Deus oculto

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Deus existe, ele chama-se John le Carré e de vez em quando aparece-nos sem dar ordens. Não faz dez mandamentos, ele é uma espécie de deus absconditus, deus oculto, criou-nos e foi à vida dele, deixando-nos entregues a nós próprios. A mais recente aparição de Le Carré foi agorinha, aos 85 anos, e a sua nova bíblia chama-se Um Legado de Espiões (editado pela D. Quixote).

Da primeira vez que Le Carré me apareceu, eu estava no cinema. Comecei por ver O Espião Que Veio do Frio, filme, e só depois li o livro. Uma garrafa de vinho português aparece numa cena em que Richard Burton está com a namorada (Claire Bloom), mas nem esse episódio me distraiu da história.

O espião britânico Alec Leamas (Burton) fingia deixar-se comprar pelos serviços secretos da Alemanha comunista. A missão era fazer crer que o número um deles – um bruto que já tinha assassinado agentes britânicos – era espião duplo e trabalhava para os ocidentais. Com as insinuações de Leamas, o número dois mordeu o isco e levou o número um a tribunal, em Berlim Oriental.

No tribunal comunista, porém, surgiram provas – apresentadas ingenuamente pela namorada de Leamas – de que o número dois, não o um, é que estava combinado com os espiões ocidentais. Então, Leamas percebeu que ele e a namorada tinham sido instrumentalizados pelos Serviços Secretos britânicos. A operação, afinal, era para proteger o número um, venal traidor dos comunistas e útil agente dos britânicos, e destruir o número dois. Confusos? Ora, ora, se o leitor nunca viu disso à sua volta, dê graças por ter escolhido um emprego a observar pássaros.

Leamas e a namorada acabaram mortos ao tentar saltar o Muro de Berlim. Quer dizer, ela foi alvejada, mas ele podia ter fugido. Do outro lado, os espiões ocidentais gritavam para ele saltar, para se pôr a salvo – é que a namorada, que não era espia, era dano colateral, mas a camaradagem não lhes permitia sacrificarem também um dos seus.

Leamas, porém, não quis, voltou para a sua mulher e morreu. O deus absconditus que faça o que quiser, passear pelo universo ou escrever livros de espiões, mas o homem, mesmo alcoólico, de ficção e com a voz arrastada de Burton, tem livre-arbítrio.

Depois do filme, li o livro e, depois deste, todos de Le Carré. Agora, ele volta com Um Legado de Espiões, cada vez menos disposto a dar-nos lições de moral. A personagem principal é o espião Peter Guillam e também o célebre George Smiley, o chefe operacional dos Serviços Secretos britânicos, ambos já aparecidos em livros anteriores.

Foram os dois que em O Espião Que Veio do Frio – para protegerem os agentes britânicos infiltrados na Alemanha Oriental (e o venal e bruto número um) – engendram o plano diabólico protagonizado, sem o saber, pelo colega Alec Leamas. O que foi fatal para este, porque a espionagem não é um convite para tomar chá.

Ou não era, e já é? É que o reformado Peter Guillam, no presente de Um Legado de Espiões, foi convocado para explicar a operação que levou à morte de Alec Leamas, há meio século. Os atuais Serviços Secretos britânicos foram pressionados por um filho e uma filha de Leamas e da namorada, que ameaçavam com querela nos tribunais e o escândalo de um inquérito parlamentar. Então, os jovens espiões interrogaram o velho colega, com tiques de quem desconhece o cinismo da vida e como se nunca tivesse havido Guerra Fria. Julgam como quem dá cliques «like» e resolve o mundo assinando petições.

E John le Carré – deus absconditus e não borboleta de causas etéreas – pinta-nos o mundo com moral ambígua. Nós que decidamos, é o tal livre-arbítrio. Sendo cada vez mais raro poder praticá-lo como cidadãos, aproveitemos a benesse que ainda temos como leitores.