Emílio Braga: os cadernos que nasceram há cem anos em Lisboa e agora conquistaram o mundo

Texto Sofia Teixeira | Fotografias Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Para onde quer que se olhe há papel. Cortado, por cortar, pautado, liso, quadriculado, com lombadas pintadas e capas com cores e padrões variados. Aqui, num discreto armazém no Prior Velho, perto do Aeroporto Humberto Delgado, com loja à frente e fábrica atrás, faz­‑se aquele a que têm chamado «o genuíno caderno português». E se assim lhe chamam é porque esta é uma das mais antigas marcas portuguesas de cadernos e estacionário no ativo: o centenário será comemorado no próximo ano.

Fundada por Emílio Braga, as papelarias nasceram na Rua Nova do Almada, em Lisboa, em 1918, e chegaram a ser consideradas das melhores do país. Era das suas oficinas tipográficas que saíam para Portugal inteiro os cadernos adequados aos usos comerciais, contabilísticos e legais da época. Numa altura em que tudo passava pelo registo em papel.

Hoje, alguns destes livros ainda são obrigatórios – livros de ponto, livros de registo de trabalho suplementar ou livros de atas –, outros, não o sendo, continuam a ser usados, como os de registo de entrada e saí­da de correspondência que um cliente foi buscar na manhã em que visitámos a loja.

A produção que sai da fábrica do Prior Velho não ultrapassa os cinco ou seis mil cadernos por mês. Cerca de 70% para exportação.

«Além de muitos clientes particulares, fornecemos bancos, seguradoras, a Segurança Social e a Autoridade Tributária», diz António Spínola, co­proprietário (com a mulher). Estes cadernos de registo ainda representam certa de trinta por cento das vendas da marca.

Apesar de, em 1918, terem começado como papelaria, abandonaram a revenda de material de terceiros há mais de dez anos. «Não valia a pena. Um lápis aqui custava um euro, os hipermercados conseguiam fazer a 20 cêntimos», diz António.

Por isso dedicaram­‑se quase em exclusivo a fazer aquilo que sabem fazer e que, por cá, mais ninguém faz: livros e cadernos com a encadernação galocha. É um tipo de encadernação totalmente feita à mão, que muitos de nós aprendemos nas aulas de trabalhos manuais e que tornam o caderno praticamente indestrutível. E nesta área, em Portugal, não têm concorrência. «Talvez porque é muito difícil compensar fazer cadernos à mão. As margens são muito pequenas. É um trabalho de carolice.»

Aqui, apesar do barulho intenso das máquinas, o trabalho é essencialmente manual. «Não há dois cadernos iguais. Eu costumo dizer que temos um processo mecanizado à mão.» Os preços dos mais baratos oscilam entre cinco e oito euros, mas os cadernos de registo chegam aos 24 euros.

Por cá, quem queira comprar Emílio Braga terá de ir a um de três sítios: Fnac, El Corte Inglés ou lojas A Vida Portuguesa. Foi Catarina Portas quem ajudou na reinvenção e internacionalização da marca.

Hoje, a estrela da companhia são os cadernos de notas para uso particular, criados pela empresa em 1940, e que continuam a andar na mão de escritores, urban sketchers, arquitetos e jornalistas. Trata­‑se de um caderno de bolso ou de mesa, muito resistente e caraterístico pela lombada e cantos reforçados em tecido colorido, lombada mosqueada e capa forrada a papel chagrin – nas versões que se mantêm fiéis ao original.

A produção que sai da fábrica do Prior Velho, para onde se mudaram em 2012, não ultrapassa os cinco ou seis mil cadernos por mês e, sem grande surpresa, exportam cerca de setenta por cento do que fazem, sobretudo para o Reino Unido e EUA (só em Nova Iorque têm cinco revendedores). E em quase todos os países da Europa, Japão, Coreia, Israel, Dubai, Cabo Verde, Canadá, Argentina, Brasil e Rússia há importadores para os cadernos que saem desta fábrica.

Por cá, quem queira comprar Emílio Braga terá de ir a um de três sítios: Fnac, El Corte Inglés ou lojas A Vida Portuguesa – foi a mentora destas, Catarina Portas, quem os ajudou no sentido da reinvenção e na internacionalização da marca. A tendência rétro também tem dado um empurrão, bem como o consumo consciente, que passa por utilizar produtos feitos localmente e de forma artesanal.

A última década não foi fácil para o negócio e para a família. A empresa, que tinha nos tempos do fundador cerca de duzentos funcionários, e em 2001, já com esta geração à frente do negócio, cerca de setenta pessoas, viu­‑se obrigada, há quatro anos, a dispensar os últimos trabalhadores. Foram os proprietários que tiveram de pôr a mão na massa para continuar.

«Comecei a trabalhar aqui ainda não tinha 17 anos. Não era bem isto que queria, mas o meu pai, sobrinho­‑neto do primeiro Emílio Braga, sempre fez força para eu seguir com o negócio da família.

Hoje, é das mãos de apenas três pessoas que saem os cerca de setenta mil cadernos que fazem todos os todos os anos: António, a mulher Filipa (descendente do fundador) e um funcionário. Contratam apenas alguns tarefeiros em alturas de fluxo anormal de trabalho. «Fazemos milagres», diz Filipa. As horas de trabalho que isso implica nem as contam, mas deixam uma pista: há uma pequena divisão com uma cama, junto à oficina, e não é para fazer sestas durante o dia.

Há trabalho a fazer, por isso, Filipa vai conversando sem sair de trás da máquina que a ajuda a «virar lombadas», o processo através do qual estas passam de retas a arredondadas, para permitir a colocação das capas.

«Comecei a trabalhar aqui ainda não tinha 17 anos. Não era bem isto que queria, sonhava ser educadora. Mas o meu pai, que era sobrinho­‑neto do primeiro Emílio Braga, sempre fez muita força para eu seguir com o negócio da família. Nunca me disse “Segues o que quiseres”.»

«Ir a Nova Iorque e ter cinco lojas a vendar produtos Emílio Braga dá outro ânimo»

Filipa começou e manteve­‑se no trabalho de escritório até a crise a colocar onde está agora: ora atrás da máquina de 1937 para arredondar lombadas, ora a pintalgá­‑las com uma pequena esponja, ora a colar capas. O trabalho com as máquinas mais pesadas, a cortar papel e coser os cadernos, costuma ficar com António. Acumulam também entre os dois todo o trabalho de gestão da casa.

Apesar de ter pegado no negócio de família um pouco contrariada, hoje, com 43 anos, não se imaginava a fazer outra coisa e o reconhecimento que têm recebido agrada­‑lhe. Alegra­‑a saber que os cadernos que lhe saem das mãos vão seguir para os quatro cantos do mundo. «A internacionalização e a exportação foi já connosco. Antes disso só se vendiam em Portugal. E ir a Nova Iorque e ter cinco lojas a vendar produtos Emílio Braga dá outro ânimo.»

Fugir à Pide

A história da casa mistura­‑se com a história do país. Foi nas caves da tipografia Emílio Braga, na Rua da Madalena (para onde mudaram em 1952), que foram produzidos todos os materiais de campanha para a candidatura de Humberto Delgado às presidenciais de 1958. O trabalho começava à uma da manhã e era feito à luz de velas e isqueiro para escapar à vigilância da polícia política. E também nos anos 1950 e 60 tinham a seu cargo todo o estacionário da Pan American World Airways, mais conhecida como Pan Am, a principal companhia aérea dos Estados Unidos na década de 1940.