Texto de Catarina Fernandes Martins
Na noite em que Sónia se sentou com o filho no sofá para uma conversa sobre machismo, Manuel abraçou a mãe e agradeceu-lhe. «Senti-me especial por ter uma mãe que me ensina, que se esforça para que eu não cresça dentro do sistema, para que eu não seja mais uma ovelha no rebanho», diz o rapaz de 11 anos.
Sónia Silvestre cresceu numa família «matriarcal» de Trás-os-Montes, bisneta de uma mulher que, conta, recusou casar com o pai dos filhos por considerá-lo «um gabiru» que tinha crianças «até na Galiza», mas que nem por isso «deixou de fazer o que queria» e filha de uma empresária que um dia, cansada de esperar pelo marido que se demorava no café, atirou a panela do jantar para o chão. «O meu pai não voltou a chegar tarde», lembra Sónia, 43 anos.
Em casa dela as mulheres «eram fortes» e, de uma forma geral, «bem tratadas pelos homens», mas as tarefas domésticas eram predominantemente desempenhadas por elas enquanto as «facadas no matrimónio» eram exclusivo deles. Foi assim que Sónia percebeu que homens e mulheres têm «papéis diferentes». Quando estudava Filosofia na faculdade descobriu o feminismo no Segundo Sexo de Simone Beauvoir e desde então, não consegue não ver a realidade à luz dessa teoria que defende direitos iguais para todos os sexos. Quando Manuel nasceu, Sónia sabia que não havia outra opção. Teria de educá-lo para ser um homem feminista.
Em Portugal, a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade definiu como prioridade o desenvolvimento da cidadania e promoção de igualdade de género nas escolas e através da educação.
Em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu 17 objetivos de desenvolvimento sustentável. O quinto objetivo é o da igualdade de género e estabelece a intenção de «acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas, em toda a parte» e de contribuir para «o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis». A nível internacional tem-se dedicado muita atenção – em jornais, livros, noticiários ou programas de TV – ao tema da igualdade de género na infância.
Em Portugal, a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade definiu como prioridade o desenvolvimento da cidadania e promoção de igualdade de género nas escolas e através da educação. Mas será esta, por enquanto, uma preocupação de alguns pais liberais em Portugal? Cristina C. Vieira, investigadora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra e uma das autoras dos Guiões de Educação Género e Cidadania, promovidos pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), acredita que não. «Trata-se de uma questão de política pública».
No entanto, especialistas em igualdade de género falam de uma aplicação ainda incipiente dos princípios nas escolas e os pais que se esforçam por educar as suas crianças de acordo com um modelo feminista queixam-se de um ambiente escolar que forma os filhos no sentido contrário.
Alguns dos pais entrevistados para este trabalho assumiram-se como feministas, definindo-se defensores da igualdade de género e assumindo a necessidade de ultrapassar as desigualdades – nas relações, no mercado laboral, na política, na economia – que ainda afetam muitas mulheres em todo o mundo. Uns são ativistas feministas, outros querem contribuir para o fim das desigualdades – nas relações, no mercado laboral, na política, na economia – e acham que não há melhor ponto de partida do que o lar.
Há dois anos, António bateu numa colega de escola. A mãe refere o assunto de passagem, meio envergonhada. «Ele tinha 4 anos e eles aprendem isso na escola.» O incidente deu origem a uma conversa familiar. A promotora de espetáculos Jwana Godinho, 42, e o marido, o empresário Domingos Folque Guimarães, 43, juntaram Margarida, a filha mais velha, e Francisco, o filho do meio, e explicaram a António, o mais novo, que «não se bate em raparigas». «A Margarida e o Francisco reagiram de imediato: “Não se bate em ninguém”», lembra Jwana, orgulhosa.
Jwana e Domingos cresceram em famílias onde a igualdade entre homens e mulheres foi sempre discutida e decidiram, ainda antes de terem filhos, que os educariam para a igualdade – o que, segundo Jwana, se insere num sentido mais lato de «educar para os direitos humanos».
É com orgulho que lembra, também, o dia em que, respondendo a alguém que repreendeu António por chorar depois de cair ao chão com a frase «pareces uma menina», Margarida disse, de imediato, «Desculpa?» Ou o à-vontade com que Francisco levou, um dia, ganchos no cabelo para a escola. A esperança de que os comportamentos dos filhos mais velhos sirvam de exemplo ao mais novo deixam Jwana à vontade para «respeitar a individualidade» de António, que não quer vestir cor-de-rosa.
