um contrato [apresentar o programa Traz para a Frente] por dois anos. Comentário de uma das minhas filhas: «Papá, este ano o natal vai ser mais tranquilo».

A certa altura ambos deixaram de estar no topo da onda. Qual foi a vossa reação?
HJ: Sempre que deixei de estar no topo da onda na comunicação social e nas crónicas de opinião, o facto de manter a capacidade de ir atuar até ao Porto, Braga ou Viseu e encher um pavilhão de cinco mil lugares mitigava o desconforto. Essa onda nunca se desfez.

JI: Se estivermos a falar dos mentideros de alguma comunicação social, senti que isso aconteceu. Claro que senti. Conheço-lhes os nomes, as caras, não resisto a desejar-lhes uma vida feliz, porém que a minha seja mais ainda. A certa altura, mesmo quando me faziam elogios, nunca se esqueciam de acrescentar o «mas» ou o «apesar de».

HJ: Paga-se um preço pela longevidade.

JI: Houve momentos em que sofri imenso. Mas cheguei gloriosamente a este cabelo branco. Hoje só quero que digam que sou respeitável. De resto, tudo quanto possam dizer ou escrever sobre nós vem de pessoas em quem o público não acredita. Vivemos neste mundo um bocado falseado. Prefiro o elogio dos meus amigos no Facebook a uma crónica elogiosa.

HJ: Olha que o Facebook, bem analisado, é muito engraçado. Na nossa página todos nos adoram mas quando partilham as nossas coisas e seguimos essas partilhas descobrimos a quantidade de ódio à solta. Já me dei ao trabalho de pegar num ou noutro caso e verifiquei que pessoas que andam há quatro ou cinco anos a bajular-me com mensagens são as piores. Olhem o caso de certa cantora, cujo nome não digo. Tinha acabado de me dizer o quanto eu sou fantástico e fonte de inspiração. Pouco depois, fui dar com ela a comentar desta forma uma foto de um espetáculo no Areeiro em que estou de fato de banho, a trocar de roupa: «Que vergonha, lá está, há pessoas que não sabem gerir a decadência. Que triste final de carreira». Convencida, porventura, de que a gente não lê. Isto é um ótimo objeto de estudo e uma ótima maneira de confirmar que na natureza nem tudo o que parece é.

JI: Há nas redes sociais um efeito mimético comum à manipulação de uma multidão nos comícios. O importante é que um pequeno grupo transmita aos outros a opinião reinante. Isso incomoda-me.

«Nunca me levo muito a sério. Mesmo no meu auge absoluto, montado em viagens de avião privado e barco de vinte metros pelo Mediterrâneo, chegava aos portos de Marbella, Ibiza ou Sardenha e sentia-me um ilustre desconhecido», Herman José.

Ao contrário, como lidam com o elogio?
HJ: O elogio formal é sempre agradável. Na rua as pessoas são queridas, sempre amorosas, vêm ter connosco, dizem-nos «ai, não imagina o que gosto de si». Mas assim que viramos as costas vem a verdadeira opinião.

JI: Sou muito mais ingénuo de que o Herman, que faz da perversidade uma arma. E faz muitíssimo bem. Eu próprio já aprendi que quando do alguém diz «continua assim» o melhor é parar para pensar se estaremos a fazer tudo bem. O elogio remete-me sempre para a efemeridade das coisas.

HJ: Tenho um antídoto fortíssimo que é viajar muito. E portanto nunca me levo muito a sério. Mesmo no meu auge absoluto, montado em viagens de avião privado e navegações num barco de vinte metros pelo Mediterrâneo, chegava aos portos de Marbella, Ibiza ou Sardenha e sentia-me um ilustre desconhecido.

JI: Eu não me protegi, não preciso. Basta dizer que depois de ter feito um programa no estádio de Alvalade para 50 mil meninos, recorde que até agora ninguém igualou ou do qual se aproximou, fui comer com a equipa à Churrasqueira do Campo Grande um franguinho. É assim que sou.

