Formiga-leão

Notícias Magazine

A minha primeira escola era numa vivenda com dois mamoeiros raquíticos que sabiam que nunca lhes deixaríamos amarelecer os frutos. A escola tinha uma magnífica instalação desportiva com o único senão de o bairro a considerar rua, de terra batida. Jogávamos com as regras da football association local: se um carro passa, para-se a bola apesar do caminho aberto até à baliza. Ainda não se tinha inventado o videoárbitro, daí as constantes controvérsias dificilmente esclarecidas: «Poças, pá, o jipe já tinha entrado nas quatro linhas!» O golo valia? Questão bicuda, tanto mais que não havia quatro linhas.

A minha escola chamava-se São Tomás de Aquino e o professor era um branco do mato, angolano de pele de marfim velho, amarelecida pelo paludismo. Tinha sido seminarista, abandonara, mas alguma fé lhe deve ter restado porque deu à escola o nome do escolástico. O professor era triste como os mamoeiros, nunca eu soube porquê. Por estes dias passa mais um aniversário de quando ele trouxe para a classe o tema da época: o Menino
Jesus. Naquele tempo eu também não sabia que a escolástica era uma doutrina conciliatória, tentando harmonizar a fé e a razão. Pus o dedo no ar e fiz a minha primeira intervenção pública.

O Menino Jesus existe – disse eu. Nesse ano, ou talvez no seguinte, já se estava em transição para a hipótese Pai Natal, mas em todo o caso não havia ainda imagens com renas e camiões de Coca-Cola que visualizassem a minha tese. Só pela palavra eu conseguiria chegar aos gentios. Mulatos, brancos e negros, quase todos mais pobres do que eu (a declaração de rendimentos conta nesta história). A minha tese era: as prendas de Natal têm origem misteriosa e a autoria do Menino Jesus (não me lembro se acrescentei «ou do Pai Natal») era a mais curial… Como não sabia dizer curial pus os olhos a brilhar. Rematei com um argumento demolidor: «A prova de que o Menino Jesus existe é que todos, mesmo os pobres, temos prendas.»

O paludismo deixa um homem derreado, só permitindo picos de excitação quando o combate vale a pena. O professor encolheu os ombros e mudou de assunto: «Vamos à tabuada.» Alguns dos meus colegas olhavam-me com a mesma atenção perigosa de quando empurrávamos uma vítima para a armadilha de uma formiga-leão. Estas faziam um cone invertido no chão, inseto que lá caísse esgotava as forças a tentar subir o que a areia solta não permitia. Lá em baixo, no pico invertido, a formiga-leão esperava… Ainda hoje sonho com isso. Naquela véspera de Natal, uma comissão de miúdos veio ter comigo: «Depois das férias, vamos todos trazer as prendas, não te esqueças das tuas!» Soou-me a conversa de formiga-leão.

Mas porque terei eu, ingénuo e puro como me revelara no discurso, desconfiado da proposta dos meus companheiros para a exposição mútua das prendas? Afinal, eu tinha interesse no contrato, o carro de bombeiros, vermelho e com escada Magirus, havia de os deixar invejosos. Mas a questão era: como sabia eu do carro de bombeiros, antes do Natal e antes do meu discurso? Pois é… Eu já tinha encontrado o embrulho de estrelinhas prateadas, escondido no cimo do guarda-vestidos da minha mãe. Desembrulhei, espreitei, embrulhei de forma mal-amanhada e a minha mãe nada disse. Ficou conversa nossa, da minha mãe que sabia que eu sabia que o melhor era ficar assim.

A minha escola chama-se hoje António Garcia Neto, e a rua (o nosso campo) também. Ele era filho de um cauteleiro do bairro, tinha os pés chatos e era pobre. Jovens, sonhámos o mesmo. Semanas depois de eu me exilar, em 1969, o Garcia Neto foi preso e metido em Peniche; poucas semanas depois de nos reencontrarmos, ele foi apanhado numa voragem da nossa cidade, foi morto e queimado, a 27 de maio de 1977, em Luanda. Acho que ele sempre soube que não havia Pai Natal e eu sempre tive mais razões para fingir.