Jwana e Domingos cresceram em famílias onde a igualdade entre homens e mulheres foi sempre discutida e decidiram, ainda antes de terem filhos, que os educariam para a igualdade – o que, segundo Jwana, se insere num sentido mais lato de «educar para os direitos humanos». Calhou que Margarida nascesse primeiro. Domingos, que se diz um ativista feminista, esforça-se por «assegurar-lhe, diariamente, que ninguém pode determinar o seu futuro além dela mesma», diz.
Talvez por isso Margarida seja já uma «líder natural», como descrevem os pais. «Uma rapariga destemida com uma personalidade muito forte», que admira Malala Yousafzai e que aos 10 anos foi sozinha para um campo de férias fora do país. E uma irmã a quem os pais recorrem para ajudar na educação de rapazes feministas. «A Margarida não dá qualquer hipótese de que abusem dela, por isso temos muita sorte», diz Domingos. «Temos todos impulsos machistas, mas de geração em geração a filtragem vai ficando mais fina.»
Mas por vezes, fora do ambiente protegido do lar, há comportamentos que saem deste enquadramento de igualdade e Jwana e Domingos esforçam-se para que isso não afete os princípios que querem passar aos filhos.
Jwana vê com alguma preocupação a separação das crianças por sexo na escola onde os filhos estudam, o que origina um diálogo a quatro:
– «Na turma do António as raparigas brincam com raparigas e os rapazes brincam com rapazes», diz Margarida (11 anos).
– «Porque os rapazes correm muito e raparigas não jogam futebol», responde António (6 anos).
– «As raparigas não querem jogar», diz Francisco (9 anos), enfatizando o verbo querer.
– «Na escola dizem sempre: o rapaz e a menina. Nunca dizem “rapariga e menino”», continua Margarida. «Parece que estão a dizer que as raparigas são inferiores.»
– «É verdade», confirma a mãe. «Deves chamar a atenção para esse ponto.»
Tal como Jwana e Domingos, também Franclim e Teresa assistem com alguma apreensão aos hábitos que a filha mais velha traz por vezes da escola. Franclim Ribeiro, 35 anos, e Teresa Costa, 38, conheceram-se enquanto aprofundavam as respetivas formações – ele é psicólogo, ela é médica – na área da medicina legal.
Apesar de terem crescido em famílias mais conservadoras do que as de Sónia ou de Jwana e de Domingos, dizem nunca ter sido formalmente educados a distinguir homens de mulheres. Mas Teresa não gostava de ouvir o avô berrar com a avó e jurou que com ela seria diferente.
«Uma vez a Carolina disse que os meninos não podiam usar camisolas cor de rosa», conta Teresa. «Eu comprei uma camisola cor de rosa para o meu marido e disse: “Olha que bonito fica o papá com esta cor.”
No exercício das suas profissões, Teresa e Franclim cruzaram-se com várias vítimas de violência doméstica e as histórias que conheceram fizeram crescer neles a preocupação de educar as filhas, Carolina, de 7 anos, e Sofia, de 2 anos, para a igualdade entre os sexos. Para já, a principal preocupação é Carolina, que descrevem como uma «menina sensível que adota muito do que ouve». A situação, admite o casal que se mudou há pouco tempo do Porto para Olhão, é mais grave no Sul do país.
«Falam do tradicionalismo das famílias do Norte, mas nós temos encontra do casos aqui que nos deixam muito surpreendidos… Numa festa de anos de uma amiga da Carolina havia uma mesa com cervejas e camarões para os homens e as mulheres ficaram de pé a partilhar um prato de camarão sem cervejas», diz Teresa, entre o humor e a indignação. «Apesar dos exemplos que lhe damos, ela continua a ser influenciada pelo resto da família e pelo resto da sociedade.»
«A situação na escola é tal que tivemos de ensinar a Carolina a bater porque chegava a casa cheia de nódoas negras…», lembra Franclim. «Uma vez disse que os meninos não podiam usar camisolas cor de rosa», conta Teresa. «Eu comprei uma camisola cor de rosa para o meu marido e disse: “Olha que bonito fica o papá com esta cor.” Ela chega a casa a dizer que há profissões de meninos e profissões de meninas… Eu tento dizer-lhe que acima de tudo somos pessoas e todos podemos fazer tudo, mas nos livros da escola não há mulheres poderosas.»