É esse anti-vedetismo que lhes dá disponibilidade para recomeçarem sempre que for preciso? Até noutro trabalho?
JI: Pensei muitas vezes fazer outra coisa na vida. Gostava de ter uma oficina de automóveis antigos. É o meu sonho.

HJ: Eu seria um ótimo diretor de uma unidade hoteleira nas Maldivas.

Já sentiram desamparo, solidão?
JI: Pensei algumas vezes que a carreira tinha acabado. Algumas vezes, confesso. Porque raramente era chamado. Era eu que me oferecia e não tenho vergonha de o dizer. Depois fechava-me em casa e pensava que «talvez não». Hoje, sou muitas vezes chamado e até já me posso permitir dizer «agora não posso». Mas só muito raramente porque, de preferência, tento fazer tudo.

«Quem regressa a casa depois de um espetáculo de duas horas para vinte mil pessoas (ou mesmo 80 mil como foi o caso da passagem de ano no Terreiro do Paço), fica imune a todas agressões», Herman José.

Em Portugal, a valorização de um produto passa pela desvalorização de outro. Sobretudo o Herman sentiu isso. Falo dos Gato Fedorento.
HJ: Os Gato escreveram para mim durante seis anos e trabalhando comigo foram burilando a sua arte. Foi, portanto, sem dramas e com absoluta normalidade, que decidiram iniciar o seu percurso. Os Gato Fedorento explodem artisticamente, comigo a viver na SIC uma fase muito fragilizada. A direção mudara e o meu programa Herman SIC passou a objeto mal amado e com morte anunciada. Encomendaram-me então uma série de humor, a Hora H, que foi mal amada desde o início e acabou relegada para horários irrelevantes. Ou seja, houve uma necessidade porventura inconsciente, de deixar bem patente que «agora a época é de outros e não a tua».

Mas custa, ou não? Essa fase SIC foi dolorosa.
HJ: Claro que custa, mas, lá está, na mesma altura quem é que enchia os pavilhões em Portugal e na diáspora? Não eram os meus talentosos concorrentes, sem passado artístico aglutinador de todas as gerações, nem prática de palco, nem repertório musical, nem capacidade de cantar e tocar. Quem regressa a casa depois de um espetáculo de duas horas para vinte mil pessoas (ou mesmo 80 mil como foi o caso da passagem de ano no Terreiro do Paço), fica imune a todas agressões.

O envelhecimento não ajuda. De resto, é um grande capítulo nas vossas profissões.
HJ: O envelhecimento é importantíssimo. Tenho perfeita noção de que quando apareci n’O Tal Canal queimei todo o terreno à volta. Fui uma espécie de eucalipto. Houve até casos crudelíssimos, como o de Badaró. Tudo o que medrava sofreu quando comparado com a minha pele fresca e a segurança dos 20 e tal anos a fazer um programa diferente. Portanto, 25 anos volvidos, estou em condições de perceber o fenómeno ao contrário.

«”Esse já cá está há muito tempo”» quer dizer o quê? Que para que surja um novo humorista com a qualidade do Herman é preciso que o Herman faleça? Os cabelos brancos são um estigma do nosso país.»

E como o enfrenta?
HJ: Não deixo de me municiar de exemplos internacionais, tipos que souberam envelhecer. O comportamento do Júlio é uma espécie de cartilha com meia dúzia de indicações que deverão ser seguidas para evitar surpresas. O rigor e a disciplina que coloca em tudo, a maneira como se veste, como fala, como interage com as pessoas.

JI: A inovação que o Herman trouxe para o humor não esconde alguns grandes nomes do passado que fizeram também muito bem feito. Mas o que o Herman fez vai para além disso. Foi um momento de rutura, único no humor português. E há um argumento que não aceito e que tenho até dificuldade em rebater, que é dizerem «o Herman como humorista está velho» ou «o Júlio como apresentador está velho». Falam de quê? Do método, da forma, da mensagem? Não é da ruga, com certeza.

