Estas famílias são muito modernas

Texto Ana Pago | Fotografias Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens

A caminho da escola, com a lancheira atestada de bolachas que ela própria fez, Anita Piangers é uma menina de 12 anos como as outras, adulta para a idade. Fala com naturalidade da morte e do espaço. Nunca acreditou no pai natal, ao contrário da irmã Aurora, de 5 anos, que jura existirem unicórnios.

«Comecei a anotar as histórias das minhas filhas como um jornalista documenta o que vai vivendo», diz Marcos Piangers, o pai e jornalista brasileiro que tem quase um milhão de seguidores no Facebook e vídeos na internet vistos mais de trinta milhões de vezes.

«Registava frases engraçadas, episódios emocionantes, depois arquivava com medo de expor o que estava sentindo.» Anita partilha dessa reserva: «Eu lido com a exposição desde que tinha a idade da Aurora, já fui me acostumando. Mas sempre é estranho.»

Ana Cardoso e Marcos Piangers, com as filhas Anita e Aurora. A família é fonte de inspiração para crónicas, palestras, livros e vídeos do jornalista brasileiro sobre paternidade.

E é muito natural haver estes receios quando temos os olhos do mundo postos em nós, garante Paulo Vitória, professor na Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior. Temores de quem expõe e dos que se tornam mediáticos por arrasto, sobretudo filhos e cônjuges.

«Na era do individualismo, estamos mais sociais do que nunca. Mudamos coletivamente», diz o psicólogo, considerando este fator importante para explicar o aumento de problemas emocionais e mentais.

«Por um lado, divertimo-nos juntos, partilhamos alegrias e tristezas.» Construímos uma certa forma de inteligência coletiva que é uma riqueza para todos. «Por outro, há o risco de se sobrepor a esfera pública e privada, com conflitos resultantes de essa fronteira estar mal definida.»

Enquanto Marcos incita os homens a estarem mais presentes na vida dos filhos, Ana diz às mulheres que ninguém é tão feliz como parece no Instagram.

Anita nasceu em 2005, Aurora em 2012, Marcos rabiscava e guardava para si. «Levei um tempão para colocar um texto desses no meu Facebook. Achava os comentários muito agressivos nas redes sociais», diz o autor.

Entretanto ia publicando no jornal Zero Hora, colunas tímidas com um impacto crescente, sem imaginar que daí viriam os livros bombásticos O Papai É Pop em 2015 – chegado a Portugal como O Pai É Top (ed. Planeta), em março de 2017 – e O Papai É Pop 2. Também a mulher, Ana Cardoso, jornalista como ele, escrevia sobre as filhas para que a família dispersa acompanhasse o crescimento. E, claro, como catarse: a maternidade sempre foi mais pesada para a mulher e isso mexe-lhe com os nervos.

«Chorei muito depois de as meninas nascerem, nem sempre de felicidade. Muitas vezes era de frustração e desespero», assume, cansada de ver mães esmagadas pela culpa de não serem perfeitas.

Enquanto Piangers incita os homens a estarem mais presentes na vida dos filhos, tornando-se os pais-heróis que os miúdos acreditam que eles são, ela escreveu A Mamãe É Rock para dizer às mulheres que ninguém é tão feliz como parece no Instagram: na vida real há depressão pós-parto, discussões, até piolhos.

Marcos já postava fotos da família no Instagram desde 2010. Em 2015, contudo, os Piangers começaram a acusar o peso da exposição.

«Esta coisa pública não me é natural. Inquietam-me as multidões nas sessões de autógrafos, os possíveis ataques de ódio na internet», diz Ana. Ainda assim, aproveita aquela voz de longo alcance para falar de feminismo, consumo, desabafos, conquistas, causas.

«É importante eu produzir conteúdo, ter controlo sobre a minha imagem, porque assim as pessoas não vão inventar, me espiar ou perseguir. Quem gostar de mim vai vir junto comigo», diz a mamãe rock.

Marcos já postava fotos da família no Instagram desde 2010. Em 2015, contudo, os Piangers começaram a acusar o peso da exposição, a ponto de ele próprio se sentir julgado ao beber uma cerveja na rua.

