Como explicar o fogo – e as mortes – às crianças?

Notícias Magazine

Texto Cláudia Pinto | Fotografia de Rui Oliveira/Global Imagens

Podia ser uma segunda-feira normal. Com o regresso ao trabalho e à escola, dependendo das idades. Mas não foi. Foi o primeiro dia laboral ou escolar depois do terrível incêndio de Pedrógão Grande. A tragédia tinha chegado sem aviso prévio no sábado anterior e a confirmação das consequências deixou o país em suspenso no domingo.

Com o aumento do número de mortes, a velocidade das notícias na comunicação social, e a perceção do que tinha realmente acontecido, surgiram as perguntas acompanhadas de incredulidade.

Ilda Cunha, professora do primeiro ciclo numa escola do Feijó, em Almada, sabia que aquele começo de semana seria diferente. Com 26 alunos entre os 8 e os 10 anos, curiosos e ávidos de respostas, a docente admite que respondeu o melhor que sabia às muitas questões que lhe foram colocadas. «Já sabia que isto ia acontecer mas deixei-os começar a abordar o assunto.»

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Foram duas horas de explicações e de perguntas, muitas perguntas. Ilda refere que «apesar de estas crianças ainda serem pequenas, têm maturidade suficiente para entender estes assuntos». O que fazer em caso de tragédia com os nossos filhos, sobrinhos, netos, com as crianças em geral? Dizer a verdade? Esconder? Protegê-los da tragédia? Não existem regras universais, mas os especialistas concordam que há um caminho que pode ser seguido. O da verdade.

«Os meus alunos estão comigo desde o primeiro ano e já sabem que lhes conto os factos, ainda que possa procurar associar a alguma matéria da escola ou a alguma história lúdica, daí que não se intimidem em questionar.» Nem sempre os pais aceitam esta atitude, e não raras vezes, recusam-se a responder, remetendo para a escola.

«As crianças são muito curiosas e ficam a pensar nos assuntos. Têm acesso à informação, ouvem conversas dos adultos, por mais que estes pensem que estão a brincar e não sabem do que se trata. Acredito que os pais devem responder a todas as perguntas sem fugir dos temas, sejam eles quais forem. Esconder os assuntos não é protegê-los. Podem poupá-los de alguns pormenores, adaptando o discurso a cada idade, e se não quiserem aprofundar demasiado, podem remeter para a escola e para a professora, mas sem se demitirem do seu papel.»

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A professora tem tentado responsabilizar os pais para fazerem a sua parte, mas nem sempre é bem sucedida. «O meu papel principal é gerir comportamentos na sala e cumprir o currículo escolar. Caso não saibam como abordar determinado tópico, estou disponível para os aconselhar. A escola já tem uma parte considerável relativamente à educação dos filhos.»

Maria de Jesus Moura, psicóloga infantil e da saúde, especialista em luto infantil, acredita que esta é uma atitude dos tempos atuais. «Os pais passam a responsabilidade para a escola e demitem-se do seu papel, que é o processo de educação. Há a necessidade de sentar à mesa, de conversar em família, de ter tempo para rir, dizer disparates mas também falar de temas do quotidiano mesmo que não sejam fáceis.»

Acontecimentos trágicos como os que ocorreram naquele fatídico fim de semana podem ser também um pretexto para falar de outros temas essenciais ao desenvolvimento cognitivo das crianças, como por exemplo o ciclo de vida e a morte.

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«Podemos falar sobre prevenção de incêndios ou acidentes, por exemplo», diz a psicóloga. Recorrer a exemplos concretos, como as flores e os animais, por exemplo, pode ajudar. «É importante ir explicando que todos os seres vivos nascem, crescem, amadurecem e morrem. Por outro lado, há que sublinhar que, por vezes, pode haver uma interrupção neste ciclo noutro período anterior à velhice. A criança deve ir interiorizando que o fim do ciclo de vida é imprevisível e ninguém sabe quando acontece.»

No âmbito das suas aulas, Ilda aproveita estes momentos para integrar alguns conceitos, relembrar a matéria dada e alertar para temas importantes, tendo a pedagogia como principal alicerce. No primeiro dia de aulas após o incêndio, começou por abordar uma história do Manual de Português que já tinha planificado para aquela semana e que achou por bem adaptá-la ao contexto. «Era um texto que falava dos sapadores florestais, de qual era o seu trabalho nas matas e a história até referia que algumas pessoas tinham-nos confundido com incendiários. Comecei por explicar que é importante que as matas sejam limpas, que os incêndios são muito perigosos, e que no nosso país, não tínhamos vivido, até à data, uma tragédia como esta. Acrescentei que os incêndios se propagam de uma forma muito rápida e intensa.»

Recorrer a histórias é uma forma de agilizar o tema ou fomentar a pedagogia. «Os alunos aprendem a prevenção dos incêndios na disciplina de Estudo do Meio, faz parte dos seus requisitos, e fazemos também simulacros regularmente», diz a professora.

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Um dos desafios de abordar os temas difíceis é que nem sempre os adultos se sentem, eles próprios, confortáveis com os mesmos. «Às vezes, a ansiedade é tão grande que se perdem no discurso. Defendem-se do stress e não querem vulnerabilizar-se perante as crianças», acrescenta a psicóloga Maria de Jesus Moura.

