Este país é para engenheiros

Portugal dá cartas no mundo da engenharia. Cá dentro e lá fora. E os alunos das melhores universidades não sabem o que é falta de emprego.

Não é só no turismo que Portugal está na moda. Nos últimos tempos, o país tem conquistado um lugar no mapa internacional da engenharia, com várias empresas estrangeiras a recrutar talento ou a instalar-se aqui. A chegada da Websummit a Lisboa atraiu ainda mais as atenções. A engenharia parece estar na moda. E, ao contrário do que acontece a milhares de recém-formados de outras áreas, os alunos das melhores universidades não sabem o que é falta de emprego.

Marta Lima, 24 anos, já tinha recebido várias mensagens na sua conta de LinkedIn. Apesar de ainda não ter acabado o curso de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, no Instituto Superior Técnico (IST), não faltavam consultoras a aliciá‑la através da rede social para ela se juntar aos quadros das empresas. Mas naquele dia houve uma proposta que lhe chamou a atenção: uma empresa de recursos humanos desafiava‑a a concorrer a uma vaga num projeto internacional, na área de IOT (Internet of Things – Internet das Coisas, o ramo que se encarrega da ligação de dispositivos à rede). Como Marta sempre tinha querido trabalhar numa grande empresa, o convite deixou‑a curiosa. Entrou no processo de recrutamento no último ano do mestrado integrado e, a quatro meses de se formar, já tem contrato de trabalho assinado com a Vodafone: começa um mês antes de terminar a tese final.

Ao contrário do que acontece com milhares de finalistas do ensino superior em Portugal, Marta Lima nunca saberá o que é ficar meses ou anos à espera do primeiro emprego. Nem ela nem grande parte dos alunos de Engenharia das melhores universidades portuguesas, onde as taxas de empregabilidade atingem números mais do que satisfatórios: em 2016, chegaram a 80 por cento, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), e alcançaram uns impressionantes 95 por cento no Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, segundo dados fornecidos por estas instituições académicas.

«Depois de 2009, devido ao desaparecimento das obras públicas e à redução da construção privada, a engenharia civil enfrentou uma crise e as dificuldades para conseguir um emprego nessa área obrigaram alguns colegas a sair para o estrangeiro ou a aceitar salários abaixo do razoável», explica Carlos Mineiro Alves, bastonário da Ordem dos Engenheiros. «Essa realidade teve um impacto na imagem da engenharia, em geral, mas a verdade é que o panorama nunca foi particularmente grave do ponto de vista da empregabilidade destes profissionais em Portugal.» Os dados da FEUP mostram que, para a grande maioria, nem sequer é preciso sair do país para ter um bom lugar. Entre os 82 por cento de diplomados da FEUP que arranjaram emprego seis a doze meses depois de terminarem os cursos, em 2015, apenas oito por cento emigraram. Muitos fizeram‑no por opção e não por necessidade. «Nas áreas de tecnologias de informação, que estão claramente na moda, por exemplo, os engenheiros não chegam para as encomendas», diz o bastonário.

Estudantes de Engenharia

De resto, essa é uma tendência internacional: de acordo com o Talent Shortage Survey, um inquérito realizado anualmente junto de mais de 42 mil empregadores pelo ManPower Group (uma das maiores empresas de recursos humanos do mundo), a segunda área profissional com mais falta de pessoal é a das engenharias de tecnologias de informação. No quarto lugar da mesma lista estão os engenheiros mecânicos, eletrotécnicos e civis. Ou seja: em Portugal ou no estrangeiro, há mercado para quem decide estudar Engenharia e a concorrência está a apertar no acesso às melhores universidades.

«Há uma geração de grandes alunos a entrar no Técnico. As notas subiram muito e é evidente que os estudantes têm uma grande vontade de entrar em boas escolas», diz Luís Caldas de Oliveira, vice‑presidente do IST para o Empreendedorismo e Relações Empresariais, um departamento que promove a aproximação entre os alunos e o mercado de trabalho.

Quando entrou nesta universidade, vinda do Liceu Camões, em Lisboa, Marta Lima levava uma média de 17 valores sem nunca ter feito grandes maratonas de estudo. Ali confrontou‑se com outro mundo. «Dos 300 alunos que entraram no meu curso ao mesmo tempo que eu, cem desistiram no primeiro ano. Aqui estuda‑se muito e muitas vezes isso nem chega para termos positiva. A nível emocional não é fácil, mas é isso que nos torna mais fortes: aprendi a falhar e a voltar a tentar.» Nunca há-de esquecer que chumbou três vezes a Eletromagnetismo e Ótica, e só à quarta conseguiu passar: «Foi o melhor 10 ou 11 da minha vida!»

