Dança: A luta de Cláudia Dias continua no palco

Texto de Catarina Pires | Fotografia de Alípio Padilha [Terça-Feira] e José Caldeira [Segunda-Feira]

Um homem e uma mulher, frente a frente, lado a lado. Um fio branco que desenha um homicídio. Coletivo. O drama dos refugiados. A guerra na Síria. As fronteiras. A solidariedade. A falta dela. A Europa. O mundo. Nós. Os outros. Através daquele fio, recorrendo a uma técnica de improvisação que trouxe do trabalho com o coreógrafo João Fiadeiro, a composição em tempo real, Cláudia Dias e o seu convidado, o clown italiano Luca Bellezze, desenham uma história, que começa no final da Primeira Guerra Mundial e não acaba, antes procura pensar sobre aonde chegámos e como chegámos aqui.

O frente a frente é uma espécie de dispositivo inicial para todas as sete peças, duas pessoas no estúdio a olharem uma para a outra. «Vou para cada peça o mais virgem possível e faço o convite ao outro para vir também e a ideia é ficarmos frente a frente e depois alguma coisa vai acontecer, porque alguma coisa terá que acontecer e, mesmo que não aconteça nada, esse nada já é qualquer coisa. O pressuposto é que o primeiro gesto, venha de mim ou do artista convidado, seja o gesto que inaugura a peça», explica Cláudia Dias.

Alguma coisa acontece, isso é certo. Tanto em Terça-feira: Tudo o Que é Sólido Dissolve-se no Ar, que estrou este ano no Teatro Maria Matos, como em Segunda-feira: Atenção à Direita, peça inaugural do projeto, que desenvolveu com o galego Pablo Fidalgo Lareo. Um combate de boxe que funde o muay tai com a dança e a literatura para refletir sobre a Europa, a ascensão da direita, o capital, a guerra, o preconceito, o norte e o sul, a desigualdade.

«Os consensos conduzem ao imobilismo. As forças contrárias e dialéticas fazem parte da vida e são elas o motor da história.»

«Neste projeto, Sete Anos Sete Peças, está subjacente a ideia de encontro, e embora eu assuma a autoria das peças, convido o outro para juntos criarmos qualquer coisa, mas contrariando a ideia de que temos que consensualizar para criar», diz Cláudia Dias.

«E isso esteve muito presente desde o início e acabou por refletir-se na primeira peça, que foi um combate de boxe. O conflito, o atrito, o estarmos em oposição, tudo faz parte. É mentira que só é possível avançar consensualizando. Pelo contrário, os consensos conduzem ao imobilismo. As forças contrárias e dialéticas fazem parte da vida e são elas o motor da história.»

Foi da vontade de reagir e fazer oposição, na verdade, que nasceu este projeto. «Em 2011, na minha área estava tudo a trabalhar em projetos o menos ambiciosos possível do ponto de vista da produção, as pessoas davam-se por satisfeitas se tivessem à frente um horizonte de seis meses ou um ano de trabalho e eu decidi fazer o movimento contrário e dizer: “não aceito este estado de coisas e portanto vou criar um projeto que afirme que um artista português tem tanto direito a construir futuro como um artista alemão ou francês, que reclame o direito à existência artística pelo menos durante uma década”. E foi isso que fiz.»

«Um artista português tem tanto direito a construir futuro como um artista alemão ou francês»

E, contra todas as expetativas, encontrou quem agarrasse o desafio. Antes de mais, a Associação Alkantara, estrutura que organiza o Alkantara Festival e que produz o projeto Sete Anos Sete Peças, depois a Câmara Municipal de Almada, com a qual estabeleceram um protocolo por sete anos, o Teatro Maria Matos e o Rivoli – Teatro Municipal do Porto, que apostaram nas três primeiras produções, e o Teatro Nacional D. Maria II, com quem estabeleceram uma parceria para a edição dos textos.

«Mesmo lá fora acabou por colher interesse. O Segunda-feira foi apresentado em Munique, Atenas, Dublin e Vilnius, com o apoio do Europoly – do Goethe Institut em cooperação com o Kammerspiele de Munique – do Onassis Cultural-Centre Athens, do Sirenos – Vilnius International Theatre Festival e do Tiger Dublin Fringe.»

Quarta-feira ainda está em processo de criação, com o convidado Igor Gandra, do Teatro de Ferro. E o resto da semana assistirá a uma mudança de paradigma, passando os artistas convidados a serem mulheres.

A luta de Cláudia Dias continua e pode ser vista hoje à noite, às 21h00, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada.

As outras peças das Sete Peças

O Sete Anos, Sete Peças é um projeto de criação que tem acoplados três projetos satélites. Um deles é o Sete anos, Sete escolas, que foi criado em parceria com a Câmara Municipal de Almada e que na opinião de Cláudia Dias talvez seja o mais importante de todos.

«A escola é um sítio fundamental para a intervenção dos próprios artistas, até para quebrar a ideia de divisão entre criadores e fruidores, como se houvesse uma elite destinada a criar e uma grande massa destinada a fruir, eu sou contra isso. Colocamos as peças como matéria para os alunos, a partir daí, criarem os seus próprios trabalhos, numa perspetiva de reconstrução.» A António Gedeão e a Franscisco Simões, em Almada, são as escolas em que o projeto está a ser desenvolvido.

Outra dimensão é a da edição dos textos que acompanham as peças e que está a ser realizada em parceria com o Teatro Nacional D. Maria II. «Isto permite que os textos tenham uma vida para além da efemeridade das artes performativas e isso é muito importante», diz Cláudia Dias.

O projeto de fazer um documentário é a terceira dimensão, que está a ter mais dificuldade de arrancar, mas a coreógrafa acredita que serão reunidas as condições de o concretizar.