Se visse os Guiões de Educação, Género e Cidadania, um conjunto de manuais com boas práticas e recomendações a adotar por professores desde o pré-escolar até ao terceiro ciclo – o Guião para o Ensino Secundário «está na gaveta», diz uma das suas autoras, Cristina Vieira – Franclim Ribeiro ficaria mais descansado.
Além de oferecerem a professores um enquadramento teórico sobre igualdade, os guiões encomendados pela Comissão para a Igualdade de Género (CIG) disponibilizam também um conjunto de materiais que poderiam ser utilizados na sala de aula, como jogos em que se invertem os estereótipos dos sexos nas tarefas domésticas ou nas profissões e sugerem abordagens possíveis de adotar no processo de ensino (dicas sobre como desconstruir as narrativas sexistas em livros de Harry Potter, nomes de figuras femininas na História de Portugal ou nas artes do século xx que podem servir de modelos de inspiração).
2016/2017, a CIG investiu verbas em ações de formação para cerca de 1200 professores de todo o país. Em 2012, a Comissão Europeia considerou os guiões uma Boa Prática em Género e Educação. Em 2015, o Conselho da Europa integrou-os na compilação Boas Práticas no combate aos estereótipos de género na e através da educação. Apesar disso, estes guiões não estão a ser utilizados de forma sistemática pelos professores portugueses, diz Cristina Vieira.
A psicóloga Cristina Valente vai mais longe e defende que os currículos escolares devem levar em consideração as diferenças no desenvolvimento cognitivo de rapazes e raparigas. «Temos de perceber que na pré-adolescência e na adolescência, rapazes e raparigas têm velocidades diferentes ao nível do desenvolvimento físico e cognitivo. Eles têm desafios distintos.
Para Dália Costa, vice-presidente do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género da Universidade de Lisboa (CIEG – ISCSP, ULisboa), «há uma série de recomendações e prioridades definidas, mas estes esforços estão a ser mal articulados. É típico as escolas desenvolverem projetos quando existe alguém, na direção ou no corpo docente, atento à importância da igualdade de género. É aleatório.»
Sofia Neves, membro do CIEG, tem investigado a violência no namoro e tem críticas a fazer também nesse âmbito. «Não acredito no modelo da prevenção da violência de género nas escolas. Os projetos são financiados a curto prazo por organizações não governamentais e estas equipas não têm uma presença continuada nas escolas e não estão em todas as escolas do país. Ou nos unimos – escola, família e poder político – para lutar contra esta violência ou não vamos conseguir. A substituição de modelos de pensamento é um trabalho que tem de ser cimentado de forma estrutural e que não se faz num ano ou dois.»
A psicóloga Cristina Valente vai mais longe e defende que os currículos escolares devem levar em consideração as diferenças no desenvolvimento cognitivo de rapazes e raparigas. «Temos de perceber que na pré-adolescência e na adolescência, rapazes e raparigas têm velocidades diferentes ao nível do desenvolvimento físico e cognitivo. Eles têm desafios distintos. Se a educação tivesse em conta essas diferenças – se, por exemplo, as raparigas tivessem acesso à Matemática dois anos mais cedo do que os rapazes – tudo seria melhor.»
Vera e Rui também acham que há muito trabalho pela frente. Por isso usam a sua própria relação para mostrar à filha Laura, de 9 anos, relações saudáveis, baseadas no respeito. Um exemplo? Falam abertamente com ela, permitindo-lhe que se expresse com total liberdade.
– «Eu quando era pequenina não sabia o que era e gostei de uma menina…», diz Laura.
– «Pequenina ou grande, gostas de quem quiseres», responde a mãe, lembrando que teve de interferir uma vez.
– «Era um rapaz estúpido…», confirma Laura.
– «Que te faltava ao respeito e mentia», completa Vera.
– «Eu acho que só gostava dele porque ele era bonito. Eu sonhava com ele e nem percebia que ele me tratava mal. Acreditei nos meus sonhos…», diz a rapariga, entre suspiros, antes de encerrar o assunto com determinação. «Agora nunca faria isso.»
