Essa prenda debaixo da árvore não é o que parece

Notícias Magazine

Texto Maria Espírito Santo | Fotografia de Shutterstock

Novembro de 1912, Nova Iorque. Um grupo de mulheres, assistentes de loja, declara guerra contra o consumismo. «Sê uma spug e para com as tolas prendas de Natal!» A ordem chega às páginas do The New York Times e até ganha aliados de peso ­– como Theodore Roosevelt (na altura já ex­‑presidente dos EUA) que foi o primeiro homem a juntar­‑se à luta. A SPUG – Society for the Prevention of Useless Giving (Sociedade para a Prevenção da Oferta de Presentes Inúteis) foi criada por mulheres trabalhadoras que estavam fartas de gastar uma fortuna (era hábito investir duas semanas de salário) em prendas para os chefes. Não era obrigatório, mas toda a gente o fazia – esperando dos superiores simpatia e tolerância, como recompensa.

Era um gesto bonito, embrulhado em convenções e hierarquias. Mas não aconteceu só em Nova Iorque – nem é uma questão que se restringe ao início do século xx. O sentimento soa­‑lhe familiar? É porque é. Hoje, como desde sempre, o homem tem usado as prendas para criar laços e comunicar. São regras que todos seguimos. Por isso nos sentimos obrigados a devolver um presente na mesma moeda – que tenha mais ou menos o mesmo valor daquela que recebemos – ou nos julgamos para sempre em dívida quando recebemos algo de alguém, pela primeira vez. Mas já lá vamos.

Da forma ao conteúdo, eles falam por si. Quem oferece um presente está a demonstrar a importância dessa pessoa e a confirmar a continuidade da relação. Mas uma coisa é certa: quem toma a iniciativa fica com o poder.

Dar, receber e retribuir são os três gestos essenciais para viver em comunidade. Quem os identificou foi o sociólogo e antropólogo Marcel Mauss que em 1925 publicou o Ensaio sobre a Dádiva. Aqui, o pensador francês estuda as tribos do Noroeste americano e da Melanésia e Papua-Nova Guiné (Oceânia), por exemplo: «O que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de mais, amabilidades, festins, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras.»

Para quem dá, o presente é uma forma de mostrar o que pensa sobre o presenteado e, ainda de, afirmar a sua própria identidade.

Chamava­‑se potlatch, o presente por excelência, que mantinha estreitas as ligações entre grupos e famílias. A palavra que significa «alimentar» consistia num banquete que servia para impressionar e desafiar o convidado – que devia devolver o gesto com maior grandeza. É um ritual com regras e consequências: «Recusar­‑se a dar, negligenciar o convite ou recusar receber equivale a declarar guerra; é recusar a aliança e a comunhão», continua Mauss.

De As Meninas, que Diego Velázquez ofereceu ao rei Filipe IV, aos ovos Fabergé (de ouro e pedras preciosas) oferecidos pelo czar Alexandre III à imperatriz, ou mesmo o cavalo de Troia entregue por gregos a troianos, a história está repleta de grandiosos presentes, cada um com a sua mensagem: é preciso lê­‑la.

Prendas e mensagens

Da forma ao conteúdo, eles falam por si. Quem oferece um presente está a demonstrar a importância dessa pessoa e a confirmar a continuidade da relação. Mas uma coisa é certa: quem toma a iniciativa fica com o poder. «O primeiro presente é dado em completa espontaneidade; tem liberdade sem dever, mesmo sem o dever da gratidão», diz o sociólogo Barry Schwartz, autor de The Social Psychology of the Gift – ou a psicologia social do presente, publicado no American Journal of Sociology, em 1967.

Mas torna­‑se mais complexo: para quem dá, o presente é uma forma de mostrar o que pensa sobre o presenteado e, ainda de, afirmar a sua própria identidade. «Um exemplo extremo deste tipo de autoapresentação é a demonstração da masculinidade através da oferta de charutos, no nascimento de um bebé.»

As trocas de prendas formam autênticas redes de relações que, juntas, são retrato de uma comunidade.

Assim, os objetos têm significado dentro da relação e fora dela. As prendas que o homem oferece à mulher e aos filhos são uma forma de mostrar prestígio publicamente. As trocas de prendas formam autênticas redes de relações que, juntas, são retrato de uma comunidade. Foi o que aconteceu em Muncie, no estado do Indiana (EUA), estudada nos anos 1920 e 30 e recuperada para análise nos anos 60. Theodore Caplow, um dos últimos sociólogos a refletir sobre a vida naquela cidade, chegou a várias conclusões sobre as práticas dos habitantes – e sobre a troca de prendas no Natal.

A reciprocidade não se aplica entre indivíduos que não estão ao mesmo nível: uma criança não retribui o presente dos pais, assim como um médico não o faz com uma prenda de um paciente.

Percebeu que a proximidade e intimidade são relevantes: se, por um lado, só se presenteia avós e netos quando vivem por perto, por outro, não é obrigatório trocar prendas entre irmãos. Que os valores e as dimensões das prendas definem limites: o presente a um sobrinho nunca pode ser de maior valor do que aquele que é dado a um filho e os valores das prendas entre marido e mulher não têm de ser equivalentes – aliás, normalmente o homem gasta mais com a mulher do que o inverso. Ou, ainda, que a reciprocidade não se aplica entre indivíduos que não estão ao mesmo nível: uma criança não retribui o presente dos pais, assim como um médico não o faz com uma prenda de um paciente.

