António Montez, a Espingardaria Central e as armas que mataram os reis de Portugal

Texto de Luís Pedro Cabral | Fotografia de Gerardo Santos/Global Imagens

O outono de 1907 corria para o fim. Portugal estava mergulhado numa crise política e económica profunda. Mas, visto de trás do balcão do número três da Praça D. João da Câmara, ao Rossio, Lisboa passeava-se dentro do seu melhor fato, exibindo o esplendor da sua modernidade.

Desfilavam damas compostas, cavalheiros, artistas. Trocavam-se cumprimentos, teciam-se conspirações, de perna cruzada na esplanada do costume, ao abrigo do ritmo imparável da urbanidade, que concentrava nesta circunferência uma amostra transversal do reino. O primeiro elétrico, inaugurado em 1901, faiscava com orgulho pelas ruas.

O Elevador de Santa Justa, inaugurado um ano depois, pedia meças em elegância às mais nobres capitais da Europa. Descendo do Avenida Palace, entre a Estação do Rossio e o Teatro D. Maria II, ficava – e fica – a Espingardaria Central. António Duarte Montez, aprendiz de sonhador e fiel empregado da Espingardaria Central, tinha vista privilegiada para o coração da cidade.

Foram armas da Espingardaria Central que mataram el-rei D. Carlos e o príncipe D. Luís Filipe. Em pleno Terreiro do Paço.

Um dia, entrou na loja um distinto cavalheiro, com um pedido específico. Francisco de Herédia, o primeiro visconde de Ribeira Brava, queria nove carabinas Winchester, do melhor em matéria de armas de repetição, que foram encomendadas à Casa Monkt Cª Lda, de Hamburgo.

E umas quantas pistolas FN Browning, que viriam da Bélgica. No dia 1 de fevereiro de 1908, António Montez percebeu a razão da encomenda. Foram aquelas armas que mataram el-rei D. Carlos e o príncipe D. Luís Filipe. Em pleno Terreiro do Paço, a monarquia fora deposta à lei da bala, com munições batizadas do ideal republicano, provenientes do que de mais moderno havia de armamento.

A polícia vasculhou a Espingardaria Central de ponta a ponta. António Montez foi detido para averiguações. O rapaz estava em Lisboa fazia dois anos. Os interrogadores podiam ter a certeza de que se tratava de uma teia dramática de coincidências, as que o colocaram perante o visconde de Ribeira Brava.

E teriam de viajar no tempo e no espaço até ao distrito de Santarém, ano da graça de 1885. António Duarte Montez nasceu no âmago de gente simples, no lugar de Alcanede, onde cresceu até completar 14 anos, quando a família o mandou para Santarém, para trabalhar numa loja de ferragens de um tio, que lhe deu ofício e hospedagem. Mas o mundo da ferragem era pequeno para ele.

Do mundo, pouco sabia senão através dos mirabolantes relatos que lhe fazia de Lisboa o mais distinto cliente da casa. O senhor Gonçalo Heitor Ferreira vivia em Lisboa, mas vinha frequentemente a Santarém abastecer-se na loja. Fez amizade com o rapaz, injetando-lhe lentamente um duplo fascínio: a magia da metrópole, como chamavam a Lisboa, e os infinitos mistérios das armas, os seus incríveis mecanismos de precisão. Ávido de aprendizagem, António queria saber tudo sobre ambas.

Em 1902, Heitor Ferreira cumpriu um sonho antigo, estimulado pela vida quotidiana no mais central dos locais para o negócio das armas. Ou para outro qualquer. Inaugurou a Espingardaria Central, sita no Largo de Camões (mais tarde Praça D. João da Câmara), ao Rossio. O negócio floresceu, consolidando num ápice o prestígio da casa. Muito mais do que uma loja de armas e respetivas munições, foi adquirindo estatuto de ponto de encontro das mais distintas franjas da elite lisboeta.

Heitor Ferreira não tinha descendentes nem família próxima. Precisava de um ajudante. Alguém de confiança, pois o métier não era para menos… Em 1905, António Montez chegou a Lisboa. Tornou-se estudioso das armas. Conhecia todas as marcas e calibres, todas as formas e feitios, do mais simples ao mais complexo dos mecanismos. Aprendeu a escutar e a encontrar o tempo certo para fazer perguntas. A mesma coisa que não lhe permitiu duvidar das boas intenções do senhor visconde.

Quando não estava na espingardaria ou na carreira de tiro, António Montez estaria no Ateneu Comercial, revigorando corpo e mente nas mais diferentes modalidades, do futebol aos pesos e halteres, da luta greco-romana ao jogo-do-pau.

Até à ocasião, nunca o tinha visto em pessoa. As autoridades acabaram por concluir que o empregado da Espingardaria Central não era ponto nos nós do regicídio. Não se tratava de um conspirador, o rapaz. Podia ir à sua vida, senhor Montez. Não foi preciso dizer duas vezes. No caminho, António não deixou de pensar na ironia da situação. Foi no curto reinado do rei D. Carlos que a prática do tiro conheceu maior estímulo, sendo o monarca um entusiasta caçador.

Parecia que o próprio tempo tinha feito parte da conjura. É por decreto do rei D. Carlos que em 1883 é formado o Grupo Pátria, o mais antigo clube de tiro português, onde António Montez entrou logo em finais de 1905. E ao qual ficaria para sempre ligado. Mais tarde, passou a designar-se Sociedade de Tiro n.º 2, que tinha a sua carreira de tiro no Ateneu Comercial de Lisboa – funciona hoje em dia na Estrada de Benfica.