Como muitos colegas que entram nas faculdades de Engenharia, no início, Marta não sabia exatamente o que queria fazer quando acabasse o curso. «Há cinco ou seis anos, havia uma grande percentagem de alunos engenhocas que ficavam felizes por desenvolver um produto. Hoje, a maior parte encara a tecnologia como um meio para atingir um fim e deixar a sua marca na humanidade», diz o professor Luís Caldas de Oliveira.

O facto de, nos primeiros três anos, a formação assentar num tronco quase comum aos diferentes cursos e que aposta fundamentalmente em estudos avançados de Matemática torna os futuros engenheiros muito mais versáteis na hora de procurar o primeiro emprego. Marta Lima só começou a pensar no que queria fazer depois da faculdade no fim do terceiro ano, antes de transitar para o mestrado.

É a partir desta altura que muitas escolas de referência começam a preparar a entrada dos seus alunos no mercado de trabalho. No IST, o programa Career Discovery permite aos estudantes receber dicas de antigos alunos que se voluntariam para os aconselhar. Os futuros engenheiros fazem workshops para aprender a ter sucesso nos processos de recrutamento, são ajudados a escrever o curriculum vitae e recebem dicas sobre como devem comportar-se numa entrevista de emprego. Além disso, têm oportunidade de participar nas semanas das carreiras e outros eventos organizados por áreas da Engenharia, em que as empresas procuram aliciá‑los. Existe ainda uma feira de emprego, a Job Shop, e Marta Lima faz parte da equipa que está a ultimar os preparativos para o relançamento do Job.Bank, uma plataforma de emprego da própria universidade.

Joana Moura é psicóloga e responsável pela área de Carreira e Emprego da FEUP [fotografia de Pedro Granadeiro/Gobal Imagens]
Joana Moura é psicóloga e responsável pela área de Carreira e Emprego da FEUP [fotografia de Pedro Granadeiro/Gobal Imagens]

Na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), a estratégia seguida não difere muito. O FEUP Career Path («percurso de carreira», numa tradução literal) é um programa composto por várias iniciativas que promovem o acesso ao mercado de trabalho. «As empresas têm acesso a uma bolsa de emprego online chamada Recruiting at FEUP e depois podem vir apresentar as suas vagas nos nossos chat rooms, encontros em que os alunos se inscrevem para conhecer essas ofertas», explica Joana Moura, psicóloga e responsável pela área de Carreira e Emprego da FEUP. Há ainda atividades relacionadas com o empreendedorismo. «Uma vez por mês, uma empresa disponibiliza‑se para dar sessões de uma hora aos alunos que se inscrevem para receber informação sobre a criação do próprio emprego. Também lhes dão apoio para eles perceberem a viabilidade dos negócios.»

Este gabinete disponibiliza também um atendimento personalizado a estudantes, diariamente, para apoio a processos de recrutamento e planeamento de carreira. Quem quiser pode dirigir‑se ali para se candidatar a estágios de verão a partir do terceiro ano. Na FEUP, há ainda uma feira anual de emprego, o que mobiliza toda comunidade estudantil e o tecido empresarial que a rodeia.

O resultado de todo este esforço reflete-se nas taxas de colocação de engenheiros. «Em Informática, 96 por cento dos alunos diplomados em 2015 estão a trabalhar. Só há dois sem emprego, por opção. Em Mecânica, a taxa é de 92 por cento, e em Gestão Industrial de 90 por cento», revela a responsável. Mesmo em Engenharia Civil, uma das áreas mais afetadas pela crise, 72 por cento dos diplomados em 2015 têm emprego. Em pior situação estão os engenheiros do Ambiente: 54 por cento dos graduados de 2015 continuam sem trabalho.

Nas áreas com maior procura, a competição entre as empresas é enorme para captar os melhores alunos. Pedro Oliveira, um dos fundadores da Landing.jobs, uma plataforma online de recrutamento global, garante que no setor das tecnologias de informação esta concorrência é particularmente aguerrida. «Os cursos que têm maior procura são Informática, Eletrotécnica e Matemáticas Aplicadas, mas também há muitos lugares em Design Digital, Engenharia Biomédica e Química, por exemplo, que também têm fortes bases de Matemática e conhecimentos de programação.» Os salários, para estreantes nestas áreas, rondam os 1000‑1100 euros líquidos, mas nalguns casos excecionais podem ascender aos 1300‑1400 euros. A partir daí, não há regra nem limite: depende do desempenho de cada um, da empresa e do próprio momento.