«A Aurora adora este reconhecimento público mas a Anita foge das fotos e prefere não frequentar os eventos em que a gente vai atender os fãs. Me pediu, inclusive, que escreva menos sobre ela no concreto, o que estou fazendo há mais de um ano. Entendo a sua vontade de privacidade com o aproximar da adolescência.»

Sónia Morais Santos é a autora do blogue «Cocó na Fralda». O marido, Ricardo, e os filhos Manuel, Martim, Madalena e Mateus estão sempre presentes.

Sónia Morais Santos também entende. Em 2015 entregou a carteira de jornalista para ser a «Cocó na Fralda» a full-time. «A aventura de sermos uma família web começou em janeiro de 2008. Eu tinha saído do Diário de Notícias e era editora executiva da Time Out Lisboa, onde tinha por colega a Ana Garcia Martins, que já era autora do blogue A Pipoca Mais Doce.»

Mãe de quatro filhos – Manuel de 15 anos, Martim de 12, Madalena com 8 e Mateus com 2 –, casada com Ricardo Branco, diretor comercial, Sónia contava as peripécias de Martim quando ainda era ele o mais novo, sem crer que teriam êxito num blogue. «Um dia cedi à Pipoca e lá o criei. Acreditava tanto que ia ser alguma coisa que até lhe chamei Cocó na Fralda. Agora estou bem arranjada com este nome.»

De resto, não sente que haja uma sobre-exposição: os mais velhos deixaram de aparecer, a não ser por vezes uma piada ou uma resposta mais bem dada. Se porventura sucede algum episódio que lhe apetece contar, pergunta-lhes se se importam que partilhe. Não se sabe em que área está o Manel, se são bons ou maus alunos, se saem à noite. Se têm namorada ou namorado, se alguma vez beberam, nada. «Justamente porque têm as suas vidas e não têm de as ver expostas no blogue da mãe», diz.

Segundo Eduardo Sá, os pais têm a obrigação de fazer exercícios de síntese. Falar das suas experiências em abstrato, sem instrumentalizar as crianças.

Com os pequenos são histórias amorosas, aquelas frases típicas que deslumbram, não lhe parece que seja um problema. Tudo o mais são cenas da vida doméstica, tão banais que as há em todas as casas. «O que é nosso, da nossa esfera íntima, não aparece. Já não.»

Faz bem. Segundo o psicólogo clínico Eduardo Sá, os pais têm a obrigação de fazer exercícios de síntese. Falar das suas experiências em abstrato, sem instrumentalizar as crianças – que considera estar ao nível do trabalho infantil e, como tal, devia ser taxado duramente.

«Somos das melhores famílias que a humanidade já teve, vaidosos como pais. As mães, então, nem se fala! Mas quando se escreve de forma sintética estamos a falar de nós, e temo que os pais nem sempre meçam todas as consequências que isso tem para os filhos hoje, amanhã e depois.» É um equívoco que o tira do sério: poder confundir-se simplicidade e autenticidade com as manifestações de exibicionismo que vai vendo na internet.

Catarina Beato, autora do blogue «Dias de Uma Princesa», tem na família a principal matéria-prima de reflexão. O marido Pedro e os filhos Gonçalo, Afonso e Maria Luiza são os seus protagonistas.

Também essas deviam ser taxadas, e bem, concorda Catarina Beato, autora do blogue «Dias de Uma Princesa» desde 2005, quando ainda mal havia bloggers em Portugal.

«Demorei bastante a escrever um post sobre adolescência porque queria dizer o que de facto sinto – todos os medos, o cansaço – sem falar da vida do meu adolescente em particular», diz a antiga jornalista de economia, mãe de Gonçalo, 15 anos, Afonso de 6, e Maria Luiza com 1.

Pensa muitas vezes nas atrizes que fazem filmes pornográficos: com que olhos as verão os filhos, se os tiverem? Que efeitos terá neles a exposição? «Claro que nós não estamos nesse nível, mas a questão coloca-se na mesma. Um blogue é como ter um diário no meio da casa. Sabemos que qualquer pessoa pode abrir e ler.»