HJ: Sou mais pessimista e acho que a ruga tem muita importância.

JI: Sei que tem. Estou apenas a referir-me ao contraponto, às frases que estamos sempre a ouvir. «Esse já cá está há muito tempo» quer dizer o quê? Que para que surja um novo humorista com a qualidade do Herman é preciso que o Herman faleça? Os cabelos brancos são um estigma do nosso país.

HJ: Isto para dizer que a juventude é maravilhosa. Aparece uma miúda nova, despenteada com as calças rotas e diz-se «que trendy, que gira». Tem 40 anos e é «olha a velha gaiteira não tem dinheiro para comprar umas calças nem para ir ao cabeleireiro». Com os homens é igual.

Como responder a isso?
HJ: Se agora estivesse magrinho, voltava a vestir coisas extraordinárias para combater o cinzentismo da passagem do tempo.

JI: Uma das coisas que mais me desejam no Facebook é que tenha muita saúde para continuar a fazer as coisas que faço. Há portanto a noção que o Júlio Isidro é um senhor com alguma idade.

HJ: Temos de nos tratar bem. Sabemos que se acelerarmos ao máximo durante muito tempo há a hipótese de o motor avariar. Por isso deixei os charutos. Há 15 anos, tinha a coronária esquerda entupida a cem por cento. Nunca mais fumei.

«Gostava apenas de recuar 25 anos, que é a diferença de idade que tenho da minha mulher. Só por isso», Júlio Isidro.

Por falar em carros antigos, vendeu-os. Viva o que é novo?
HJ: Não tenho pachorra para ter decadência à minha volta. Só uma ou outra antiguidade na decoração e mesmo assim convém que não tenha bicho! A minha tolerância para tratar de objetos de idade acaba em mim próprio.

JI: Estava eu dizer que o meu sonho é ter uma oficia de automóveis antigos. Nisto, não podíamos ser mais diferentes.

E as vantagens da idade?
JI: O que interessa é o trabalhinho. No Traz para a Frente chamam-me Google. Mas há um pormenor: cada programa leva-me três horas a preparar.

HJ: Pensem na Judy Dench ou na Helen Mirren e arranjem-me exemplos da geração destas duas que se mantenham no ativo com aquela qualidade. Não há. São as primeiras a chegar ao estúdio, sabem as falas, são tecnicamente imaculadas. Há uns tempos, o ator brasileiro Duarte Lima afirmava que a maior dificuldade nos dias de hoje era permanecer calado quando filmava com os novos cineastas. Porque não suportam que se lhes apontem as fragilidades, nem ter um velho a denunciar o que está errado.

«Tenho inveja de tudo o que não tenho. Tenho inveja da juventude, tenho inveja do talento da Paula Rego, do Bugatti do Cristiano Ronaldo, da ilha do Richard Branson. Sou um invejoso inveterado.», Herman José

Estão nessa fase?
JI: Estou. Faço o possível por não dizer nada. Mas custa-me, custa-me imenso.

HJ: Ainda não cheguei ao ponto de ficar completamente calado. Por vezes, aguento apenas os primeiros cinco minutos. Há uns dias fui fazer um anúncio e só encontrei potenciais génios. Fiquei caladinho, já que o negócio estava entregue aos génios. Mas a incompetência chegou a um ponto tal em que pensei «que se lixe». E reorganizei-lhes o caos de forma implacável e resoluta. Com aqueles, garanto-vos que nunca mais vou trabalhar. Não vão voltar a querer ter-me por perto! É o preço que se paga.

JI: Aconteceu-me parecido. Também a gravar um anúncio, percebi que as pessoas têm de pôr defeito por pôr. Uma questão de poder. Gravei o anúncio à primeira, mas tiveram de ver e rever. E eu farto de saber que estava bom.

HJ: Mas atenção, ninguém é dono da verdade e o mercado está cheio de jovens preparados e competentes a quem temos de ter a humildade de dar razão.