Cientes da importância de contratar os melhores, as empresas usam todo o tipo de ações de charme para os atrair. Na Novabase, por exemplo, já se tornou um hábito fazer um roadshow pelas principais universidades do país para dar a conhecer a empresa aos finalistas. Neste ano, para chamar a atenção de um certo tipo de estudantes, levaram uma Volkswagen pão‑de‑forma. «É muito bom ter geeks [génios da engenharia] e eles são importantes, mas se tiverem dificuldade em relacionar‑se com os outros torna‑se difícil integra‑los numa equipa», diz Pedro Crespo, responsável pela Novabase Academy, que prepara os recém‑contratados antes de assumirem as novas funções.

Não foi neste contexto que Rafaela Silva se cruzou com a empresa. Quem lhe falou da companhia onde se estreou no mercado de trabalho foram colegas de faculdade. «Estudei Engenharia Biomédica, no IST e na Faculdade de Ciências de Lisboa, e cheguei ao fim do mestrado sem saber o que queria fazer. A minha tese foi sobre radioterapia, mas eu não me via a trabalhar naquela área, não adivinhava grandes hipóteses de evolução», diz a jovem de 25 anos. Como a formação que fez também incluía conhecimentos de tecnologias de informação, colocou a hipótese de enveredar por esse caminho. «Pareceu‑me um desafio enveredar por uma área em que eu não me sentia totalmente confortável.»

Concorreu, foi escolhida e, apesar de ser engenheira biomédica, hoje trabalha em desenvolvimento de software. «Os biomédicos são pessoas muito inteligentes e, mesmo vindas de uma área que, à partida, é diferente, são excelentes neste ramo», explica Pedro Crespo. Tal como todos os novos funcionários da Novabase, Rafaela passou pela Academia: um estágio de 15 dias onde quarenta pessoas entram num jogo para solucionar um problema que podia acontecer-lhes no dia‑a‑dia. O desafio chama‑se In the Land of Kroiland e obriga os futuros colegas a aprender a trabalhar em equipa para ganhar pontos, diplomas e conquistar objetivos. No fim, é quase garantido que todos perceberam a cultura da empresa.

Para quem sai hoje das faculdades de Engenharia, há uma opção com cada vez mais adeptos: muitos recém‑formados preferem trabalhar em startups em vez de entrarem para consultoras ou grandes multinacionais. O risco até pode ser maior, mas em estruturas mais pequenas é mais fácil ter um papel determinante do que em gigantes da tecnologia.

«Como é uma profissão sem limitações geográficas, os nossos diplomados podem ir trabalhar para qualquer parte e escolhem o sítio onde valorizam mais as suas competências», diz o bastonário, Luís Caldas de Oliveira. «Em média, o valor base pago a um engenheiro em início de carreira no resto da Europa pode chegar aos 2900 euros, enquanto em Portugal eles recebem cerca de 1200 euros líquidos para começar.»

Segundo Luís Caldas de Oliveira, 25 por cento dos diplomados do IST procuram uma experiência internacional no início da vida profissional. «Os empregadores dizem‑nos que os nossos engenheiros são esponjas, que aprendem tudo. Quando conhecem só um, as empresas podem pensar que tiveram sorte e lhes calhou o único bom engenheiro português. Mas à medida que recebem mais percebem que não é fruto de um acaso: a formação é realmente boa», explica o professor. De tal maneira que a Rolls Royce, a Airbus e a Jaguar fazem parte da lista de grandes empresas mundiais que vêm a Portugal tentar captar talento.

Pedro Oliveira é o fundador da Landing.jobs, uma plataforma online de recrutamento global [Fotografia de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens]
Pedro Oliveira é o fundador da Landing.jobs, uma plataforma online de recrutamento global [Fotografia de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens]
«Não há, à partida, um selo que identifica a Engenharia portuguesa como sendo de topo, mas os ingleses, por exemplo, adoram a versatilidade dos nossos engenheiros», acrescenta Pedro Oliveira, da Landing.jobs. Entre os países que mais absorvem os nossos profissionais estão o Reino Unido, a Bélgica, a Alemanha e a Dinamarca, e alguns situados na América do Sul, depois de a crise de pagamentos em Angola ter obrigado as empresas portuguesas a procurar novas paragens.

