Eduardo Sá: «Devia ser proibido casar com o primeiro namorado»

Notícias Magazine

Entrevista de Ana Pago

O que é isto de se morrer de amor?
É algo que já aconteceu a todas as pessoas que amam, e eu acho isso bonito. Significa que vivem as relações com o coração desabotoado – coisa que não acontece com toda a gente, e seguramente não todos os dias. Por outro lado, tem implícita a noção de que precisamos intensamente de alguém que traga contraditório à nossa vida para termos um sentido para crescer. Portanto, quando alguém se separa de nós, mesmo que o faça em português suave dizendo «Vamos dar um tempo», é claro que não ficamos só de coração partido. Morremos um bocadinho.

E não é uma catástrofe, isso?
Antes pelo contrário! Dói loucamente, a ponto de por vezes pensarmos em morrer no sentido mais literal da palavra. Mas depois vamos buscar vários sentidos para recriar esse amor que perdemos e, a dado momento, damos connosco à procura de outras pessoas que tragam sentido à nossa vida. Mesmo que o façamos dizendo aquilo que toda a gente saudável diz: «Depois de um amor assim, nunca mais na vida vou querer amar ninguém.»

«Costumo dizer que devia ser proibido casar com o primeiro namorado, na esperança de que isso possa fazer lei.»

É possível viver-se uma vida inteira sem termos morrido de amor pelo menos uma vez?
Eu desejaria que não. Acho absolutamente comovente amar alguém para sempre, mas tem tanto de comovente como de difícil. Costumo dizer que devia ser proibido casar com o primeiro namorado, na esperança de que isso possa fazer lei. E sim, devia ser recomendável morrer as vezes indispensáveis por amor até encontrarmos a pessoa que faça sentido à nossa vida. Sobretudo isso. É algo que nos torna humildes.

Quer dizer então que existem mesmo amores para toda a vida?
Sim, existem. Embora sejam raríssimos porque as pessoas, muitas vezes, desmazelam as relações amorosas e aquilo transforma-se com alguma facilidade numa relação fraterna, o que não é a mesma coisa. Em todo o caso, há ligações absolutamente mágicas. Relações nas quais os casais, em vez de envelhecerem para o amor, renascem permanentemente alimentados por ele.

Eduardo Sá no Grande auditório do ISCTE a 11 de novembro, falando na conferência Retrato de Família promovida pela Notícias Magazine (Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens).

E essas são tão raras porquê?
Na maioria dos casos, somos muito apressados e muito preguiçosos. E é tão, tão difícil encontrar a pessoa «certa» que partimos do pressuposto de que se ela não nos cai no colo, no caminho de casa para o emprego, então é porque não existe. Às vezes, quando interpelo as pessoas, elas reagem de forma um bocado magoada e respondem: «Ah, agora quer que eu faça de Carochinha, não?» Claro que não quero que ninguém vá para a janela perguntar a todos os estranhos se querem casar com elas, por favor!

Sucede que, à medida que crescemos, vamos desertificando as nossas relações…
A começar pelas relações de amizade, sim. Os grupos pelos quais circulamos tornam-se menores, mais fechados a novas pessoas, e no meio de uma desertificação tão grande é natural que nos cruzemos com menos gente que nos obrigue a perguntar até que ponto a relação que eu tenho faz sentido, por comparação com aquela outra pessoa. Acho que ainda falamos muito pouco do amor. Falamos mais facilmente de sexualidade do que de amor. Na escola fala-se mais da educação para a sexualidade do que para o amor.

Talvez por se pensar que já estamos todos devidamente esclarecidos em relação ao amor?
Ou bem servidos, o que é mentira. O que vemos depois é que a esmagadora maioria dos casais é tão infeliz nas suas relações amorosas, tão resignada diante dessa infelicidade. E resignarmo-nos face à infelicidade é o contrário de se morrer de amor. É isso que eu acho que as pessoas não percebem e tenho pena que assim seja.

«A versão que se dá aos adolescentes da educação para o amor mais parece Educação Tecnológica parte dois.»