É impossível olhar para a pele lisa dos jovens e escapar à inveja?
HJ: Tenho inveja de tudo o que não tenho. Tenho inveja da juventude, tenho inveja do talento da Paula Rego, do Bugatti do Cristiano Ronaldo, da ilha do Richard Branson. Sou um invejoso inveterado.

JI: É completamente possível porque é impossível voltar a ter essa pele. Assim vou-me vestindo com esta pele e seduzindo pelas estórias que tenho para contar.

Gostavam de viver a juventude nos dias de hoje?
HJ: Para ser completamente engolido pelo massificação das redes? Se calhar, não gostava.

JI: Gostava apenas de recuar 25 anos, que é a diferença de idade que tenho da minha mulher. Só por isso.

«Estou com o Woody Allen: tenho tanto medo da morte que nem faço tenções de estar presente nesse dia», Júlio Isidro.

Em que idade se começa a pensar nela?
JI: Acho que é ao levantar, com as dores na cervical.

HJ: Ainda não sinto mas vou sofrer horrores.

JI: O pior é quando nos dizem «hoje está muito bem».

HJ: Aconteceu-me isso com o Mário Soares, num jantar em Sintra, estava ele no auge dos seus 66 anos. «Está fantástico», disse eu.«Não me diga isso que é sinal de que estou velho.»

E o medo da morte?
JI: Estou com o Woody Allen: tenho tanto medo da morte que nem faço tenções de estar presente nesse dia. O Herman é completamente ateu, eu sou completamente cristão. Mas mesmo com a aspiração da eternidade o que mais confusão me faz é deixar de ser. A questão morte prende-se apenas com a circunstância de estar tão habituado a estar vivo. Em termos profissionais, vivi de uma maneira tão intensa, tão laboriosa, tão formiguinha que não me lembro do que fiz sem ser trabalhar (embora tenha feito muitas coisas de forma substancial, nomeadamente namorado). Hoje, tenho uma noção muito mais presente da cronologia. Por vezes pergunto-me o que irá acontecer para que eu desapareça. Um acidente? Consigo sublimar isso tudo sugando a juventude das minhas filhas. José Gomes Ferreira dizia: «viver sempre também cansa». Não estou nessa fase.

HJ: Viver só cansa quando se tem dores e se sofre. Nesse caso, ter a opção de pôr fim à vida seria maravilhoso. Quando a humanidade for civilizada poderemos pedir a nossa descontinuação. Se houvesse um kit eutanásia seria a sociedade perfeita. Mas enquanto tivermos essa terrível espada de Dâmocles, mistura de estado e condicionamento religioso por cima da nossa cabeça, seremos sempre cidadãos castrados.

O que tem a dizer o cristão?
JI: É um tema muito sensível, deve merecer toda a atenção e ser olhado caso a caso. A circunstância de ser cristão dá-me direito a pensar que haverá sempre uma esperança de algo melhor e permite-me ganhar força nas decisões sobre a vida.

HJ: Não ter fé foi herança do meu bisavô, do meu avô e do meu pai. O meu pai morreu a escorraçar um padre que lhe queria fazer a extrema-unção. Morreu em paz e sereno. Somos é muito poucos. Um terço da enorme percentagem de gente que se diz agnóstica está a mentir. Basta um terramoto que começam logo a rezar. Nós, os que não acreditamos em nada e vivemos em paz com isso, somos apenas quatro por cento. E é preciso que não aconteça como ao meu tio Mário: ateu mas desde que teve um AVC e ficou menos válido, passou a ir à igreja de São João de Deus todos os dias. Um dia perguntei a Marcelo Rebelo de Sousa como é que um homem tão informado e denso podia acreditar na vida para além da morte? Prometeu-me a explicação num dos meus programas. Continuo à espera da sua disponibilidade (risos).