Na dúvida, Catarina Beato nunca escreve no blogue nada que não pudesse dizer, olhos nos olhos, a alguém da família.

Na dúvida, nunca escreve ali nada que não pudesse dizer, olhos nos olhos, a alguém da família. Nada que não expusesse num café se conversasse em voz alta com uma amiga, sendo que ela é mulher de poucos tabus.

«Vou gerindo em família, ciente de que o Afonso adora aparecer, quer ser youtuber, e o Gonçalo, tímido, já não.» O marido, Pedro de Góis, repórter de imagem na SIC, respeita-a ao máximo, fascinado com a facilidade com que desbloqueia tópicos tão diversos como alimentação, sexo (muito contida na linguagem por causa dos miúdos), birras, amar filhos que não são nossos, peso, poupança, viagens ou parto natural – chegou a partilhar um vídeo do seu último, editado da versão integral, por ser uma causa que defende desde sempre.

«Sinto imensa energia das pessoas. Preocupam-se a sério com a minha família. O facto de passarem a falar mais destes assuntos motiva-me a avançar com o blogue, embora haja outras que só estejam à espera da menor contradição para nos caírem em cima.»

E não, as críticas não lhe são indiferentes. Nem a ela nem a Sónia Morais Santos, que precisa de estômago para ler certos comentários que lhe escrevem no conforto do anonimato: «Uma vez, quando o meu filho mais velho caiu e partiu os dois braços, o maxilar e o queixo, houve uma alma doente que disse: “Teria sido melhor que ele morresse para aumentarem as receitas de publicidade.” Nesse dia pensei que ia fechar aquilo, não estou para aturar doentes», recorda indignada.

«Deixei-me dos desabafos de coração aberto que fiz durante algum tempo. Fora isso, agarro-me às coisas boas», diz Sónia Morais Santos.

Felizmente, sobressaiu o lado bom: dois por cento de comentários ruins podiam pouco contra 98 por cento de gente normal, que também deixa críticas mas não insultos. «Há dias em que leio, apago e esqueço. Noutros, se estou sensível, custa-me mais.» Porém, regra geral, acredita que aprendeu a lidar com a mesquinhez. Desenvolveu uma carapaça digna de tartaruga.

«Deixei-me dos desabafos de coração aberto que fiz durante algum tempo. Fora isso, agarro-me às coisas boas.» Ao Clube de Leitura que criou e tem devolvido tanta gente ao prazer dos livros. Aos amigos que tem feito. Ao momento em que conseguiu, através do blogue, que o hospital privado Cuf Descobertas passasse a aceitar todos os pais na cesariana das suas mulheres.

E o que procuram, de facto, os seguidores destas famílias web? «Alguém com experiências semelhantes para se informarem das questões da vida familiar», diz a socióloga Ana Jorge, professora de Comunicação na Universidade Católica e investigadora do tema mummy bloggers.

Procuram orientar-se na gravidez, no que vem depois. Conselhos sobre utilidades e serviços. «Talvez partilharem as suas próprias experiências em jeito de fórum, uma ideia que estava na génese da internet e entretanto se perdeu enquanto tal.» Certo, diz, é que esta área da blogosfera cresceu bastante em número e impacto nos últimos anos, com novas figuras a surgir, novas celebridades online, novos mercados e até novas formas de estar.

Tomás e Matilde, Maria Francisca e Maria do Carmo, dois pares de gémeos que estão constantemente nas páginas do blogue da mãe, Mariana Seara Cardoso, especialista em marketing digital e autora de «Aos Pares».

Pela parte que toca a Mariana Seara Cardoso, existe claramente «uma vida antes e depois do blogue», garante a criadora do «Aos Pares» após ter tido dois pares de gémeos: Tomás e Matilde, de 3 anos, e Maria Francisca e Maria do Carmo, de 2.

Começou logo por ser transformador ao permitir-lhe estar com os filhos em casa, a vê-los crescer. «Sempre trabalhei com o digital, em marketing de marcas. Aqui o que fiz foi lançar a minha marca e passar a trabalhar para mim», conta a mãe, incapaz de se ficar pelos biberões e as pilhas de roupa. «Ter gémeos é espetacular, mas com quatro bebés um de nós tinha de ficar com eles. E eu não queria parar.»