À época, porém, não podia estar mais bem situado, para quem trabalhava na Espingardaria Central e tinha pelas armas verdadeira paixão. Em 1906, António Montez já era atirador de primeira classe.

António da Silva Martins, amigo, médico emérito e colaborador de Egas Moniz, foi considerado o atleta português mais completo de sempre.

Quando não estava na espingardaria ou na carreira de tiro, estaria com certeza no Ateneu Comercial, revigorando corpo e mente nas mais diferentes modalidades, do futebol aos pesos e halteres, da luta greco-romana ao jogo-do-pau. E, como não podia deixar de ser, a esgrima. A Espingardaria Central, aliás, vendia igualmente material de esgrima.

Quanto mais o tempo passava, no longo banho-maria para a Primeira Guerra Mundial, mais a Espingardaria Central perdia o seu aprendiz, ganhando um especialista e conselheiro de armas. António Montez gostava de estimular o convívio na Espingardaria Central, onde praticamente funcionou a sede da Sociedade de Tiro n.º 2, encontrando-se ali todos os dias os melhores atiradores portugueses, quando não estavam nos cafés Gelo ou Beira-Gare, pontos de encontro míticos da Baixa.

Entretanto, os dotes desportivos de Montez tornavam-se cada vez mais evidentes. No tiro, alcançou o primeiro prémio em 1913. Iniciou-se uma coleção. Infindável. No tiro desportivo e na esgrima era difícil encontrar rival que, aliás, era palavra que não tinha lugar no seu léxico. E em quase todas as modalidades que praticava assumiu responsabilidades diretivas, como aconteceu no grupo desportivo do Ateneu Comercial, na Federação Portuguesa de Luta, Pesos e Halteres, na Federação Portuguesa de Esgrima e Federação Nacional do Tiro Português.

O tempo começou a escassear, mas nunca para a Espingardaria Central, que era para ele uma espécie de religião. Em 1919, com a Europa a reerguer-se entre as cinzas de quatro impérios, pairavam já em Portugal legítimos sonhos olímpicos. As Olimpíadas de 1916, marcadas para Berlim, por razões óbvias não se realizaram.

Nesta altura, António Montez era já mestre atirador em várias disciplinas do tiro. E estava igualmente escalado para cumprir um sonho: representar Portugal nos Jogos de 1920, em Antuérpia. Curiosamente, outro sonho se sobrepôs.

Foi na capital francesa que António Montez se transformou no primeiro mestre atirador olímpico português, classificando-se em trigésimo na prova de pistola de velocidade a 25 metros.

O atirador teve de ficar em Lisboa, para tratar de um assunto inadiável. O mesmo que transformou a «Espingardaria Central» em «Espingardaria Central A. Montez». Desde aí, nunca saiu da família. Era na sua loja e na Sociedade de Tiro n.º 2 que tinha os seus melhores amigos. O melhor destes era também o seu mais temível adversário no tiro desportivo.

António da Silva Martins, esse amigo, médico emérito e colaborador de Egas Moniz, foi considerado o atleta português mais completo de sempre. Era o pai de António Gentil Martins, que havia de seguir os seus passos, na medicina e no Olimpo. Por causa do trespasse da espingardaria, Montez não pôde acompanhar o amigo António Martins aos Jogos Olímpicos de Antuérpia, ficando desde logo a promessa de que viajariam juntos para Paris, em 1924, assim os tiros permitissem.

E foi na capital francesa que Montez se transformou no primeiro mestre atirador olímpico português, classificando-se em trigésimo na prova de pistola de velocidade a 25 metros. Em 1928, nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, António Montez estava também entre o lote dos atiradores. Mas nessas Olimpíadas a modalidade de tiro foi excluída. Nada que impedisse António Montez de ampliar o seu pecúlio de títulos, só interrompidos por António Martins, mais novo, que estava no auge.

A Espingardaria Central A. Montez fez a travessia da monarquia para a república, as duas guerras mundiais, o Estado Novo, a guerra colonial, a revolução, a democracia.

A competição, porém, apenas sedimentava a amizade que os unia. Foi um acidente na carreira de tiro de Pedrouços que quebrou este laço. António Martins, homem meticuloso, estava a acertar a mira da sua carabina, esquecendo-se de que esta estava carregada. A bala perdida que disparou contra si deixou uma viúva e três órfãos: Francisco, Alice e António Gentil Martins, que tinha poucos meses de vida. Desde esse fatídico 3 de outubro de 1930, António Duarte Montez nunca deixou de usar um laço negro. E, discretamente, nunca perdeu o trilho à família Gentil Martins.

«Tinha 13 anos (1943) quando António Montez apareceu na minha vida, entusiasmando-me para o tiro», recorda António Gentil Martins, hoje com 82 anos. «As armas e as munições eram muito caras e eu não tinha dinheiro. Devo a ele a minha participação nos Jogos Olímpicos de 1960, em Roma. Era o meu tutor e patrocinador. Chamava-lhe “pai” Montez.» Em sessenta anos de competição, Montez ganhou mais de duzentas medalhas, em várias modalidades.

Em 1965, com 80 anos, ficou em terceiro lugar no Campeonato Nacional de Tiro com pistola de guerra. Morreu três anos depois. A Espingardaria Central A. Montez fez a travessia da monarquia para a república, as duas guerras mundiais, o Estado Novo, a guerra colonial, a revolução, a democracia.

Foi passando de pai para filho, até chegar a António José Neves Montez, o atual proprietário, neto de António Duarte Montez. José Montez é o guardião do imenso espólio da família. Não quer aparecer, não gosta de ser fotografado, por modéstia. «Não quero ocupar o espaço de quem mais merece na história desta casa. É a minha forma de homenagem aos meus antepassados.»