JI: Esqueces que se calhar há uma atitude racional nos crentes. A circunstância de se acreditar num poder cósmico não subentende forçosamente que estejamos apenas a arranjar uma justificação para vida depois da morte.

HJ: Acreditar que um poder cósmico interage com as nossas pequeninas vidas parece-me infantil. «Poder cósmico ajuda-me a salvar as minhas filhas do tsunami, mesmo que todos os restantes morram afogados…» é algo de muito surrealista.

JI: Isso é fazer de cada crente um pedinchão e não é verdade.

«Fiz um disparate que nenhum artista deve fazer que foi achar-me com talento para ser empresário. Entre a pressão das audiências e a de pagar ordenados, a coisa artística foi pelo cano», Herman José.

Dos vossos programas e personagens: qual deles resistiu melhor ao tempo?
JI: O Passeio dos Alegres foi uma rutura na forma da fazer televisão em Portugal. Orgulho-me naturalmente dos anos em que estive no ar com o programa [1980-1982]. Orgulho-me de um trabalho que conseguiu surpreender os espetadores todas as semanas. Mas se pensar em termos mais intimistas e mais elaborados prefiro o A Outra Face da Lua [2000]. Ali, num trabalho da minha exclusiva autoria, fui one man show. E resultou.

HJ: Mais que personagens, tenho um programa que é maravilhosamente atual chamado Crime na Pensão Estrelinha. Ainda recentemente o revi e nem queria acreditar. Resultou do aproveitamento de três anos de escrita solitária na TSF e será a minha pièce de résistance.

É doloroso escrever?
HJ: É. Ainda agora estive todo o fim de semana a escrever o programa de segunda. É preciso que cada frase faça sentido, que os trocadilhos sejam giros. Há piadas de que me orgulho como a da «entrevista» à Madonna: «Madonna, qual é a tua opinião sobre a Lady Gaga?» Responde a Madonna: «estou muito contente que ela tenha voltado à RTP2. Um beijinho, Maria João Seixas». Este tipo de piadas dá muito trabalho. Um texto feito desta renda perdura no tempo. Está sempre dentro do prazo.

O Júlio, com 58 anos de carreira, é avesso à preguiça. No caso do Herman, houve a certa altura uma fase um pouco preguiçosa?
HJ: Houve sim uma fase um bocadinho dramática. Fiz um disparate que nenhum artista deve fazer que foi achar-me com talento para ser empresário. Criei uma grande produtora e entre a pressão das audiências e a de pagar ordenados, a coisa artística foi pelo cano abaixo. Portanto, aquilo que podia ser entendido como preguiça era apenas muita preocupação com a sobrevivência do produto. Agora voltei a ser um homem livre, voltei à minha mini-estrutura, reconquistei a felicidade que tinha nos anos 80. Quando tinha restaurantes, cheguei a pagar cento e tal ordenados por mês. Foi um horror na minha vida. Enfim, mas antes isso do que ficar debaixo de uma automotora.

Entrevistaram meio mundo. Falem-me dos entrevistados mais difíceis.
HJ: O meu drama nas entrevistas é a obrigação de ter alguma piada, o que por vezes me inquina a conversa. As mais difíceis são aquelas em que os entrevistados não estão para aí virados. Isto é como fazer amor.

JI: Com o José Cardoso Pires tive a entrevista mais difícil. Quatro horas de programa em que ele, extraordinário contador de histórias, entupiu. Acabei a fazer as perguntas e quase a dar as respostas. De tal maneira que me telefonou no dia seguinte a dizer que lhe tinha salvado a vida. Depois, apanhei alguns malcriados. Ao Mel Gibson nem dei troco. Ao Harrison Ford pu-lo na ordem. A entrevista a decorrer e ele sem olhar para mim, a mexer um chazinho. «Sabe uma coisa? Na minha terra diz-se que quem toma chá é educado.» Percebeu.

«Não fumo, não bebo, não durmo muito, não me preocupo com o meu futuro, não quero ser o que não fui e não quero azedar a minha alma com tricas e mexericos», Júlio Isidro.

