Dar vida ou morte

Notícias Magazine

Na noite de São João, seguia pela rua com a minha filha lavada em lágrimas quando um grupo passou e um jovem se meteu com ela em tom de gozo. «Ui, credo, que cara de sofrimento.» Levantei os olhos apenas para lhe chamar dois nomes pouco simpáticos, a ponto de a miúda, surpreendida, me acalmar. «Deixa, mãe. Não vale a pena.»

Vale, expliquei-lhe na altura. Aquele miúdo não sabia, não poderia saber, que a minha filha tinha perdido o pai há menos de um mês. E que tudo, na confusão barulhenta daquela noite, lhe recordava outra um ano antes, em que a vida rodava nos eixos sem a magoar com a sua falta de lógica.

Mas, mesmo sem saber porquê, aquele miúdo deveria ir para casa a pensar que, se foi insultado, talvez tivesse pisado linhas vermelhas. Deveria perceber que nunca se goza com uma adolescente que chora, muito menos sem conhecer o motivo. Que nunca se goza com alguém que sofre (até quando as causas desse sofrimento nos parecem irrelevantes). É o mínimo de humanidade que se exige a qualquer pessoa.

Voltei a ter a mesma sensação de desumanidade recentemente, quando vi dar os parabéns, via Facebook, a quem tinha falecido três meses antes. Não me contive e pedi aos autores das mensagens que as apagassem. Mais uma vez, quem as escreveu não sabia até que ponto estava a ser insensível, mas neste caso poderia saber. Bastaria ter dado uma vista de olhos no mural, onde ficaria a par do sucedido. E foi isso que sugeri, com algum azedume, comentando que é o mínimo aconselhável antes de dar os parabéns a conhecidos de quem se anda desligado. Pedi ainda que apagassem a mensagem totalmente desajustada. Só uma das pessoas o fez.

A falta de empatia de um jovem que ridiculariza uma adolescente em lágrimas não me parece muito diferente deste navegar cego pelas redes, em que se ignoram relações, publicações e notificações. Em ambos os casos há interação sem emoção, sem comunicação e sem qualquer respeito ou verdadeiro interesse pelo outro.

E é assim que tantas vezes deambulamos e nos cruzamos uns com os outros, sem percebermos que uma pessoa é sempre muito mais do que aquilo que vemos. Sem nos questionarmos sobre o que o outro sente, sobre o que o move, sobre o que o faz rir e chorar. Sem sermos capazes de vestir a sua pele. Sem colocarmos a hipótese de nos enganarmos em tantas avaliações superficiais que fazemos.

Fazemos viagens ao espaço, colocamos sondas em órbita, procuramos planetas habitáveis, navegamos pela realidade virtual, criamos dispositivos e tecnologias, mas ao fim de tantos séculos de ciência ainda não descobrimos a chave para encurtar a distância que vai de uma alma a outra.

E, no entanto, seria preciso tão pouco para que o mundo pulasse um bocadinho. Bastaria que pensássemos duas vezes antes de dispararmos comentários inconvenientes. Ou estarmos genuinamente focados no outro quando lhe perguntamos como anda. Escolhermos mais o toque, os olhos nos olhos, do que a pressa de um cumprimento nas redes sociais. Criticarmos menos e fazermos mais. Sermos genuinamente gente.

Não somos deuses, ao contrário do que parece quando agimos como se fôssemos imortais. Mas cada vez que falamos ou abrimos as mãos abre-se à nossa frente uma infinidade de opções. Temos o poder fabuloso de espalhar centelhas de vida ou, pelo contrário, de distribuir palavras e gestos que moem e matam por dentro. A escolha não deveria merecer dúvidas, pois não?