É fundamental educar para os afetos?
Precisamos de falar do amor e, sobretudo nas escolas, é vital explicar que nenhum amor dura para sempre se não for bem cuidado. Que mais importante do que casar é namorar, porque quando namoramos já casamos um bocadinho. Que nas relações amorosas nem todos acertamos à primeira, à segunda ou à terceira. A versão que se dá aos adolescentes da educação para o amor mais parece Educação Tecnológica ou Educação Moral e Religiosa parte dois. Isto, em vez daquilo que é estrutural e nos une: como é que eu posso ter a certeza de que a pessoa por quem estou perdidamente apaixonado gosta de mim?

Mas isso também porque o amor não é tangível. Cada um sente-o de maneira diferente…
Mesmo assim, não se fala dele. É quase um interdito, um tabu. Portanto sim, acho que a escola é um laboratório de liberdades tão mágico em tantos aspetos, nomeadamente no de pôr as pessoas a conversar e a pensar, a escutarem-se umas às outras, que se se pudesse trazer para dentro dela uma conversa séria sobre o amor… meu Deus, seria incrível. E nós temos verdadeiramente alguns professores do outro mundo, ao nível da confiança que os alunos depositam neles. Capazes de nos fazerem amar a vida.

Eduardo Sá

Como é que, em nome do amor, há quem bata, maltrate e violente alguém que diz amar acima de tudo?
Não é amor, não pode ser. Só por aqui já justifica falar-se dele para se acabar com um certo discurso obscurantista. O amor não é o encontro com uma alma gémea, porque quando procuramos uma alma gémea estamos à procura de um reflexo nosso, nunca do amor. Acontece com muita gente: tentam encontrar alguém que idealizaram de todas as formas ao seu alcance sem que esse outro possa, seguramente, trazer diferença e crescimento ao seu mundo. São essas pessoas que não conseguem morrer por amor. A maldade é o que nos permite distinguir uma relação amorosa de outra coisa a que, de forma delirante e doentia, chamamos amor.

«Entre estarmos mal acompanhados ou sozinhos, preferimos a companhia, mesmo que nos adormeça para a vida.»

Falava ainda agora de almas gémeas: podem ser consideradas o expoente máximo do amor, em termos de ideal? Ou esta é uma visão redutora por pressupor que não somos completos à partida?
E não somos. Precisamos sempre de outras pessoas nas nossas vidas como contraditório para o exercício da justiça e para nos conhecermos. Quanto mais os outros são diferentes de nós, mais temos os apelos e as interpelações que nos obrigam a perceber quem somos. O poeta brasileiro Vinicius de Moraes dizia que é impossível ser feliz sozinho e eu concordo. Muitas vezes, quando temos essa ilusão ou consumimos aqueles slogans inquietantes que nos perguntam quem gostará de nós se nós próprios não gostarmos, é como se disséssemos aos outros que são adereços na nossa vida…

E não a porta indispensável que nos abre para saber quem somos…
E para nos conhecermos mais e melhor, sem dúvida. No limite, conhecer é amar, e vice-versa. Tenho pena que muitas vezes isso não seja dito de forma clara, porque acho que nos perderíamos todos menos com as coisas supérfluas do dia-a-dia. O que é mais bonito é que às vezes atravessam-se pessoas na nossa vida que acreditam mais naquilo que somos do que nós mesmos. E quando acreditam, levam-nos a tentar perceber em que ponto do caminho é que nos desencontrámos de nós, e a querermos voltar a ser quem supúnhamos que éramos mas, por qualquer motivo, deixámos de ser.

Também é por amor que tendemos a insistir até à última em relações condenadas?
Não, muitas vezes é por vaidade: como vou assumir um falhanço? Ou por medo: entre estar mal acompanhado ou sozinho, prefiro a companhia, mesmo que ela me adormeça para a vida. É como se o outro nos fosse convertendo na sombra do que somos e não no que somos, de facto – o contrário de termos alguém que se propõe conhecer-nos. E isso é muito inquietante porque, de repente, vamos perdendo em suaves prestações o respeito por nós. Acumulamos essa bruma e desistimos de quem somos, das nossas convicções, até morrermos para a vida. O que, volto a dizer, é diferente de morrer de amor.

Quando começa um divórcio?
Quando não namoramos todos os dias. É facílimo divorciarmo-nos: basta termos muitos compromissos profissionais, muitas preocupações a esse nível, até filhos. Ao contrário do que eles e nós quereríamos, são os filhos quem melhor divorcia os pais, porque depois passamos a vida a tapar a cabeça e a destapar os pés, sempre a correr atrás do prejuízo. Temos a ideia de que existem relações seguras, em relação às quais podemos descontrair, e sem dar conta chegamos ao patamar em que falamos numa linguagem encriptada.