É uma espécie de acordo silencioso – afinal, quando questionados, os participantes não admitiram a existência de regras. A prenda não é mais do que um gesto de «ficção, formalismo e mentira social» com «obrigação e interesse económico», diria Marcel Mauss. Mas o gesto pode ser sincero e valer só por si: quem tem animais é exemplo disso, dado que não espera nada em troca. Segundo um estudo da BarkBox (empresa norte­‑americana de produtos para cães), cerca de 80 por cento dos donos vão comprar um presente para os seus animais neste Natal.

Carnaval em Dezembro

Ouro, incenso e mirra. Foram as três prendas que Jesus recebeu quando três reis magos o visitaram, há mais de dois mil anos, numa manjedoura, algures em Jerusalém. E é para celebrar o momento que os católicos festejam o Natal e trocam presentes, entre familiares e amigos – apesar de não existir consenso sobre a data de nascimento nem sobre a visita dos reis.

Assim sendo, a troca de presentes pode estar relacionada com outros momentos da história. Em The Battle for Christmas (ou A Batalha pelo Natal, finalista do prémio Pulitzer em 1997), Stephen Nissenbaum, professor e historiador, argumenta que o mês de dezembro como o conhecemos (com direito a troca de lembranças no conforto do lar e em família) só terá surgido, nos EUA, no final do século xix, como forma de apaziguar a instabilidade social. Antes disso, o último mês do calendário era igual a exagero. «Era um período de muita bebida, altura em que as regras que governavam a ordem pública eram, por momentos, abandonadas em favor de um “carnaval” sem restrições», descreve.

De As Meninas, que Diego Velázquez ofereceu ao rei Filipe IV, aos ovos Fabergé (de ouro e pedras preciosas) oferecidos pelo czar Alexandre III à imperatriz, ou mesmo o cavalo de Troia entregue por gregos a troianos, a história está repleta de grandiosos presentes, cada um com a sua mensagem. É preciso lê­‑la.

A situação na Europa, entre os séculos XVI e XIX, era semelhante. Num período de escassez de alimentos, dezembro não só era a época de descanso para os trabalhadores da terra mas também o período de matar os animais e da cerveja e do vinho ficarem no ponto para consumo. Com tamanha fartura, gerava­‑se a desordem e até havia agressões e roubos.
E mais: os homens vestiam­‑se de mulheres e as mulheres de homens. Uma confusão que apoquentava os puritanos que chegaram a proibir os festejos de Natal – em Massachusets, durante o século XVII, eram puníveis com multa.

E a inversão de papéis continuava: os pobres estavam no direito de exigirem presentes aos abastados – comida, bebida ou mesmo dinheiro. E os donos das casas eram obrigados a abrir as suas portas, explica Nissenbaum, numa «espécie de open­‑house» dos tempos antigos.

A era de Nicolau

O século xix foi decisivo para criar o Natal de hoje. Primeiro, porque a criança conquistou um estatuto especial: afinal, na Idade Moderna, praticamente não existia infância – aos 12 anos já se podia casar ou mudar de país. E também porque a Revolução Industrial permitiu que se criasse uma indústria dos brinquedos. A mudança era verdade, também em Portugal, como descreve Rui Cascão na História da Vida Privada em Portugal – A Época Contemporânea: «No último quartel do século xix, a época era propícia a dar presentes às crianças. Na capital, a sensação de abundância estendia­‑se também às lojas de quinquilharias, que armavam árvores de Natal, onde eram pendurados inúmeros brinquedos modernos e sofisticados.»

Prendas, Pai Natal e árvore – o elemento que faltava para completar a trilogia natalícia. A Portugal chegou no final do século XIX, primeiro aos espaços públicos e, só mais tarde, a cada casa.

E, finalmente, nasceu o Pai Natal. São Nicolau ganhou uma aparência universal, depois de anos a assumir várias formas e feitios. Nissenbaum aponta a importância da caricatura de Thomas Nast, divulgada em 1860, para popularizar um Pai Natal bonacheirão, sorridente e barbudo. Barry Schwartz lembra a relevância sociológica da figura, para entender a influência de quem oferece: «Os seus poderes de vigilância são anualmente explorados pelos pais enquanto instrumentos de controlo sobre as suas crianças.»

Prendas, Pai Natal e árvore – o elemento que faltava para completar a trilogia natalícia. A Portugal chegou no final do século XIX, primeiro aos espaços públicos e, só mais tarde, a cada casa. O resto é história: se um dia a Revolução Industrial trouxe mais brinquedos às crianças, a revolução tecnológica trouxe os adultos para o centro da troca dos presentes. Numa sociedade cada vez mais de consumo, as listas crescem e as preocupações pré‑natalícias também. Revemos Marcel Mauss para um conselho final: «Sair de si, dar, livre e obrigatoriamente; não há risco de engano.» As palavras do sociólogo tornam­‑se mantra quando recupera um provérbio maori (povo da Nova Zelândia): «Ko Maru kai atu/Ko Marua kai mai/ ka ngohe ngohe.» «Dá tanto quanto recebes e tudo estará bem.»