Como entrevistados, já passaram por perguntas intrusivas, parvas, ou até hilariantes.
JI: Claro. Como aquele fulano a pedir-me desculpa mas o diretor tinha mandado fazer perguntas fortes. Ainda por cima gago, sai-se com esta: «Alguma vez teve problemas de potência sexual?» «Bom», respondi, «acho que na minha vida tudo tem corrido bastante bem».

HJ: Lembro-me de certa jornalista que quis fazer uma grande reportagem comigo. Recebia-a em Azeitão com toda a generosidade. Montaram-se as câmaras e a senhora, que já não está no ativo, dispara a primeira pergunta. «Herman, especula-se muito sobre a sua sexualidade. Quer falar-nos sobre ela?» Respondo imediatamente: «Claro que sim. Trocamos informações. Você ainda anda com o fulano de tal? É verdade que ele adora sexo anal? E a menina, sujeita-se a isso ou arranja alternativas?» Resultado: alguém perdeu a cassete. (risos) Mas também tenho o contrário. Um deles passou-se com a Joan Collins. Quando a entrevistei no Parabéns, passei um excerto de um filme em que ela despia um jovem de 18 anos. Pergunto sobre a cena e diz ela, maravilhosa: «Pôs a cena porque está interessado em mim ou no jovem?» Não cortei a resposta até porque é fantástica. E aguentei-me à bronca!

Voltamos aos dias de hoje, à vossa excelente forma física e profissional e lúdica. Júlio, segue o Instagram do Herman?
JI: Não fumo, não bebo, não durmo muito, não me preocupo com o meu futuro, não quero ser o que não fui e não quero azedar a minha alma com tricas e mexericos. Sigo o Instagram do Herman e constato que ele é mais uma vez um revolucionário da arte de me fazer rir.

Herman, que feedback tem dos post?
HJ: Fico muito espantado. Foi uma brincadeira que me apanhou de surpresa. Não percebi ainda se vai dar frutos ou se tem valor de brincadeira passageira.

A RTP está a fazer sessenta anos anos. Falem-me do estado da arte.
HJ: O artesanato virou indústria, e hoje em dia, passou a máquina de picar conteúdos. Tudo é descartável, nada é importante, quase nada fica. Exceção feita a algumas séries que ganharam alma cinematográfica.

JI: A RTP está a ganhar, não nas audiências mas na notoriedade, pelas boas razões. Está a acontecer o meu reencontro com o serviço público de televisão como sempre o entendi. Um estudo recente revelou que ao nível da informação, a credibilidade e a isenção põem a RTP na liderança. O futuro irá confirmar o presente. Ver televisão vai acabar, na forma em que a conheci e nela trabalhei. A grelha de programas passa a ser uma escolha de cada cidadão e o próprio suporte, o televisor, deixará o seu estatuto de eletrodoméstico para um objeto tão pessoal como um par de óculos. No fundo tudo isto já está a acontecer.

O Júlio já escreveu um livro. Para quando um do Herman?
HJ: Porventura uma suculenta autobiografia, mas só quando estiver semi-reformado, e com parte dos intervenientes no cemitério para não ter de dar muitas satisfações… (risos)

O que desejam hoje alcançar?
JI: Tempo, tempo para as viagens que me falta fazer e para ver o casamento das minhas filhas, já com os seus cursos e empregos decentes. Falta-me ver este país regenerado na cidadania.

HJ: Que cada dia seja perfeito. Aos sessenta anos, a obsessão é lutar pela qualidade do presente, muito mais do que perder tempo com a construção do futuro. O nosso futuro é hoje mesmo.

O que tencionam fazer quando se reformarem?
HJ: Enquanto houver lucidez e um computador por perto, qualquer forma de reforma total está fora de questão.

JI: Sublimarei o que faço agora, na escrita, em colaborações eventuais na televisão e quero fazer rádio até que a voz me doa. E vou construir todos os aviões que ainda tenho por fazer.