Relativamente à tragédia de Pedrógão, a estupefação das crianças teve várias vertentes. «Esta não é uma situação comum e deveu-se a um fenómeno da natureza. É preciso focar que está tudo bem e que não nos encontramos nesse local», diz a psicóloga. Sendo natural que «as emoções estejam ao rubro perante as sucessivas notícias que inquietam crianças e adultos, o acontecimento é útil para falar de aspetos fundamentais da existência humana, como o facto de não sermos indiferentes ao sofrimento alheio – e ainda bem – e também para fomentar a solidariedade».

Este foi, aliás, um dos aspetos difundidos no meio de toda a tragédia. Os alunos de Ilda Cunha questionaram como poderiam ajudar as vítimas. «Sugeri que falassem com os pais e se deslocassem aos Bombeiros da Trafaria para doar bens alimentares para as pessoas e os animais.»

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Associado à dúvida, surge o medo. Medo que lhes aconteça a elas e aos familiares, receio de ir de férias para as aldeias dos avós. Foi o que a professora Ilda sentiu naquela manhã.«Dois ou três miúdos também disseram que perto de suas casas existem terrenos que não estão limpos, inquietos com a ideia de também ser possível incendiarem».

A professora expliqou que existem para-raios e estruturas no meio das cidades que permitem que as trovoadas se aconteçam sem grandes estragos. Disse que nas cidades, nunca se ouviu uma tragédia relacionada com isso. Salientou que nas zonas urbanas, os bombeiros estão mais perto e chegam mais rápido a qualquer tipo de incidente. E, ao mesmo tempo, explicou que estas situações são imprevisíveis e podem acontecer em qualquer lugar, para não pensarem que estão libertos das mesmas, mas que existem recursos de segurança e de defesa. «Selecionei alguns aspetos mais positivos para que eles ficassem mais tranquilos e menos assustados.»

Nas cidades e em zonas urbanas, as explicações relativas ao tema ficam facilitadas. «Estamos mais afastados dos locais onde tipicamente os incêndios se dão e, aparentemente, as questões estão sob controlo», diz a professora. «Não é por acaso que as escolas investem em simulacros. Há que aproveitar para dar recursos à criança e pegar em temas que ela própria já aprendeu, de forma a relembrá-los. E há que confirmar o direito que todas as crianças têm de se inquietarem, de ficarem tristes e chorarem.»

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Perante a questão de uma das alunas que queria saber para onde é que iam as pessoas que ficaram sem nada, Ilda reforçou a importância de ajudar os outros. «Remeti para a questão da esperança que os governantes iriam tomar medidas, e que o apoio dos amigos, família mas também de desconhecidos, a nível nacional, era essencial.»

Trabalhar as questões da esperança pode ser um passo essencial num processo de luto. Ao reconhecermos que alguém teve importância na nossa vida e que o seu legado tem uma relevância significativa no nosso percurso estamos, de certa forma, a cumprir o nosso próprio processo de luto. E isso ajuda-nos a crescer. Conseguir passar esta dimensão de evolução para uma criança pode ser uma boa estratégia.

Mais do que as palavras a utilizar, as respostas a dar e as informações a passar, é importante estar disponível e não deixar às crianças à deriva. Mostrar interesse, ter tempo para ouvir as dúvidas, responder e conversar sobre tudo com uma função pedagógica é o modelo mais indicado. Em situações em que as crianças se possam sentir muito inseguras, «os pais devem também selecionar a informação e dar colo, o que ajudará os mais pequenos a restaurar a segurança», diz a psicóloga.

Dentro daquilo que são temas difíceis, compete então aos pais «dizer que tudo está bem, que a família está ali e em segurança, independentemente de não se saber o dia de amanhã. Há que promover a segurança para que a criança consiga arranjar estratégias para lidar com as situações difíceis».

O QUE FAZER?

  • Dizer a verdade adaptando os factos e os pormenores consoante a idade das crianças
  • Não esconder nem proteger demasiado
  • Estar disponível para ouvir e responder a todas as questões
  • Preparar os temas em casa, abrir espaço para a comunicação e remeter para a escola, mas sem se demitir do papel de pai/mãe
  • Pedir ajuda à escola ou a um especialista quando tiver dúvidas sobre a melhor forma de abordar determinado tema
  • Recorrer a histórias lúdicas, a exemplos práticos e a conhecimentos que as crianças já aprenderam na escola, para tornar a conversa mais simples e percetível
  • Aproveitar estes momentos para falar de temas relacionados com a prevenção de acidentes e com atitudes a ter para se protegerem
  • Reforçar que houve pessoas que se salvaram no meio da tragédia e que também houve desfechos felizes
  • Explicar que as pessoas atingidas pelo incêndio, e que sobreviveram, mas que perderam familiares ou os seus bens, vão ser ajudadas por várias pessoas de todo o país e acompanhadas de perto por especialistas, médicos indicados para estes casos.

As perguntas, em destaque, foram recolhidas por Ilda Cunha, Professora do primeiro ciclo numa escola do Feijó, em Almada.