Vera Vitorino, 36 anos, é administrativa num sindicato. Rui Guerra, 37 anos, é músico e administrativo de piscinas. Cresceram em famílias com mulheres fortes que admiravam e que, dizem, lhes deram o exemplo. Exemplo que procuram dar agora às duas filhas. «Eu digo à Laura: “Não gostavas que o pai fizesse isso à mãe, pois não?”», pergunta Vera. Rui diz que, acima de tudo, valoriza as emoções da filha. «Perguntei-lhe: “Como te sentes quando ele te fala assim?”. Só isso importa. Se não nos sentimos bem com alguma coisa é porque algo errado se passa. Isso ensina-a a legitimar o que sente.»
A psicóloga Cristina Valente acredita que o problema da desigualdade começa precisamente na forma desajustada com que alguns pais e educadores lidam com as emoções das crianças. É uma verdadeira «iliteracia emocional». «Dizemos aos rapazes que não podem chorar e às raparigas que não podem sentir agressividade. Ao fazê-lo estamos a negar-lhes a possibilidade de sentirem pelo menos uma das emoções básicas que são a raiva, a tristeza, a alegria e o medo, limitando-os emocionalmente.»
Clarice Canha, 70 anos, Judite Canha Fernandes, 45, e Laura Roque, 18 anos, representam três gerações de uma família com décadas de história no ativismo feminista. Clarice foi uma das fundadoras da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) e descobriu-se feminista ainda sem usar o termo durante os tempos da ditadura, ao ver a repressão em que viviam as mulheres pobres na Madeira.
Como se educa para o feminismo? Como foi que Clarice educou Judite? Como a educou a ela Judite? As três respondem com uma palavra apenas: «liberdade».
Judite foi educada nesse meio e pensou que o assunto estava «arrumado» dentro de si até ter tido Laura e perceber que «a sociedade esperava que mudasse enquanto mulher». Então envolveu-se ativamente com a Marcha Mundial das Mulheres.
Para Laura, «o feminismo foi a dobrar». Viu a mãe partir para o Congo e para Moçambique para ajudar outras mulheres, acordou várias vezes às três da manhã quando a mãe atendia chamadas da linha de violência doméstica. Sentindo-se protegida neste meio, diz não ter tido ainda a hipótese de exercer a sua própria consciência sobre o feminismo. Mas sabe que, tendo filhos, irá educar uma quarta geração de feministas.
Como se educa para o feminismo? Como foi que Clarice educou Judite? Como a educou a ela Judite? As três respondem com uma palavra apenas: «liberdade».
– «Eu não fui educada para o feminismo», diz Judite. «Fui educada e eduquei no feminismo. Tinha liberdade para ser quem era, vestir o que queria.»
– «Lembras-te de uma vez me veres discutir com o teu pai e me teres dito: “Oh mãe, às vezes é feminismo a mais”», pergunta, divertida, Clarice.
– «Eu também disse uma série de vezes: “feminismo hoje não…”, completa Laura. «Às vezes queria ser igual aos outros meninos e tu começavas logo a analisar as razões de o professor ter dito isto ou aquilo. Mas a verdade é que tive sempre liberdade de ser quem era, em todas as fases, com a paciência e o humor que tivesse no momento.»
Sónia Silvestre diz que educar um rapaz feminista é um duplo desafio, mas diz que se não forem educados dessa forma, nada funcionará.
Liberdade e autonomia também são as palavras de ordem em casa de Sónia Silvestre. Divorciada há mais de dez anos, habituou o filho a partilhar com ela as tarefas domésticas. «Ele levanta-se, vai passear o cão, veste-se, toma o pequeno-almoço sozinho e sai para a escola enquanto eu durmo. Depois chega a casa, cozinha, aspira…Não partilhamos as tarefas a 50% porque ele é uma criança, mas quis ensiná-lo para que um dia ele possa fazê-lo com um companheiro ou companheira.»
Sónia diz que educar um rapaz feminista é um duplo desafio, mas diz que se não forem educados dessa forma, nada funcionará. «Se elas estão a ser educadas para seguirem os seus sonhos e os rapazes continuam a querer mulheres que fiquem em casa, vão afastar-se.»
Mas, em conversa com Manuel, Sónia expressa o receio de que o feminismo caia em exageros.
– «Acho que vamos passar por uma fase de desigualdade ao contrário. Sabemos o que é a opressão, não podemos cometer o mesmo erro.»
– «Na história da humanidade foram sempre os homens a mandar», responde o filho. «Está na hora de tomarem vocês o poder. Há mulheres de todo o tipo. Não somos todos iguais. Está na altura de as mulheres tomarem o poder. Se houver respeito pelos outros está tudo bem.»