Traições, dinossauros e maldade

Já experimentaram a maldade. O Herman, em particular, passou por uma situação kafkiana [processo Casa Pia]. O que vos reconcilia hoje com o ser humano?
HJ: Sempre tive sempre uma péssima impressão do ser humano. O meu exame final à escola alemã foi sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, e ali está o pior e o melhor do ser humano. Não espero nada de bom do ser humano, portanto nunca estou preocupado. Não sofro. Sempre consegui perceber as piores pessoas, as piores surpresas e as piores traições. Consegui sempre perceber o que levou ao crime. Digo mais: é graças à perversidade do ser humano que somos um animal sobrevivente. Se o ser humano fosse bonzinho e benigno tinha-lhe acontecido o mesmo que aos dinossauros. O facto de não acreditar na humanidade nem na sua bondade faz que tenha uma admiração desmedida pelas pessoas que são boas. Fico em deslumbramento absoluto quando confrontado com a bondade, mas sempre com a noção de que ninguém é imutável e que o bondoso de hoje pode ser o vilão de amanhã.

JI: As enormes maldades são resultado de algo que acontece no nosso meio: a falta de coragem para serem maus de olhos nos olhos. Hoje, vivo um momento de grande tranquilidade, fruto de «o que vier, virá». Se alguma coisa vou procurar é o seguinte: no próximo ano faço 58 anos de carreira e, nessa altura, gostaria que a RTP renovasse comigo por mais dois anos. Gosto de contas certas e gostava da me retirar cumpridos sessenta anos de carreira.

Como olham para o mundo hoje?
HJ: Comparando com os anos 1940 está maravilhoso. Pensemos no Holocausto.

JI: Tenho lido muito sobre a Segunda Guerra Mundial para tentar entender o conflito. E atenção: a história repete-se.

HJ: O problema está no ser humano, que por isso precisa de ser vigiado. A grande vantagem destes tempos é que os dirigentes sabem que numa guerra atómica morrem como os outros. Aquilo com que a humanidade não contava é que, por culpa das religiões, aparecesse quem não tem medo de perder a vida. No dia em que um grupo terrorista tiver acesso a armas atómicas vamos ter verdadeiros problemas. Numa única coisa dou razão a Trump: poder nuclear na mão do Irão é perigosíssimo. Felizmente, o Kim Jong-un gosta muito dos seus luxos.

JI: Gostava que a idade adulta das minhas filhas fosse o tal futuro em que tenho esperança. Porque quanto a este presente estou muito preocupado. Estamos a assistir ao recrudescimento das ditaduras, do racismo, da xenofobia, da exploração do homem pelo homem. Os movimentos nacionalistas e racistas estão a crescer e a política do dinheiro está acima de tudo. Gostava muito de poder confiar nos políticos.

Continuam a acreditar na democracia?
HJ: O 25 de Abril foi uma revolução muito suave. Portugal herdou males do passado que ainda estão muito presentes e que viciam certos órgãos democráticos. Mas estou otimista. A nova geração política é muito interessante.

Por exemplo?
HJ: O Bloco de Esquerda. O BE conseguiu coisas extraordinárias. Desde viabilizar este governo a espevitar o PCP. O PCP deu um salto histórico gigantesco a reboque do BE. Corria o risco de ganhar bolor.

JI: Todos nós temos um bocadinho de Bloco de Esquerda, no sentido libertário, na alegria de fazer política. Independentemente das nossas escolhas, há que reconhecer que o BE trouxe um novo ar. E fez com que um partido mais estruturado e tradicional como o comunista tivesse de se arejar um pouco.

HJ: Um dia Álvaro Cunhal recebeu-me na Soeiro Pereira Gomes. Aproveitei para lhe contar que uma senhora que trabalhava para mim tinha uma lamparina ladeada por duas fotografias: a de Nossa Senhora de Fátima e a dele, Cunhal.

JI: (gargalhada). Não sei se ele gostou.