Sem expetativas, Mariana lançou-se ao blogue, agradecida pela distração. Tinha capacidade para contar histórias e envolver o público – um ponto que a investigadora Ana Jorge considera decisivo para o sucesso.

«De repente, isto tomou uma proporção gigante», confessa Mariana Cardoso. É patroa e empregada de si mesma, ativa em projetos e eventos para ter novidades todos os dias.

Discute assuntos atuais na praça pública – outro ponto a seu favor. Apoia-se em especialistas para oferecer conselhos de saúde e produtos aos leitores – decisivo num mundo global em que as pessoas buscam estas referências dos opinion makers.

«De repente, isto tomou uma proporção gigante», confessa a blogger. É patroa e empregada de si mesma, ativa em projetos e eventos para ter novidades todos os dias. Foi a melhor decisão que tomou na vida. «Sou muito mais feliz assim. Completa. Realizada. Não sinto falta de nada do que tinha antes.»

Ao mesmo tempo que a privacidade se tornou um valor institucionalizado, as pessoas expõem-se como não faziam no passado.

E isto porque a internet tem vindo a aproximar as relações virtuais das reais, desenvolvendo mecanismos que favorecem a interação, explica o psicólogo Paulo Vitória. «Como seres sociais que somos, sempre vivemos em espaços mais ou menos públicos. A diferença agora é que as redes sociais são determinantes no espaço público dos nossos dias», diz. E aqui surge um paradoxo interessante: ao mesmo tempo que a privacidade se tornou um valor institucionalizado, as pessoas expõem-se como não faziam no passado.

«Público e privado sempre se cruzaram na vida social, com limites que nunca foram, nem nunca serão, muito claros. Basta lembrar como se desenvolvem as relações nas aldeias: com uma boa dose de coscuvilhice e bastantes atritos.»

As experiências e histórias em torno da paternidade já valeram a António Raminhos um livro, espetáculo e uma série de vídeos no YouTube, todos com o mesmo nome: As Marias. Catarina, a mãe, também tem um blogue: «7 da Tarde e Ainda Não Lavei os Dentes».

Para o humorista António Raminhos, uma e outros eram dispensáveis. Pai de três meninas – Maria Rita de 7 anos, Maria Inês de 5 e Maria Leonor de 1 –, as brincadeiras com as filhas já lhe valeram um livro e um espetáculo, ambos chamados As Marias.

Também lhe valem insultos pelos vídeos que publica no YouTube, a fazer parvoíces com as miúdas ou a estragar-lhes os jogos, mas a esses nem liga. «Já pensei em largar isto por elas. Falo muito da exposição das nossas filhas com a minha mulher, Catarina, mas aqueles vídeos somos nós a divertir-nos em família. São memórias.»

Às vezes arrelia-as e elas choram, como se arreliam e choram entre si nas brincadeiras de irmãs. «Sou pai, não lhes causo angústias. Ali só as tiro um bocadinho do sério.»

Se António Raminhos provoca algumas situações por achar que dão coisas giras, na maioria das vezes está apenas a brincar com as filhas e o vídeo surge naturalmente.

Raminhos sempre ouviu dizer que quando nasce um bebé, nasce um blogue de mãe – é capaz de ser verdade. Catarina tem o seu, «7 da Tarde e Ainda Não Lavei os Dentes», no qual desabafa sobre aniversários, escola, eventos e muito mais (três crianças e um marido traquinas dão pano para mangas).

Quanto a ele, há muitos filmes que não faz, fotografias que não revela. Se provoca algumas situações por achar que dão coisas giras, na maioria das vezes acontece o contrário: está a divertir-se com as Marias e zás, o vídeo surge naturalmente.

«Já perguntei às mais velhas se as importunavam na escola, mas não: gozam é comigo.» Ao fim de cada sessão de tropelias com as filhas, sai dali leve e feliz. Como pedir desculpa a quem quer que seja pela melhor parte da sua vida?