Nós ficamos sossegados, a achar que dissemos o que estávamos a sentir…
… Mas nem paramos cinco minutos para perceber se o outro entendeu o que queríamos dizer. Depois chega uma altura em que um amigo nos pergunta porque não dissemos o que sentíamos e nós desabafamos: «Porque não estou para me chatear.» Começamos a divorciar-nos quando já não estamos para nos chatear. Quando chegamos à célebre frase que já todos dissemos e todos escutámos: «Não lhe disse porque não vale a pena. Ele não ia perceber.»

«Brinco muitas vezes com o Dia dos Namorados: porque havemos de ter só um dia no ano para namorar?»

Sendo assim, haverá muita gente divorciada por dentro, mesmo que esteja casada por fora.
Por isso é que brinco muitas vezes com o Dia dos Namorados: porque havemos de ter só um dia no ano para namorar? Por outro lado também é inquietante ver duas pessoas, que tecnicamente são namorados, sentadas a uma mesa em que uma fala com o bife e outra com as batatas fritas, com uma vela no meio, cada qual a consultar o seu Facebook sem trocar palavra. Vivemos num mundo que quer ser tecnicamente irrepreensível quando, no amor, devíamos ser apaixonadamente repreensíveis. Porque isso acontece se temos alguém ao nosso lado que nos diz que, por mais tolos que sejamos, ele não vai desistir de nós.

Sofre-se mais por amor quando temos 15 anos e não sabemos nada da vida? Ou quando já passámos por tantos embates que custa horrores a suportar mais um?
Esqueça, um amor maduro é incomparavelmente mais bonito – e mais difícil. Tenho o maior respeito pelos adolescentes, o maior. Mas quanto mais velhos somos, também maiores se tornam as probabilidades de encontrarmos a pessoa da nossa vida ou, pelo contrário, de ficarmos sozinhos para sempre. Temos uma sensibilidade tão mais educada, damos tanta importância a pequenos pormenores, que depois não se chega lá com marketing e publicidade enganosa. Apenas com transparência.

Em que é que o amor de mãe difere de todos os outros amores?
É mágico. Imagine uma mulher no limite da exaustão, cheia de preocupações, com uma atividade profissional que valha-nos Deus e uma família de origem em que a mãe e a sogra disputam entre si para ver quem sabe mais de bebés, em vez de darem colo à mãe – ninguém dá colo às mães. Se alguém soprar, aquela mãe escangalha-se. E então o seu filho chora, sorri, aninha-se-lhe nos braços, e toda ela se ilumina. É amor de mãe. Mas atenção: há amores maduros que podem ser muito parecidos com isto, daí serem tão raros. E tão absolutamente arrepiantes quando acontecem.

O romantismo está em vias de extinção?
Não, nunca, embora eu tenha medo de que as pessoas o considerem jurássico. É verdade que todos os amores são ridículos: dizemos coisas que em condições normais não diríamos sob pena de nos julgarem loucos; fazemos patetices que são uma ternura. Ser romântico é uma forma de sermos especialmente amáveis para alguém, que nos abre para sermos amados e nos faz tocar a alma do outro. Devíamos dizer aos adolescentes – a toda a gente, já agora – que não só não está em vias de extinção como não é vergonha.

Temos medo de amar, todos nós?
Todos, todos, todos. Mas como poderemos crescer sem dor?

É por isso que vemos tanta gente infeliz e em relações frustradas à nossa volta?
Amar dá muito trabalho, exige tempo, dói. Porém, acho que pecamos sobretudo por não conseguirmos fechar os olhos nos braços da outra pessoa, como faz um bebé no colo da mãe. Nunca vamos amar enquanto não formos capazes de fechar os olhos nos braços de alguém, porque isso é outra forma de dizermos «Sente. Olha para mim, sente-me em ti, pensa por nós.» E não há nada que valha mais a pena.

QUEM NUNCA MORREU DE AMOR
Eduardo Sá
Ed. Lua de Papel (LeYa)
208 páginas
16 euros

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