Por outro lado, não é só no turismo que Portugal está na moda: na engenharia, o país também se tem tornado um destino de eleição. Atraídas pela qualidade da mão-de-obra e por salários mais baixos do que os praticados noutras paragens, algumas empresas estão a instalar pólos tecnológicos no país. O BNP Paribas e a Sky estão entre elas. «A nossa tarefa tem sido ajudar várias empresas a constituir equipas em Portugal. Isto permite reter os engenheiros no país, com bons salários e sem perder a componente de experiência internacional que muitos desejam», diz Pedro Oliveira.

Para garantir que esse ambiente multicultural faz parte da empresa que criou, Anthony Douglas decidiu que o inglês seria a língua oficial da Hole 19, uma startup que fundou depois de anos a jogar póquer para pagar as contas. Anthony nasceu na Áustria, filho de mãe portuguesa e pai americano. Para quem viveu no Reino Unido, na Suécia e no México, a decisão de instalar uma empresa em Portugal poderia não ser a mais óbvia, mas foi isso que aconteceu.

A Hole 19 gere uma aplicação gratuita para telemóveis e web em que os golfistas podem escolher os campos onde jogam, registar as estatísticas do seu desempenho e partilhar os feitos numa rede social com mais de um milhão de utilizadores. A plataforma é gerida a partir de um escritório de dois pisos na Baixa Pombalina, onde uma equipa de trinta pessoas de várias nacionalidades se esforça por criar um produto cada vez mais competitivo. «Há muito bons engenheiros a sair das universidades portuguesas, mas nós também vamos buscar gente fora quando é necessário», diz Anthony. «Na nossa equipa há brasileiros, um ucraniano e um português que viveu na Índia. E isso garante‑nos uma identidade global.» Uma mais‑valia para uma empresa que quer expandir‑se para mercados como o Reino Unido e os Estados Unidos.

Foi, aliás, esse o percurso da Feedzai, que desenvolve software de combate à fraude, capaz de detetar, em tempo real, operações ilícitas com cartões clonados, por exemplo. Criada em 2009, em Coimbra, por três engenheiros portugueses com carreiras internacionais, a Feedzai emprega hoje 150 pessoas, dois terços das quais são portuguesas. No final de 2017, deverão ter alcançado os 360 colaboradores, divididos entre Lisboa, Porto, Coimbra, Londres, Nova Iorque e San Mateo (Silicon Valley, na Califórnia). Esporadicamente, há equipas a trabalhar em clientes noutros países, como a Índia.

«Os engenheiros portugueses estão em igualdade de circunstâncias com os estrangeiros, tanto na nossa empresa como nas melhores casas de engenharia do mundo. A diferença entre uns e outros nem é tanto técnica, mas sobretudo ao nível da enorme capacidade que os nossos têm de se adaptar a situações complicadas», diz Paulo Marques, um dos fundadores. Embora parte da faturação da empresa se deva a clientes estrangeiros, os escritórios‑mãe da Feedzai mantém-se em Portugal. Seja qual for a nacionalidade ou escola de origem dos novos engenheiros, é a Lisboa que vêm aprender o segredo do negócio. E é daqui que partem para o resto do mundo.

ENGENHARIAS PARA TODOS OS GOSTOS
E se o seu filho chegasse a casa e lhe dissesse que queria estudar Engenharia da Sustentabilidade? Não haveria razão para alarme: teria apenas de ir estudar na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real, onde também existe uma licenciatura em Engenharia das Energias Renováveis. Engenharia da Segurança no Trabalho, da Instrumentação e Metrologia, de Madeiras, de Máquinas Marítimas e da Proteção Civil são outros dos mais de trezentos cursos universitários e politécnicos em Portugal com o termo «Engenharia» no nome. A lista nunca mais acaba.

ENGENHARIA DESTRONA MEDICINA
Em 2016, cinco dos dez cursos universitários com médias de ingresso mais altas em Portugal foram de Engenharia.

1.º – 18,53 valores – Engenharia Aeroespacial – Instituto Superior Técnico
2.º – 18,53 valores – Engenharia Física e Tecnológica – Instituto Superior Técnico
3.º – 18,48 valores – Engenharia e Gestão Industrial – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
4.º – 18,40 valores – Medicina – Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
5.º – 18,25 valores – Medicina – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar
6.º – 18,20 valores – Bioengenharia – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
7.º – 18,17 valores – Medicina – Universidade do Minho
8.º – 18,05 valores – Matemática -Instituto Superior Técnico
9.º – 17,98 valores – Medicina – Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
10.º – 17,95 valores – Engenharia Biomédica – Instituto Superior Técnico

FONTE: MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ENSINO SUPERIOR